José sabia que o regime de chuvas vinha mudando, e desde criança eu o ouvia dizer que a Terra ia acabar em fogo se o “homi” continuasse destruindo a natureza

Daniella França

— Já matei mais de “cinquenta onça”. Pintada, parda e preta.

— E hoje, o senhor teria coragem de matar onça de novo?

— Não, “minina”. Naquela época a cabeça era outra, eram “otros tempo”. Era nosso costume caçá. Hoje a gente entende que não pode. Coitado “dos bicho”.

Tive esse diálogo ano passado, 2022, numa tarde fria em Foz do Iguaçu, quando mostrava para um homem, que havia caçado dezenas de onças, as fotos de onças que eu havia fotografado no Pantanal.

Esse senhor é este que está na borda esquerda da foto, com um revlver na cintura. Os cachorros de caça eram dele e, juntos, haviam acabado de abater a onça, que está no centro, morta.

Esse homem, que na época da fotografia tinha trinta e poucos anos, se aproximava dos 80 anos de idade quando tivemos essa conversa. Veio de uma realidade em que a caça era parte do cotidiano de quem vivia no interior, seja pra comer, seja para proteger os animais de criação, seja como hábito cultural do Brasil de séculos passados.

José sabia o nome de todos passarinhos e frutas do Cerrado

Quando o conheci, ele já havia parado com as caçadas. Gostava mesmo era de pescar e de se enfiar no meio do mato pra ver “os pé de pau” (jeito que tinha de chamar árvores grandes de madeira de lei) que, se deixasse, ficava horas contemplando. Ele sabia o nome de todos os passarinhos do campo e de todas as frutas do Cerrado. Ele sentia cheiro de chuva antes da chuva cair.

José Honori: um naturalista que sabia mais do que muitos acadêmicos | Foto: Arquivo de família

Escutei-o dizendo, diversas vezes, que os pivôs (método “moderno” de irrigação de lavouras) estavam secando os rios do Cerrado. Ele me disse que o atropelamento “dos bicho” no Sudoeste goiano, onde morou durante anos, fazia dó, e que o restinho de reserva de mato que tinham pra viver estava sendo destruído por pessoas que não tinham mais onde enfiar dinheiro. Também sabia que o regime de chuvas vinha mudando, e desde criança eu o ouvia dizer que a Terra ia acabar em fogo se o “homi” continuasse destruindo a natureza.

Esse senhor foi o maior naturalista que conheci na vida. Esse senhor faleceu ano passado, depois de ter me ensinado tudo que sei de bicho e de mato. Ele se chamava José e ele era meu pai.

Ouso dizer que meu pai tinha um conhecimento de ecologia e história natural que poucos doutores em Biologia têm, e foi graças às vivências que tive com ele, no interior de Goiás, que aprendi a ser uma pessoa sensível ao que me rodeia. Aprendi um pouquinho da capacidade que tinha de ler a natureza observando o que ela tem a nos dizer. E a natureza, minha gente, fala muito mais do que qualquer livro.

Onça morta (com filhote ao lado) recentemente | Foto: Reprodução

Ele foi um caçador de onças durante anos da sua juventude, em uma época em que nem existia fiscalização ambiental e nem entendimento do quanto aquilo era errado. O diálogo do início deste texto, tivemos mais ou menos três meses antes de ele morrer. Era possível ver vergonha em seus olhos quando falávamos do assunto, por isso eu não insistia muito. No entanto, me senti aliviada ao saber que ele não só havia mudado de ideia, como teria aprendido a importância da conservação das espécies. Parou de acreditar que “podia matá porque tinha bicho demais” e passou a dizer que “tem que protegê o pouco que sobra, minha fia!”.

Não defendo os atos do meu pai e nem quero justificá-los por intermédio destas palavras, mas me emocionou muito quando completou suas considerações, aquele dia, dizendo que tinha “um orgulho danado” de mim pelo que eu estava fazendo da minha vida.

Que bom que os tempos mudaram, e que um caçador de onça criou uma filha conservacionista que agora protegia o que ele ajudou a caçar. Que bom que esse senhor passou a entender, lendo o ambiente à sua volta, que precisamos parar de destruir, pois a natureza tem limites, precisa ser respeitada. Obrigada, meu querido pai.

Estamos no ano de 2023, e matar uma onça e seu filhote, arrancando-lhes as cabeças para fazer chacota da situação, como mostrado em vídeo amplamente divulgado recentemente, é ter respeito nenhum pela vida e por tudo que a natureza representa. Não podemos e não aceitaremos mais crimes como esse, incentivado pela certeza de impunidade dos criminosos.

Precisamos exigir que as autoridades responsáveis façam alguma coisa. Então venho aqui hoje, dia 28 de março de 2023, pedir #justiçapelasonças e justiça pela vida.

Onça só pode ser alvo, se for da nossa proteção.

Daniella França é bióloga.