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Antônio Marcos. Eu o conheci na semana passada. Ele estava na Praça Maria Benvinda de Jesus, que fica na rua 75, Centro. Um jovem ainda, mas com um porém. Nele, a pobreza e a fome anteciparam o trabalho do tempo, deixando em seu rosto uma velhice nascida da sua sofrida sobrevivência. É catador de material reciclável. Em relação a muitos que saem por aí com um saco nas costas procurando material reciclável, ele tem uma vantagem: possui um carrinho. E este estava bem cheio. Na praça em que o encontrei, recolheu muita coisa.

Eu estava indo almoçar quando ele me abordou. Vê-lo envolvido em seu trabalho me fez parar para ouvi-lo. Há muitas pessoas contando lorotas mais diversas para morder o nosso dinheiro. Pode ser que o dinheiro que lhe dei não fosse realmente para ele almoçar conforme justificou. Antes de pegar a carteira, conversei um pouco com ele. Foi aí que me disse seu nome e que veio do Tocantins para Goiás. E justificou o seu trabalho de reciclagem com um provérbio popular muito conhecido: “A mente vazia é oficina do diabo”. Achei interessante ele saber desse perigo de cabeça vazia.

Homem regando uma babosa que plantou numa pracinha do Centro | Foto: Sinésio Dioliveira

Nessa praça, que é bem pequena, há cinco árvores: dois oitizeiros, dois ipês (amarelo e rosa) e uma moringueira. Esta constantemente tem seus galhos quebrados por pessoas que a consomem por ser uma árvore geradora de benefícios à saúde. Há também um jasmim-laranjeira (que alguns conhecem como murta) de quase três metros, uma babosa, um cajá-manga de um metro e pouco e uma laranjeira também ainda pequena. As três últimas espécies foram plantadas por um morador da praça, que os rega sempre. O que já presenciei duas vezes.

Ao contrário do homem que rega as plantas, algumas pessoas têm usado a praça de modo impróprio, de modo porco: se valendo de um canto dela como ponto de descarte de materiais diversos, que são deixados por lá à noite com a finalidade esconder seu gesto de incivilidade, seu gesto de desrespeito para com a cidade.

Tudo bem que cabeça vazia é oficina do diabo, conforme me disse o jovem Antônio Marcos, mas a cabeça cheia de males mais diversos é muito pior: é uma oficina de legião de demônios. Foi em cabeças assim — adoecidas de ambição, de ódio e de vaidade disfarçada de ideal — que se forjaram alguns dos piores momentos da história da humanidade. De cabeças tomadas por legião de demônios, vieram as cruzadas, as fogueiras da Inquisição, o totalitarismo hitlerista, que exterminou milhões de vida de religiosos, minorias étnicas e pessoas homossexuais.

O vazio é perigoso sim, porém o transbordamento de ideias sórdidas, disfarçadas de razão, é o que realmente põe fogo no mundo. Esse fogo tem a ver com o que disse o poeta Carlos Drummond de Andrade num trecho do poema “A flor e a náusea”: Todos os homens voltam para casa. / Estão menos livres mas levam jornais / e soletram o mundo, sabendo que o perdem”. Estamos, sim, perdendo o mundo.

Voltando ao jovem Antônio Marcos, sim, ele estava faminto de verdade. Quando retornei do almoço, o encontrei sob a sombra generosa de um frondoso jamelão (árvore injustamente abominada em Goiânia) na mesma rua da praça, com um marmitex nas mãos. Comia com tanta entrega que nem notou a minha passagem. Percebi que, naquele instante, o mundo para ele se resumisse ao ato de matar a sua fome.

Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza

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