Os vazios científicos do Araguaia: compreendendo as lacunas de coleta da biodiversidade aquática
29 novembro 2025 às 21h00

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Por: João Carlos Nabout, Priscilla de Carvalho, Levi Carina Terribile e Ludgero Cardoso Galli Vieira – Especial para o Jornal Opção
O Araguaia é conhecido como um dos rios mais emblemáticos do Brasil, e suas águas sustentam uma biodiversidade impressionante: peixes, algas, zooplâncton, aves, plantas e tantos outros grupos que fazem deste rio um dos ecossistemas mais ricos do mundo, conforme temos repetidamente colocado aqui no “Araguaia em Foco”. Além disso, é um território de memórias afetivas, repleto de histórias familiares e de grupos de amigos sobre viagens, pescarias, praias, e com uma população e culturas encantadoras. Entretanto, ainda conhecemos apenas uma parte da biodiversidade aquática do Araguaia, o que nos leva a algumas perguntas fundamentais: Onde, afinal, as pesquisas sobre a vida aquática têm sido feitas? Por que alguns trechos do rio são bem estudados, enquanto outros permanecem quase desconhecidos?
Algumas dessas questões foram respondidas em um estudo recente publicado na revista Hydrobiologia, analisando mais de 2.300 registros de campo realizados ao longo de um século de pesquisas na Bacia do Araguaia, começando por expedições pioneiras que ocorreram ainda no século XIX até as pesquisas científicas atuais, inclusive no contexto dos nossos próprios projetos de pesquisa. O objetivo deste estudo foi mapear os lugares que os cientistas já conseguiram chegar para estudar três grupos biológicos dos ambientes aquáticos: fitoplâncton, zooplâncton e macrófitas.
Esses organismos já foram apresentados aos leitores desta coluna: o fitoplâncton e o zooplâncton, visíveis apenas ao microscópio, e as macrófitas, plantas aquáticas de grande importância ecológica. Juntos, esses organismos formam a base da cadeia alimentar do rio e, sem eles, não haveria peixes, tartarugas e aves aquáticas, ou seja, não haveria nem mesmo o Araguaia como o conhecemos. Por isso, mapear onde esses grupos já foram estudados e onde ainda não foram é um passo importante para entender o próprio funcionamento do ecossistema e orientar pesquisas futuras sobre a biodiversidade.
Como o estudo foi feito?
Para responder às perguntas acima, os pesquisadores realizaram um levantamento minucioso das informações que já foram publicadas em vários documentos científicos sobre a biodiversidade dos três grupos biológicos mencionados (fitoplâncton, zooplâncton e macrófitas aquáticas). O primeiro passo foi revisar toda a literatura científica existente: livros, artigos, dissertações, teses e até documentos antigos de expedições do século XIX. Muitos desses trabalhos não estavam facilmente acessíveis e alguns só foram encontrados em bibliotecas universitárias ou em arquivos pessoais de pesquisadores que já haviam trabalhado no Araguaia. Além disso, nem sempre os estudos mais antigos traziam informações precisas sobre os locais em que as coletas foram realizadas.
Por isso, a equipe teve que fazer um verdadeiro trabalho de detetive científico: buscar nos textos pistas como nomes de lagos, vilas, pontes, trechos de estrada, fazendas, hidrelétricas ou afluentes citados nos relatos de campo. A partir dessas descrições, foi preciso localizar exatamente onde cada coleta havia ocorrido. Em vários casos, os pesquisadores entraram em contato com autores de estudos antigos, guiando-se pela memória de quem já havia navegado ou pesquisado no Araguaia décadas antes.
Depois de identificar a localização de cada coleta, todas as informações foram sobrepostas a um mapa da bacia Tocantins–Araguaia. Nesse mapa, os pesquisadores também adicionaram uma série de dados sobre cada região, como a presença de hidrelétricas, a distância até universidades e centros de pesquisa, a proximidade de áreas protegidas, a extensão de rodovias e rotas fluviais, a variação de altitude e outras características físicas da paisagem (que indica regiões mais montanhosas ou planas, ou geodiversidade), e finalmente o índice de desenvolvimento humano (IDH) dos municípios.

A ideia é que essas informações pudessem auxiliar a responder a segunda pergunta do estudo (por que alguns trechos do rio são mais estudados em relação a outros?), a partir de duas hipóteses principais: acessibilidade – quão fácil é chegar até o local, e atratividade científica – o quanto a área atrai pesquisas, seja pela sua biodiversidade ou relevância socioambiental. Com tudo isso combinado, foi possível revelar os padrões que explicam onde as pesquisas se concentram e, principalmente, aonde elas não chegam. E o resultado desse esforço é, ao mesmo tempo, fascinante e preocupante.
