O Bêbado e a Equilibrista, de Aldir Blanc, tem tudo a ver com o coronavírus
04 maio 2020 às 11h30

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Compositor morreu nesta madrugada vítima da Covid-19, mas sua canção mais famosa pode ser vista sob a ótica do momento atual

Morreu nessa madrugada o compositor Aldir Blanc, autor, ao lado de João Bosco, aquele que foi chamado de Hino da Anistia. Composta em 1979, quando a ditadura civil-militar dava os últimos suspiros, a canção o Bêbado e a Equilibrista foi imortalizada na voz de Elis Regina – para muitos, a maior cantora brasileira de todos os tempos.
Mesmo que o regime caminhasse para o fim – o que efetivamente só ocorreu com a eleição de Tancredo Neves, pelo Colégio Eleitoral –, a censura ainda era forte. Por isso, Blanc lançou mão de uma série de metáforas para ludibriar os censores.
O resultado foi uma letra forte, brilhantemente interpretada por Elis, que está no rol das maiores obras da música popular brasileira. Mesmo quatro décadas depois, continua atualíssima.
Em homenagem (e já pedindo perdão a Blanc), tomei a liberdade de interpretar os versos à luz do momento atual. Segue:
Caía a tarde feito um viaduto
Original
A referência é à queda de um viaduto no Rio de Janeiro, em pleno período de milagre econômico. Portanto, é uma alusão à falsa prosperidade. Remete, ainda, ao fim de um período de liberdade (o dia) para o início da escuridão (a ditadura).
Hoje
O Brasil vivia, ainda que timidamente, um período de otimismo contido. A promessa de uma nação mais liberal acenava com a esperança de crescimento econômico. O setor econômico, especialmente, entrou o ano projetando crescimento.
O coronavírus derrubou bruscamente essa expectativa. A economia voltou a entrar em um período de escuridão, sem perspectivas de futuro.
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos
Original

Referência ao personagem Carlitos, do cineasta Charles Chaplin. O bêbado representava artistas, jornalistas e pessoas que tinham comportamento considerado inadequado pelo regime militar. Carlitos também pode ser visto como o trabalhador, classe mais simples da sociedade.
Eles vestiam luto, porque tinham a liberdade cerceada, amigos eram torturados, mortos ou exilados.
Hoje
Artistas e jornalistas novamente são alvo de perseguição. Muitos são atacados nas ruas, com agressões físicas e verbais. O trabalho de ambos é depreciado fortemente por alguns segmentos sociais.
O trabalhador, alcançado por alta do desemprego, corte nos salários ou suspensão de contratos voltam a vestir o luto. São quase 13 milhões de desempregados no Brasil, segundo o IBGE.
A Lua, tal qual a dona de um bordel
Pedia a cada estrela fira
Um brilho de aluguel
Original
A Lua são os políticos (há quem a relacione à Rede Globo) e as estrelas frias são os militares que estavam no poder. Os versos denunciam a relação promíscua entre eles, tal como ocorre nos bordéis, onde uma pessoa explora o corpo de outras para tirar vantagens.
Hoje
A promessa da “nova política” cai por terra com a aproximação do governo federal com o Centrão. A troca de cargos por governabilidade – comum em todos os governos desde a redemocratização – segue sendo a rotina da República brasileira.
E nuvens lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco!
Louco!
Original
O mata-borrão era utilizado para “limpar” sujeiras das canetas tinteiros usadas na época. Trata-se de uma alusão direta aos torturadores (nuvens) e seus instrumentos (o DOI-CODI).
Hoje
Movimentos pedindo a volta da ditadura, um novo Ato Institucional número 5 (AI-5) e a eliminação de adversários (genericamente chamados de esquerdistas e comunistas) surgem aqui e acolá.
A Covid-19 é vista como instrumento de quem quer desestabilizar o governo. Por isso, deve ser removida do noticiário, como fazia o mata-borrão.
O bêbado com chapéu-coco
Fazia irreverências mil
Pra noite do Brasil
Original
Mais uma alusão ao personagem Carlitos, representando o povo mais simples. O brasileiro não deixava de ser irreverente mesmo na noite, ou seja, a ditadura, pela qual o Brasil passava.
Hoje
A irreverência – que muitas vezes esbarra na leniência – do brasileiro agora é representada pelos memes e piadas sobre o momento que viralizam nas redes sociais. Mesmo diante da pandemia, da incerteza e da crise econômica, o brasileiro não deixa de fazer piada consigo mesmo.
Meu Brasil
Que sonha com a volta do irmão do Henfil
E tanta gente que partiu
Num rabo de foguete
Original
Irmão do Henfil é o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. Assim como muitos outros, Betinho foi exilado. O Brasil – ou parte dele – desejava o fim do exílio.
Hoje
Mais de 7 mil brasileiros partiram vítimas da Covid-19. Enquanto o mundo inteiro sonha com a cura ou uma vacina contra o coronavírus, outros negam a gravidade do problema ou o enxergam como um instrumento político.
Chora
A nossa Pátria mãe gentil
Choram Marias e Clarisses
No solo do Brasil
Original
Maria era a mãe do metalúrgico Manuel Fiel Filho. Clarisse, esposa do jornalista Vladmir Herzog. Ambos morreram nos porões do regime.

Hoje
Em nosso solo, mais de 7 mil corpos foram sepultados por causa da Covid-19.
No Amapá, Maria só pôde se despedir do filho, Moacyr Silva, porque o carro da funerária mudou o trajeto até o cemitério para passar diante da casa dela.
Assim, são milhares de mães, filhos, viúvas, viúvos que não tiveram a oportunidade de se despedir, como muitas vezes ocorria com os desaparecidos políticos.
Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança
Dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar
Original
É um chamado para a luta, que as mortes não sejam inúteis, pois há esperança do fim da opressão, tortura e morte e a volta à liberdade. Ainda que a esperança, vez ou outra, volte a ser abalada.
Hoje
Enquanto o surgimento de uma cura ou vacina não se concretiza, a esperança é de que a morte de tantos brasileiros não seja vilipendiada, que a dor das famílias não seja instrumentalizada e que as autoridades atuem com responsabilidade.
Sinais vindos do Palácio do Planalto, mas não só de lá, têm machucado a esperança dos brasileiros – e manipulado a de tantos outros mais. As ela, a esperança, continua.
Azar!
A esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar
Original
O azar, aqui, não é mais dos brasileiros vítimas do regime, mas do próprio regime. Mesmo ainda imersos na noite da ditadura, o equilibrista, simbolizando os artistas, segue seu show, ciente de que um dia a democracia retornará.
Hoje
Mesmo com o acúmulo de casos e mortes por Covid-19, mesmo com sinais autoritários do governo federal e o crescimento de movimentos que pedem a volta da ditatura, a vida tem de continuar.