Embora a adoção e o acolhimento sejam reconhecidos como gestos nobres, a realidade mostra um cenário em que o sofrimento animal se mistura ao adoecimento humano – e, cada vez mais, à exploração financeira. O que deveria ser abrigo e cuidado torna-se, em muitos casos, palco de negligência, abandono e fraude.

Nesse contexto, acumuladores que se apresentam como defensores da causa e pessoas que usam o resgate para lucrar fazem vítimas duplas: os animais e a população que, movida pela boa-fé, doa dinheiro sem transparência.

É o que relata Carla Cristiane Ferreira Moreira Cavadas, diretora da Organização Social (OS) Focinho Caridoso, que decidiu romper o silêncio sobre o lado obscuro da proteção animal em Goiás. Ela afirma que “quando você escuta uma pessoa falando assim, ah, eu sou da proteção animal, começa a conversar com essa pessoa e faz só uma pergunta: quantos abrigos você já visitou? Quantos abrigos você já ajudou, colocou seu pezinho lá dentro? Porque é muito fácil, ‘ah, eu faço doação na rede social’”.

Carla Cristiane Ferreira Moreira Cavadas | Foto: Jornal Opção/ Rodrigo Santos

A fala escancara a principal crítica: a rede social tornou-se, para muitos, vitrine de falsa benevolência. Pessoas que se dizem protetores pedem doações, divulgam fotos de animais – muitas vezes já mortos há anos – e acumulam valores significativos.

Carla observa que um perfil com grande audiência pode arrecadar quantias altas apenas com pedidos genéricos: “Se você é uma protetora e tem 40 mil seguidores e pede um real, e os 40 mil seguidores te dão, são 40 mil reais, em somatória. Isso precisa ser falado”.

Proteção animal: quando o acolhimento vira risco

Enquanto parte da sociedade acredita que qualquer pessoa que recolhe cães e gatos da rua está fazendo o bem, a realidade é bem mais complexa. Estudos já apontam que o acúmulo de animais em condições insalubres pode gerar riscos ambientais, disseminar zoonoses e provocar sofrimento físico e psicológico – tanto nos bichos quanto nos tutores.

Um estudo realizado pelo Departamento de Medicina Veterinária Preventiva da Escola de Veterinária da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) reforça esse quadro ao explicar que, quando tutores acumuladores vivem sem condições de oferecer cuidados básicos, a situação deixa de ser doméstica e passa a ser problema de saúde pública.

De acordo com o levantamento, um acumulador de animais é alguém que mantém número excessivo de bichos sem alimentação adequada, higiene, atendimento veterinário ou condições mínimas de convivência. A síndrome, muitas vezes relacionada a transtornos psíquicos, como a chamada síndrome de Noé, variante da síndrome de Diógenes, leva ao aprisionamento de dezenas de animais em espaços pequenos, sujos e sem ventilação. O resultado? Maus-tratos, mortalidade alta e risco de contágio de doenças graves.

Carla confirma o que os dados indicam. Em suas visitas aos abrigos, ela encontrou espaços completamente degradados, onde humanos e animais vivem sob o mesmo sofrimento. Ela relata cenas duras que encontrou em Goiás, e que ninguém quer comentar: “Tem abrigo nesse momento onde existe a suspeita de que animais doentes estavam sendo mortos dentro do abrigo”. Segundo ela, o caso foi levado às autoridades e segue em trâmite.

Apesar disso, grande parte da discussão pública sobre maus-tratos se resume ao agressor direto: o tutor que espanca, abandona ou prende sem comida. Para Carla, é preciso ampliar o olhar e enxergar que, dentro da própria rede de proteção, há agentes do sofrimento.

Cada cabeça é um Pix

O fenômeno não se resume à falta de preparo psicológico dos acumuladores. Há quem transforme o resgate em oportunidade financeira. Assim, o que deveria ser cuidado se torna negócio lucrativo. Carla afirma que muitos desses supostos protetores sabem que a dor comove: fotos de animais resgatados estampam campanhas emocionais nas redes, enquanto o dinheiro arrecadado é usado para fins particulares.

“Muitos protetores pedem Pix na rede social e o animal já morreu faz dois anos”, denuncia. Para quem acompanha o tema de longe, a acusação pode parecer exagero, mas a diretora insiste: isso acontece e com frequência preocupante.

Ela explica que existe resistência quando se fala em reduzir lotações de abrigos por meio de adoções responsáveis. Isso porque, segundo ela, parte desses protetores não quer abrir mão dos animais que mantêm, já que cada um representa uma potencial doação: “Cada cabeça daquele animal vale um Pix. Se ele tiver 30 animais, ele não vai ter o rendimento mensal que tem com 150”.

O dinheiro, argumenta, veio antes do cuidado. E a consequência é de:
– cães passando fome;
– animais doentes sem atendimento;
– tutores lucrando e vivendo confortavelmente às custas de fotos de sofrimento.

Carla descreve um padrão recorrente: quando alguém se disponibiliza a doar, mas pede para visitar o abrigo antes, surgem desculpas. “Se você disser ‘quero doar R$ 500, mas antes quero visitar’, eu te dou esses R$ 500 se o protetor disser que você pode. Ele vai inventar mil histórias para você não ir”.