Proximidade com centros de pesquisas, acessos fluviais e barragens são as regiões com mais esforços de coleta
O resultado mais importante do trabalho é que os esforços de coleta na região do Araguaia são influenciados pela distância de centros de pesquisa e acessos aos locais de coleta. À primeira vista, essa conclusão pode parecer intuitiva e, de certo modo, é. No entanto, um papel central da ciência é justamente confirmar empiricamente aquilo que muitas vezes aceitamos como evidente, revelando a dimensão real de seus efeitos. No caso do Araguaia, isso significa reconhecer que o caminho até o ponto de coleta (sobretudo quando feito pelo rio) e a distância dos centros de pesquisa não apenas molda o que conseguimos registrar, mas também define aquilo que permanece desconhecido.
Nas últimas décadas, as regiões mais próximas de universidades e centros de pesquisa receberam muito mais visitas de campo. É como se a proximidade geográfica colocasse esses ambientes no “radar da ciência”. Laboratórios próximos significam menor custo, mais facilidade logística, mais chances de um estudante ou pesquisador planejar uma ida rápida a campo. Já áreas distantes, que exigem longas viagens, embarcações específicas ou pernoites, tendem a ser deixadas para depois, e infelizmente muitas continuam esperando até hoje.
O Araguaia também é um rio onde o barco é tão importante quanto o carro. Em algumas porções, o acesso fluvial é a única forma segura de chegar a certos lagos. Por isso, áreas próximas a canais navegáveis se tornaram verdadeiros “pontos quentes” de pesquisas. Nos lagos de inundação do médio Araguaia próximos a cidades como Aruanã, Cocalinho e o distrito de Luiz Alves, por exemplo, a combinação de navegação e alta biodiversidade criou um cenário perfeito: são locais onde pesquisadores tradicionalmente conseguem chegar e coletar com relativa facilidade.

Em expedições científicas, boa parte do tempo não é gasto coletando, mas chegando até o local da coleta. Em trechos remotos do Araguaia, pode-se levar horas, às vezes um dia inteiro, apenas para encontrar a entrada de um lago oculto entre a vegetação da planície de inundação. Há locais onde o motor precisa ser levantado, e remar o barco sobre trechos rasos ou com troncos. Todas essas dificuldades, cuidados e bons procedimentos para os trabalhos de campo no Araguaia podem ser conferidos no documentário “Expedição Araguaia”.
Outro fator que o estudo revelou é que muitos estudos têm sido realizados em lagos formados a partir da construção de hidrelétricas. Esse elemento explica o grande volume de amostragens na bacia do rio Tocantins, onde vários reservatórios estão presentes. A legislação brasileira exige monitoramento ambiental contínuo desses reservatórios, como parte do licenciamento ambiental, e isso inclui análises regulares de qualidade da água, do plâncton e da vegetação aquática. Essa constatação evidencia um paradoxo, onde os ambientes mais alterados acabam sendo os mais estudados, enquanto áreas naturais, intactas e riquíssimas, como porções remotas da planície do Araguaia, permanecem desconhecidas pela ciência. Esses padrões mostram que o conhecimento biológico não é distribuído de forma uniforme, mas guiado por fatores muito humanos: custo, acessibilidade, obrigação legal e infraestrutura.
O vazio no mapa: o Norte do Araguaia
Quando todos os pontos de coleta são sobrepostos no mapa da bacia Tocantins–Araguaia, um padrão evidente aparece: há trechos com grande concentração de amostragens e extensas áreas praticamente sem nenhum registro científico. Esses “vazios” se concentram sobretudo no Norte do Araguaia e em regiões afastadas dos grandes tributários, onde o acesso é difícil e a presença de equipes de pesquisa tem sido historicamente rara.
Também chamam atenção as lacunas em zonas formadas por rios menores, córregos e riachos, ambientes naturalmente mais dinâmicos e sujeitos a variações sazonais intensas. Por causa desse dinamismo, pode-se esperar menor diversidade de organismos planctônicos nesses locais, mas isso não significa ausência dessas espécies; significa apenas que esses ambientes ainda não foram estudados.
Grande parte dessa falta de informação se explica pela logística: regiões remotas, distantes de estradas, centros de pesquisa e rotas de navegação, acabam saindo do roteiro da ciência. Assim, uma parcela significativa da biodiversidade aquática do Araguaia permanece invisível, não porque seja pobre ou irrelevante, mas porque a ciência ainda não conseguiu chegar até lá.
