Se o mundo do futebol está em crise, muito mais está o mundo da saúde, obviamente. O cenário é pior no Brasil, onde empresários querem fazer seu próprio plano de vacinação

A segunda-feira, 19, começou com uma novidade que abalou as estruturas do futebol: 12 dos maiores clubes do mundo – 6 ingleses (Liverpool, United, City, Chelsea, Tottenham e Arsenal), 3 espanhóis (Real Madrid, Atlético de Madrid e Barcelona) e 3 italianos (Juventus, Milan e Internazionale) – anunciaram sua saída da Uefa Champions League e a criação de uma liga independente que renderia a cada um pelo menos 350 milhões de euros anuais (R$ 2,35 bilhões).

Estava criada a Superliga. Uma forma de os clubes se livrarem do cabresto das entidades reguladoras, como a Fifa [Federação Internacional de Futebol] e a Uefa [União das Federações Europeias de Futebol], para maximizarem seus lucros. A questão de fundo era esta: mais dinheiro para o meu pirão. 

Só que o futebol chama-se futebol e não futebol americano. Este, com adjetivo, pertence a outra esfera de entretenimento, criada nos Estados Unidos e que serve muito bem aos interesses da cultura daquela nação, por meio de sua liga, a NFL. Eu mesmo gosto bastante de futebol americano. É um show!

Só que com o futebol – assim, sem adjetivo pátrio – é diferente. Por isso a Superliga ruiu. 

Dois dias depois, está cancelada a Superliga. Os clubes ingleses saíram fora. Na Inglaterra, berço do esporte, existe uma tradição de mais de 150 anos de bola rolando e mais de 7 mil clubes de futebol (entre profissionais, semiprofissionais e amadores). Os que integram o chamado “Big Six”, citados acima e que compunham o projeto malfadado devem o que são hoje a essa história.

Por isso nem seus próprios torcedores aceitaram a traição aos princípios. Seu sentimento vive de algo que o dinheiro não pode comprar: paixão, pertencimento, tradição.

Na noite da segunda-feira em que o projeto foi lançado, o presidente do Real Madrid, Florentino Pérez, numa entrevista desastrada, havia dito algo sobre a Superliga que guarda similaridade com o momento pandêmico no Brasil. Leia:

“Não é uma liga de ricos. É uma liga para salvar o futebol com solidariedade.”

Em outras palavras, ele disse que a concentração inicial da montanha de dinheiro na dúzia de superclubes acabaria gerando mais riquezas a todo o futebol. O modo como isso se daria? Por exemplo, por meio da compra de atletas dos clubes menores(!). 

É uma desculpa mercadológica para um problema muito maior e que mexe com o todo de uma população. Algo semelhante a empresários quererem se imunizar e a seus próprios empregados fora da fila do SUS, comprando vacinas com seu dinheiro e dizendo que, com isso, estavam ajudando a saúde pública a ter menos gastos. Sim, faria sentido se toda a população tivesse acesso imediato à vacina!

Falta ao povo brasileiro (e, infelizmente, parece que continuará faltando) resistir ao embuste e exigir o respeito à fila única do SUS, assim como torcedores, comentaristas, jogadores, ex-jogadores e treinadores repudiaram a atitude dinheirista dos gigantes do futebol. 

Se o mundo do futebol está em crise, muito mais está o mundo da saúde, obviamente. No Brasil, então, a situação é aterrorizadora. Se empresários querem criar uma espécie de “superliga da vacina”, que façam para o SUS. Isso, sim, seria uma atitude patriota, para usar uma palavra da moda.