Segundo ela, a recusa quase sempre revela a realidade: espaços clandestinos, sujos, superlotados e sem qualquer estrutura mínima. Locais onde animais passam fome, comem as próprias fezes e, em casos extremos, morrem sem que seus corpos sejam sequer retirados imediatamente.

O acumulador: Quando o ajudante precisa de ajuda

Em suas visitas a diferentes localidades, Carla relata encontrar ambientes improvisados e insalubres, onde garrafas plásticas, papelão, lixo e fezes se acumulam junto aos animais. Embora a motivação inicial possa ter sido o resgate por compaixão, o cenário evolui para um quadro clínico mais amplo. “Você vê tudo misturado, não tem como você ajudar os animais”, comenta.

Segundo ela, nesses casos, nenhuma doação é capaz de reverter a situação sem que o próprio responsável receba acompanhamento especializado. “Aquele ser humano precisa ser ajudado em caráter de urgência, porque ele é acumulador.”

A diretora narra que, em muitos casos, os acumuladores negam a própria condição, o que dificulta ações de apoio. “Todo acumulador […] fala que não é acumulador”, afirmou. Esse negacionismo, comum em quadros associados a transtornos mentais, impede o reconhecimento do problema e dificulta a implementação de intervenções, especialmente quando a situação envolve seres vivos sujeitos à fome, doenças e dor.

Para Carla, o caminho mais efetivo passa pela assistência social e pela articulação com políticas públicas, de modo a reconstruir a estrutura mínima de cuidado, tanto para as pessoas quanto para os animais.

O peso do silêncio

O relato de Carla não é isolado, mas, como ela mesma ressalta, poucos têm coragem de falar publicamente. “Quem, até hoje, falou isso? Ninguém”. O motivo é simples: existem grupos organizados – compostos por protetores, apoiadores e seguidores – que atacam verbalmente quem expõe essa realidade.

“Muitas pessoas não gostam da Carla, da Focinho Caridoso, porque ela não tem receio, medo e não deve nada. Ninguém fala a realidade que ela enxerga”, explica. Essa hostilidade alimenta o silêncio. E, enquanto isso, denúncias de maus-tratos dentro de abrigos continuam aumentando.

Para ela, o problema só será enfrentado quando o poder público e sociedade se envolverem de verdade. A diretora argumenta que parlamentares e gestores precisam conhecer, presencialmente, as condições dos abrigos que dizem apoiar.

“Todos esses vereadores e deputados, precisam visitar os abrigos. Precisam conhecer o que é a rede de proteção animal”.

Ela acredita que catalogar espaços e avaliar sua real estrutura é o primeiro passo para separar quem trabalha com seriedade de quem se aproveita da causa.

A gênese da Focinho Caridoso e a busca por uma proteção animal estruturada

Apesar do engajamento, Carla reconhece os desafios da rotina. Ela narra jornadas intensas, com compromissos sete dias por semana, além da responsabilidade de acompanhar e apoiar casos constantemente. “De segunda a segunda”, resume.

Ainda assim, relata que o retorno vem da possibilidade de promover adoções responsáveis e transformar a vida dos animais. Segundo ela, recusar uma adoção possível pode significar condenar o animal a uma “subvida” no abrigo, razão pela qual a equipe se dedica a deslocamentos e entrevistas, visando assegurar segurança e bem-estar aos novos tutores.

Em sua visão, o debate sobre proteção animal precisa superar o campo da denúncia e alcançar uma discussão mais profunda sobre conscientização, transparência e responsabilidade compartilhada. 

A diretora da Focinho Caridoso também dirige suas críticas a políticas públicas que, em sua visão, são mais eleitoreiras do que efetivas. Ela cita os “castramóveis” – unidades móveis de castração. “Os projetos que a gente vê, são os castramóveis que estão aí a tira colo, fazendo castração, porque ano que vem é ano eleitoral.”

Ela reconhece a importância da castração, mas alerta para o foco excessivo e desequilibrado. “O presidente do Conselho de Medicina Veterinária, num Congresso em que eu estava, deixou bem claro. Ele disse: ‘Castração é super importante, porém não é tudo. Há animais morrendo de cinomose e parvovirose, por conta da falta de vacinação’. Esta fala condiz com nosso pensamento.”

O resultado, afirma, pode ser trágico. “Há animais morrendo na mesa de cirurgia quando vão castrar ou quando estão com cinomose. Mas ninguém fala sobre isso. Só vamos apresentar números positivos? Então, a gente tem que fazer o que é correto.”

Carla também reconhece que, apesar de existirem casos graves de negligência e uso indevido de doações, há protetores comprometidos, que tratam os animais com dedicação e responsabilidade. “Essas pessoas são fundamentais para a manutenção de uma rede de apoio efetiva e digna”, ressalta.

Assim, ela defende que o poder público crie mecanismos para mapear abrigos, identificar boas práticas e monitorar irregularidades, garantindo transparência e qualidade de atendimento.

Nesse aspecto, segundo Carla, a Focinho Caridoso está pronta para colaborar com o Poder Público para compartilhar sua experiência no manejo responsável de animais resgatados, auxiliar na construção de protocolos de acolhimento e bem-estar, e integrar redes de proteção que unam organizações da sociedade civil, veterinários e órgãos municipais em prol de uma política pública efetiva de proteção animal.

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