É importante destacar que até mesmo as áreas que já possuem registros estão longe de ser consideradas bem estudadas. Fitoplâncton, zooplâncton e macrófitas variam ao longo das estações, dos ciclos de cheia e seca e das mudanças climáticas recentes. Monitorar esses organismos exige coletas repetidas no tempo, e isso quase nunca aconteceu. No estudo publicado na Hydrobiologia, a maioria dos pontos amostrados contou com apenas uma ou duas visitas ao longo de décadas. Isso significa que, mesmo em locais onde há registros, ainda existe a falta de um conhecimento temporal, ou seja, as lacunas podem ser tão grandes quanto nas áreas completamente inexploradas.
Preenchendo as lacunas de conhecimento sobre biodiversidade no Araguaia
As lacunas identificadas no estudo, especialmente a ausência de inventários sistemáticos, a desigualdade espacial de amostragem e a baixa continuidade temporal dos dados, podem ser substancialmente reduzidas por iniciativas como o programa “Araguaia Vivo 2030” (@araguaiavivo), financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG) e gerenciado pela Tropical Water Research Alliance (TWRA), e do PPBio Araguaia (@ppbio.araguaia), executado pela PUC-Goiás com financiamento do CNPq, além do recém-implantado Programa Ecológico de Longa Duração no Araguaia, o “PELD Araguaia”, também financiado pela FAPEG. Esses programas atuam de forma complementar, organizando redes de pesquisa, padronizando protocolos de amostragem e promovendo campanhas de coleta distribuídas ao longo de toda a bacia. Em conjunto, eles oferecem a base necessária para a construção de séries temporais ecológicas, permitindo acompanhar tendências de longo prazo, identificar ciclos naturais, registrar eventos extremos (como secas severas) e avaliar impactos antrópicos de forma integrada.

Esses programas de pesquisa desempenham um papel central na redução das lacunas geográficas apontadas na literatura. Suas expedições percorrem não apenas o eixo principal do rio Araguaia, mas também tributários médios e pequenos riachos da bacia Araguaia, expandindo o alcance da amostragem para ambientes que historicamente permaneciam negligenciados. Ao acessar regiões remotas, os trabalhos têm revelado padrões de biodiversidade que não eram conhecidos anteriormente, contribuindo para uma caracterização das comunidades aquáticas e de seu funcionamento ecológico.
Esse esforço já produz resultados concretos. Um exemplo é o primeiro registro da macrófita aquática Ludwigia grandiflora para a bacia do Araguaia, obtido durante campanhas do programa. Embora a espécie já fosse conhecida em outras regiões do Brasil como no Pantanal, ela permanecia ausente dos registros para o Araguaia devido à falta de coletas sistemáticas. Esse caso ilustra como a expansão do esforço amostral, associada a redes de pesquisa bem estruturadas, preenche lacunas de distribuição das espécies e fortalece a compreensão sobre a biodiversidade da região.
Assim, iniciativas como o Araguaia Vivo, o PPBio Araguaia e o PELD Araguaia não apenas mitigam as lacunas evidenciadas pelo estudo, mas também estabelecem uma infraestrutura científica duradoura, capaz de sustentar diagnósticos ambientais e de acompanhar transformações ecológicas em ritmos compatíveis com as mudanças que hoje se aceleram na bacia Tocantins–Araguaia. Mais do que preencher lacunas pontuais, esses projetos cumprem uma função estratégica: garantir que o conhecimento sobre a biodiversidade e o funcionamento dos ecossistemas aquáticos do Cerrado avance de maneira contínua, integrada e capaz de orientar políticas públicas, conservação e gestão territorial.
Confira quem são os autores do artigo
João Carlos Nabout – Professor na Universidade Estadual de Goiás, coordenador da Atividade de “biodiversidade aquática” no Programa “Araguaia Vivo 2030” da TWRA, pesquisador do “PPBio Araguaia” e coordenador do “PELD Araguaia”.
Priscilla Carvalho – Professora na Universidade Federal de Goiás, vice-coordenadora da Atividade de “biodiversidade aquática” no Programa “Araguaia Vivo 2030” da TWRA, pesquisadora no “PPBio Araguaia” e no “PELD Araguaia”.
Levi Carina Terribile – Professora na Universidade Federal de Jataí (UFJ) e vice-coordenadora da Atividade “Dinâmica espaço-temporal da sustentabilidade socioambiental” do Programa “Araguaia Vivo 2030” da TWRA, pesquisador do “PPBio Araguaia” e do “PELD Araguaia.”
Ludgero Cardoso Galli Vieira – Professor da Universidade de Brasília (FUP/UnB) e Vice-Coordenador do programa “Araguaia Vivo 2030” da TWRA e do “PPBio Araguaia”, e pesquisador do “PELD Araguaia”.
