Novo arcabouço fiscal: o governo Lula da Silva segue liberal

03 abril 2023 às 10h07

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Lucas Bastos de Souza
Especial para o Jornal Opção
Já há algumas semanas, falava-se na bolha econômica somente sobre uma pauta: “Lula critica Campos Neto e os 13,75 pontos percentuais da taxa básica de juros”. E com razão; afinal, se a taxa de juros por si controlasse a inflação, o Brasil não teria executado o Plano Real em 1994. Durante setenta e nove dias desde a posse de Lula da Silva, a defesa de uma baixa de juros era, aparentemente, a única bandeira de seu governo na vereda da política econômica nacional. Mas cá estamos, no 80° dia de governo e, finalmente, foi divulgada uma proposta de Novo Arcabouço Fiscal.
Não se deve, primeiramente, confundir os processos que ocorrerão até que o arcabouço passe a vigorar, uma vez que o texto apresentado por Fernando Haddad (ministro da Fazenda) e Simone Tebet (ministra do Planejamento) provavelmente não triunfará da forma que foi concebido. Para ser aprovado, o texto precisa tramitar no Congresso Nacional, via Lei Complementar, requerendo maioria absoluta de deputados e senadores, isto é, ao menos 257 deputados e 41 senadores — após uma eleição que consolidou um dos congressos mais reacionários da República.
Boa ou não, a proposta enfrentará forte oposição, que conta, inclusive, com a volta do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) após suas férias em Orlando, que mais parecem uma fuga, iniciadas antes mesmo de finalizar o mandato, em 30 de dezembro de 2022. Antes de começar sua prenunciada “liderança da oposição”, crê-se que Bolsonaro deva fazer uma escala na Polícia Federal para prestar explicações sobre algumas bijoux sauditas um tanto sofisticadas. Porém, os mimos recebidos pelo ex-presidente (ou objetos que ele sequer conhecia, em sua primeira versão) são uma questão à parte, já que a triunfal volta do tal mito “flopou”, nas palavras do ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha. Aparentemente, a equipe de Bolsonaro esperava mais do que as cerca de 350 pessoas na recepção do ex-presidente no Aeroporto Internacional Juscelino Kubitschek, em Brasília.
Enquanto isso, no universo das pessoas que precisam trabalhar, podemos dizer que o texto proposto pelo Ministério da Fazenda não é complexo: se a receita crescer, gasta-se mais. Caso contrário, gasta-se menos. Parte da receita será retida para eventuais momentos de crise. Tecnicamente, o aumento das despesas não pode ultrapassar 70% do crescimento da receita primária, isto é, das receitas do governo (via impostos e transferências). Ora, e os outros 30%? A proposta prevê que este recurso será destinado ao abatimento da dívida pública, para investimentos e para um “colchão”. Caso o governo não consiga ater-se aos 70% fixados, ativa-se um gatilho, reduzindo o percentual para 50% e, caso ocorra novamente, 30%.
A proposta conta com a determinação de um intervalo fixo de retenção (ou “colchão”) das receitas que ultrapassarem os 70%, que variará entre 0,6% e 2,5% para o crescimento real das despesas, desconsiderada a inflação no período. Dessa forma, monta-se, nas palavras do Ministro Haddad, um “colchão na fase boa para usá-lo na fase ruim”.
Podemos usar o seguinte exemplo: se a receita governamental crescer 10% no ano de 2023, aumentam-se 7% os gastos públicos e 3% o pagamento da dívida, investimentos e reservas no acolchoado, sugerido por Haddad. Desta forma, não se expandem desenfreadamente as despesas em caso de alta significativa da receita e, ao mesmo tempo, estabelece-se um piso de despesas (já constitucionalmente definido). Caso a despesa cresça mais do que 70%, ativa-se o gatilho no ano seguinte e o Estado passa a ter como limite de gastos 50% da receita. Usando o mesmo exemplo de um incremento hipotético de receita no patamar de 10%, não se poderia, com a ativação do gatilho de 50%, ultrapassar o aumento de 5% de gastos públicos. O gatilho seguinte é de 30%, seguindo a mesma lógica, que permite um controle de gastos, o que é teoricamente eficiente.
Lembra-se também que, constitucionalmente, 15% da receita corrente líquida deve ser destinada à saúde e 18% à educação. Caso a receita aumente, aumenta-se a verba destinada, enquanto limitam-se os demais gastos, compondo mais uma vez um elemento relevante na política de controle de gastos do governo.
A proposta oferece a ousada possibilidade de zerar o déficit primário já no primeiro ano, em 2024, com um superávit primário previsto de 0,5% em 2025 e de 1% em 2026, mantendo o intervalo de apuração de receitas entre julho de um ano e junho do ano subsequente – tendo em mente que a peça orçamentária é enviada sempre em agosto.
Haddad também afirmou que o governo Lula buscará elaborar um pacote visando o aumento da arrecadação, além de não criar impostos nem aumentar as alíquotas dos impostos já vigentes. Logo, não está no horizonte do governo expandir a carga tributária. O Ministro sugere que a recomposição fiscal ocorrerá a partir da cobrança de impostos de setores mais abastados ou não-tributados atualmente.
O “mercado”, que já em 15 de março apresentava uma rejeição de 98% à política econômica do governo Lula, segundo a pesquisa Genial/Quaest, esperava uma proposta um tanto mais heterodoxa (ou anticíclica) do que a apresentada. Para a decepção dos pessimistas e felicidade do mercado, a proposta é boa, mesmo que os gestores não a elogiem em público. O Ibovespa teve uma alta de 1,89%, operando acima dos cem mil pontos, e o dólar fechou em queda de 0,73% no dia de ontem (30/03/2023).
A lógica de gastos governamentais acompanharem o nível de receitas nada mais é do que a aplicação prática de uma perspectiva liberal de gestão de recursos estatais. Antes estimada para 31 de agosto, a peça apresentada no dia de ontem agora precisa tramitar pela Câmara e pelo Senado, com sinalização de apoio dos presidentes das duas casas. Engana-se quem acredita que o jogo acabou. Lula, Haddad, Tebet e toda a base aliada do governo precisam agora mobilizar-se para, primeiramente, aprovar a lei e, em segundo lugar, para que a peça apresentada não sofra tantas alterações diante de uma forte oposição e a volta de um ex-presidente homiziado — no sentido de estar oculto, por enquanto.
Lucas Bastos de Souza é estudante de Economia.