Frigorífico Goiás: quando o fanatismo político vira negócio e alimenta a exclusão

30 setembro 2025 às 14h53

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O Frigorífico Goiás, uma rede de açougues na capital goiana, fincou na porta de seu estabelecimento um cartaz que sintetiza uma perigosa fratura no tecido social brasileiro: “petista aqui não é bem-vindo”. Esta não é, contudo, a primeira investida do empresário Leandro Batista Nóbrega no território árido que mistura negócios, política e exploração da vulnerabilidade econômica.
Pelo contrário, é apenas o caso mais recente de uma estratégia recorrente de autopromoção. Nas eleições de 2022, a empresa promoveu uma oferta de picanha a R$ 22 o quilo – valor drasticamente inferior aos R$ 129,99 praticados normalmente – para clientes que vestissem a camiseta da Seleção Brasileira e uma alusão ao número de urna de Bolsonaro. Naquele domingo de caos, a ânsia por um alimento básico, transformado em símbolo partidário inacessível no dia a dia, resultou em uma aglomeração descontrolada.

Yeda Batista compareceu ao local em busca da oferta, passou mal durante o tumulto e, de acordo com o relato de seu marido à Polícia Civil, foi esmagada pela multidão. Sua morte tornou-se um epitáfio para uma manobra de marketing que a Justiça Eleitoral, posteriormente, considerou ilegal. O Frigorífico Goiás explorou a esperança de pessoas de baixa renda por um produto de qualidade, usando-as como combustível para uma narrativa política.
Diante do recente episódio do cartaz, o deputado estadual Mauro Rubem (PT) protocolou representações no MP-GO e no Procon. Embora sua atuação seja, em tese, a de um parlamentar fiscalizando possíveis ilegalidades, sua condição de petista de alto escalão inevitavelmente adiciona uma camada de politicagem ao caso.
Ao colocar-se no centro da disputa, Rubem arrisca transformar uma questão fundamental de direitos do consumidor e convivência civil em um espetáculo de rivalidade partidária, o que pode, em última análise, cegar o cerne do problema. No entanto, destaco que a legalidade de sua denúncia não se enfraquece por sua filiação e o que está em jogo transcende a disputa PT versus Bolsonarismo.
Já Leandro Batista Nóbrega, em resposta às acusações, não procurou a moderação. Pelo contrário, publicou um vídeo nas redes sociais com linguagem agressiva, direcionando-se ao deputado com insultos. “Petista aqui não é proibido de entrar no Frigorífico Goiás, não. Não é bem-vindo entrar aqui. Isso não significa que é proibido entrar aqui, seu vagabundo”, vociferou.

Essa tentativa de distinção semântica entre “não ser bem-vindo” e “ser proibido” já foi desmontada pela ação do MP-GO. O promotor Élvio Vicente da Silva, autor da ação, argumenta que a diferenciação não elimina o caráter excludente e intimidador da mensagem. Além disso, o MP compilou outras publicações do empresário, onde ele afirma “não atendemos petista” e, em um ato de deboche, compara o tamanho de um camarão ao “cérebro de petista”.
Consequentemente, a ação do Ministério Público é baseada em princípios constitucionais. Ela pede a retirada imediata de qualquer mensagem discriminatória, a abstenção de novas condutas similares sob pena de multa diária de R$ 50 mil, e uma indenização por danos morais coletivos de no mínimo R$ 300 mil.
O promotor fundamenta seu argumento no Artigo 5º, Inciso VIII da Constituição Federal, que garante que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou convicção filosófica ou política”. Dessa forma, a convicção político-partidária é equiparada a outras formas de discriminação expressamente vedadas, como a racial, de gênero ou religiosa. Um estabelecimento comercial, aberto ao público, não pode criar um ambiente hostil para cidadãos baseando-se em suas ideias.
Paralelamente, olhando o histórico trabalhista do Frigorífico Goiás, muito mais se revela nesse padrão de conduta que vai além da arena política. Em 2022, a empresa foi condenada a indenizar uma ex-funcionária em R$ 26,3 mil por violações. A mulher, contratada como auxiliar de açougue, recebia parte de seu salário de R$ 1.500 por fora, em uma prática ilegal de “caixa dois”.
À época ela relatou à Justiça a falta de equipamentos de segurança adequados, que resultou em cortes frequentes em seus dedos, e uma jornada exaustiva: das 7h30 às 20h30, de segunda a sábado, com apenas meia hora de intervalo. Ironia cruel, o valor de seu salário é inferior ao preço de um quilo da “Picanha Mito”, vendida a R$ 1.799,99, mais uma prova da clara desconexão entre a retórica populista e a realidade operacional do negócio.
Um dos auges desta saga, no entanto, aconteceu neste mês, e não, não chega a ser o cartaz bronco. Apesar do histórico de promoção tumultuada com desfecho fatal, das investigações do MP e da condenação trabalhista, a Câmara Municipal de Goiânia, por meio de um projeto do vereador bolsonarista Coronel Urzeda (PL), concedeu a Leandro Batista Nóbrega o Título Honorífico de Cidadania Goianiense.
O decreto legislativo, aprovado e promulgado, justifica a homenagem “em reconhecimento pelos relevantes serviços prestados ao município de Goiânia”, citando sua contribuição para o desenvolvimento econômico local. A condecoração, concedida a um empresário cujas ações estão sob escrutínio judicial por práticas discriminatórias e cuja gestão é marcada por uma tragédia evitável, mostra o consentimento político a condutas que instigam a ordem democrática e a dignidade humana.
O caso do Frigorífico Goiás ilustra como o fanatismo político, quando adotado como estratégia comercial, pode desumanizar o outro e banalizar a tragédia. Aparentemente, o foco da empresa não é vender carne, e sim uma identidade, uma tribo, e o faz explorando a necessidade dos mais pobres e incentivando a segregação. O direito de ter uma preferência política termina onde começa o direito do outro de ser tratado com respeito, simplesmente por entrar em uma loja.
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