Em estudo divulgado pelo DataSUS, 71% dos procedimentos ocorrem via cirúrgica em Goiânia. Médica acredita na reversão desses números, conforme mulher torna “dona de si” e volta a conhecer melhor sua fisiologia

Mãe, Jessica Palu e filha, Aurora, logo após parto normal / Foto: Reprodução / Arquivo Pessoal

Aurora levou quase 27 horas para nascer. O parto ocorreu no dia 16 de dezembro, na Maternidade Modelo, em Goiânia. Mesmo com muita dor e contração, a mãe, Jessica Palu, garante que a experiência do parto é maravilhosa. “O corpo é perfeito. Nascemos para isso. É preciso foco e psicológico alinhado com o corpo”, afirmou. Ela conta que sempre planejou ter filhos pela via natural, por ser mais saudável. Quando soube que seria mãe, procurou por uma profissional que respeitaria sua escolha.

“É saudável esperar a hora que o bebê quer sair, a hora que se sente pronto”, falou a mãe que já estava em casa menos de 24 horas após o nascimento da filha. “No outro dia, às 9h, eu já estava liberada. Foi uma recuperação fantástica. Saí do hospital andando”, conta.

“Hoje, com quase 50 dias, respeitei o resguardo, não pegar peso e evitar subir escadas, mas o restante fiz normalmente. Com 30 dias, a médica liberou o uso do DIU, o que não é permitido em uma cesariana. Não tive laceração. Aurora nasceu pequena”, explica Jéssica que só teve de tomar antisséptico e anestésico para ajudar o corpo a se recuperar.

“O fato de não precisar ir para o centro cirúrgico, tomar anestesia e ser cortada foi muito relevante. Nunca havia ido a um centro cirúrgico”, diz a mãe sobre os motivos que a ajudaram a decidir pela via natural.”É saudável, fisiológico e porque como mamíferos, nascemos prontas para parir.”

Ela afirma que hoje existe uma “indústria de cesarianas”. “A cesariana tomou proporção de cem anos para cá. Antes, todas as mulheres, a humanidade, se criou pelo parto normal”, afirma. Além da naturalidade do procedimento, a médica de Jéssica garantiu que o parto também fosse humanizado.

“Eu fiz um plano de parto com tudo o que eu queria. O primeiro banho era meu, eu saí da sala com ela, não quis que aplicassem colírio. Várias coisas estavam no meu plano, tudo foi totalmente respeitado pela minha médica”, contou. “Minha doula também esteve ao meu lado o tempo todo, fazendo massagem, falando coisas legais. Ouvíamos as músicas que eu havia preparado. Tudo isso contribui para a gente ficar bem à vontade e tudo ser bem respeitoso.”

Capital das cesáreas

Goiânia é a capital com maior número de partos cesarianos em todo o país, com 71% dos procedimentos realizados pela via cirúrgica. É o que diz levantamento inédito realizado pelo Fiquem Sabendo, divulgado pelo portal DataSUS. No Brasil, 55% dos partos são cesáreas. Os dados mais recentes são de 2017. O índice constatado pelo estudo está muito acima do recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Uma ação do Ministério Público Federal (MPF) tenta desde 2010 obrigar a Agência Nacional de Saúde (ANS) reduzir os partos cesarianos no país. No entanto, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) suspendeu o cumprimento da sentença. Agora, o MPF recorre da decisão.

De acordo com o médico obstetra e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) Rui Gilberto, um conjunto de causas são responsáveis por esse número gigantesco de cesarianas no Brasil, bem maior que na maioria dos países do mundo. Ele define como “taxa vergonhosa” a quantidade de partos realizados cirurgicamente em comparação com as vias naturais.

“Vai desde o aspecto cultural, a própria população com esse entendimento de que o cesariano tem menos dor. O modelo de assistência obstétrica do Brasil, centrado no médico e não na equipe. Quando a equipe médica faz o acompanhamento de parto, a disponibilidade do grupo auxilia o aumento do número de partos normais. As baixas remunerações do sistema público de saúde e dos planos de saúde para o pagamento de um parto. Comodidade, tanto do paciente quanto do médico, nesse modelo que temos. Com isso, aumentamos muito o número de cesarianas”, enumerou.

Ou seja, comodidade e a baixa remuneração são fatores que levam diversos profissionais obstetras a preferirem pelos partos cirúrgicos, na opinião dele. “Receber de R$400 reais a R$1000 para acompanhar um normal que dura de 8 a 12 horas, enquanto em uma cesariana com uma hora, uma hora e meia está tudo resolvido”, conta.

Para Rui, a ação do MPF não é uma oposição à cesariana em si, mas ao abuso que é praticado no país. “Eu não entendo que ele [MPF] seja contra, mas é contra o número excessivo das cesarianas, como as universidades e escolas médicas também concordam. Se olharmos a evolução natural de um parto, cerca de 20 a 30% de todos necessitam de uma cesariana. 70%, 2/3, ou até 80% dos partos, podem ser realizados pela via normal. A natureza nos leva a esse tanto de indicação. Em geral, fazemos uma média de 60% de todos os partos cesariana. Em unidades privadas, esse número chega em torno de 90%”, informou Rui.

Já obstetra Poliana Mattedi, especializada em naturais, conta que 90% das suas pacientes já a procuram com o desejo de realizar parto normal. “Algumas ainda chegam querendo cesárea por desconhecimento, mas consigo convencer”, afirma.  A procura pela cesariana, segundo a médica, ocorre quase sempre por “comodidade e desconhecimento da fisiologia”. “É uma questão cultural, sem dúvida”, diz.

“Na época da minha mãe, ela passou por cesárea, método que chegou como salvador. Não precisa sentir dor, é mais rápido, marca e já resolve. Aí as nossas mães passaram por isso e perderam o conhecimento da fisiologia e do que é melhor”, explica. “Hoje, a mulher é dona de si e volta a conhecer sua fisiologia. Eu não acredito que a maioria queira mais cesárea. Estamos chegando a um meio a meio.”

De acordo com Poliana, os benefícios do parto normal vão desde à fisiologia da mãe até a saúde da criança. “A mulher foi feita para isso. No parto normal ela recebe alta em 24 horas, não ocorre corte em sete camadas do abdome. A mulher já está disposta a voltar a rotina de vida normal. O trabalho de parto leva a criança a fazer produção de cortisol, que ajuda a preparar o pulmão e o neném nasce mais saudável”, informa.

Flexibilização

Rui defende que é preciso equilibrar os números de cesáreas e normais. “Forçar um parto normal em uma que tem que fazer cesariana também é um desastre, um risco para a mãe e para o feto”, afirma. Ele ainda explica em quais casos a cirurgia é a melhor alternativa: “Em todos os casos de sofrimento fetal. Os casos em que a cabeça do neném é maior do que o estreito pélvico, o canal. Tem fetos grandes, de mães diabéticas. Insuficiência placentária, infecção ou hemorragias antes ou durante o parto, placentas baixas ou agarradas ao útero e pacientes que rompem a bolsa antes da hora”.

“De um modo geral, o desejo [das mães] é maior pela cesariana”, diz. Segundo ele, é preciso de um envolvimento maior da sociedade, das escolas médicas e dos setores organizados nessa pauta. “Temos que ter educação em saúde para diminuirmos o número excessivo, mas flexibilizar também não vai trazer danos para a população. Precisa baixar, mas não tanto”, opina Rui.