Dois irmãos youtubers, famosos por vídeos divertidos e inusitados na internet, decidem fazer um longa-metragem. A primeira reação de qualquer amante da sétima arte é, por óbvio, algo como “Ah, por favor, não!”. Porém, chocando até mesmo os mais conservadores da academia, o que nasce dessa ideia é simplesmente um dos melhores filmes de terror de todos os tempos, elogiado por nomes como Jordan Peele e Ari Aster (os queridinhos do horror moderno) e referido por Peter Jackson – sim, aquele Peter Jackson – como “um dos filmes de terror mais intensos” que ele assistiu em anos.

Estamos falando de Fale Comigo (Talk to Me), dos australianos Danny e Michael Philippou, ainda em cartaz em alguns cinemas de Goiânia. A premissa do filme, que tem em seu projeto de produção o estúdio A24 (de filmes como Hereditário, A Bruxa, Midsommar e o premiado Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo), é, à primeira vista, batida e nada inovadora: um grupo de adolescentes que, por diversão, decide mexer com o sobrenatural, e a partir daí, tem a vida virada de cabeça para baixo.

No entanto, é exatamente como os irmãos Philippou desenvolvem a trama a partir desse clichê que faz toda a diferença. Os diretores conseguem traçar um paralelo metafórico com o vício em drogas para mostrar jovens recorrendo à possessão de espíritos para preencher algum vazio. Seja para reprimir o horrível sentimento de perder a mãe tragicamente, ou seja para sufocar a incômoda ausência de um irmão, vemos jovens entrando em êxtase ao terem seus corpos tomados por espíritos de toda sorte.

Talvez, o maior trunfo dos irmãos Philippou seja saber com quem eles estão falando – adolescentes e jovens adultos (que são justamente o público-alvo do canal deles no YouTube) – e retratar fielmente como seria a reação desse perfil diante das situações que se desenrolam no filme.

As cenas inusitadas de possessão são uma atração à parte: um misto de bizarro e assustador que mantém o espectador preso justamente pela estranheza. Aliás, Fale Comigo pode ser considerado um filme que não tem “momentos-alívio” – aquela velha cena em que ‘não acontece nada importante’ e você consegue até trocar alguns comentários com o amigo do lado ou ir buscar a pipoca. Não. Os diretores conseguem a proeza de manter os espectadores hipnotizados durante pouco mais de 1 hora e meia, sem piscar, mal respirando.

Cena de Fale Comigo | Foto: Reprodução

As reflexões passadas no filme, sem qualquer vestígio de moralismo ou sermão, também devem ser destacadas. O filme bebe da fonte da doutrina espírita ao ilustrar até que ponto uma mente sã pode alucinar e ser perturbada, por forças obscuras e ressentidas, em busca da sensação de ser amada e de um conforto contra a dor da perda. E tudo isso disposto em uma atmosfera de tensão que não te dá susto: te dá medo – e é nisso que consiste o bom filme de terror.

É inevitável se retorcer de medo, angústia e náusea em vários momentos do filme, como a cena em que um garoto tenta repetidamente quebrar o próprio crânio contra a parede de um hospital, ou quando um jovem, possuído por um espírito lascivo, dá beijos molhados em um cachorro enquanto se retorce no chão diante das câmeras de celular de adolescentes rindo e se divertindo com a imagem grotesca.

O final de Fale Comigo é um espetáculo memorável e, explicitamente, uma ode à doutrina espírita. É extremamente comum filmes de terror terem uma boa condução ao longo da trama, mas botarem tudo a perder no desfecho, como se os responsáveis pela obra tivessem a infeliz obrigação de dar soluções rápidas e fáceis para os difíceis problemas que infernizaram os personagens na história. Não em Fale Comigo.

Durante os minutos finais, vemos uma história sendo amarrada de forma avassaladora e imprevisível na frente dos olhares incrédulos dos espectadores. Não deixei de notar o casal atrás de mim deixando escapar “Meu Deus!” enquanto o fim do filme ascendia como um vulcão em atividade na nossa frente.

Fale Comigo é, definitivamente, o filme que devolve a esperança aos fãs de terror de que, sim: ainda se fazem bons filmes para dar medo. Pretendo assistir ao filme mais algumas vezes, mas enquanto isso, o abajur do meu quarto segue aceso.

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