“Nenhum tratamento precoce com remédio funciona”, diz infectologista sobre a Covid-19
13 junho 2021 às 18h03
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Conheça os principais medicamentos do chamado kit Covid, sua ação original e quais os potenciais danos ao organismo se usados fora de sua finalidade farmacêutica
Se em grandes momentos históricos de crise, a busca por “tratamentos” alternativos para lidar com as doenças se fez realidade – como na peste negra, que dizimou mais de 24 milhões de pessoas na Europa do século 14 –, na pandemia da Covid-19, isso não foi diferente.
Em março de 2020, nada ainda se sabia sobre o vírus. A melhor forma de prevenir era impedir a contaminação pelo Sars-CoV-2. O tratamento dos que fossem infectados ainda não passava de especulação. Fora do Brasil, estudos começavam a ser realizados, ao passo que o primeiro caso da doença, na cidade de Wuhan, na China, já havia sido confirmado havia alguns meses, em dezembro de 2019.
Com esse cenário, mais de um ano depois do começo da doença no Brasil e a consolidação de 482.272 mil óbitos até a última semana – além de mais de 17,3 milhões de casos confirmados – em por complicações e agravamentos dos quadros, o governo federal se encontra como alvo em investigação em uma Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado Federal que visa descobrir omissões e irregularidades das ações da gestão nacional no combate ao coronavírus no Brasil. Assunto que divide opiniões, o tratamento precoce à doença é uma das grandes questões discutidas na CPI da Pandemia.
Isso acontece porque, mesmo com o crescente número de casos e com a possibilidade de começar a imunizar sua população ainda em 2020, o governo brasileiro postergou essa decisão e apostou, com a adesão de muitos membros da comunidade médica, que pensam e agem em concordância, no tratamento precoce.
A primeira dose de imunizante contra o coronavírus aplicada em solo brasileiro foi a da CoronaVac, desenvolvida pelo Instituto Butantan, em 17 de janeiro de 2021. O contrato com a Pfizer, por exemplo, que ainda em agosto do ano passado tentou negociar doses do imunizante contra a Covid-19 com o governo brasileiro por metade do valor cobrado aos Estados Unidos e à Europa e que previa a entrega de vacinas antes mesmo do fim do ano, só foi fechado em março de 2021.
No entanto, mesmo sem a comprovação científica dos medicamentos que compõem o chamado “kit Covid”, e com o consenso sobre a não eficácia das drogas à doença existente entre a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o European Medicines Agency (EMA) e o Food and Drugs Administration (FDA), que são os órgãos fiscalizadores do Brasil, Europa e Estados Unidos, respectivamente, as recomendações persistem.
O que agrava a situação é que, não somente há somente casos isolados de médicos brasileiros que os prescrevem, mas foi e ainda é percebido o grande respaldo do Ministério da Saúde, do governo federal e, principalmente, do próprio presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), em prol de sua utilização.
Os remédios presentes no kit variam de lugar para lugar no país e são todos sugeridos dentro do uso “off label”, prática comum e legal na medicina de recomendação de medicamentos em situações não previstas na bula. Em janeiro deste ano, por exemplo, presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Mauro Luiz de Britto Ribeiro, afirmou em artigo no jornal Folha de S.Paulo que a decisão sobre o tratamento a ser implementado é do médico, que teria a capacidade de julgar o que é adequado.
É necessário lembrar, no entanto, que em março de 2021 um comitê organizado pela Associação Médica Brasileira (AMB) recomendou o banimento do uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra a Covid-19. No entanto, desde o primeiro ano da pandemia do coronavírus e o início da recomendação de medicamentos como a ivermectina e a cloroquina para tratar precocemente a doença, a procura por esses medicamentos e seu consumo irrefreado dispararam. Reportagem da TV Globo mostrou, por exemplo, que em fevereiro deste ano, as vendas de hidroxicloroquina aumentaram em 173% em relação ao mesmo período no ano passado, enquanto as de ivermectina tiveram alta de mais de 700%.
Componentes do kit covid
Em conversa com o Jornal Opção, a médica infectologista Heloína Claret de Castro, que há 37 anos atua no Hospital Estadual de Doenças Topicais Dr. Anuar Auad (HDT), explicou de forma detalhada a função e o uso comum de cada um dos medicamentos comuns ao kit Covid e o motivo pelo qual eles não são eficazes para combater o Sars-CoV-2 – que, por seu uso desenfreado, começaram a estar em falta e a prejudicar o tratamento de pessoas que realmente necessitam dos remédios para uso em outras doenças.
“Não é que não queiramos tratar precocemente [a Covid-19], é que ainda não existe nenhum tratamento precoce que realmente funcione. Esperamos que um antiviral seja criado. No entanto, também tem a possibilidade de não ocorrer isso, como no caso da herpes simples genital, que é viral e que as pessoas têm recorrentemente sem que exista um antiviral para erradicá-la”, adianta Heloína.
Entre os medicamentos mais comuns utilizados por quem opta por fazer o chamado tratamento precoce, mesmo sem evidências de que ele funcione, estão a ivermectina, a cloroquina e a hidroxicloroquina, a azitromicina, a nitazoxanida, o tamiflu e até a ozonioterapia.
A ivermectina originalmente é utilizada para tratar infecções causadas por parasitas. Ao ingerir a droga, ela paralisa a musculatura de piolhos, sarnas e lombrigas e as mata. Apesar de em janeiro de 2021 a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ter divulgado estudo que apontava um potencial efeito protetor por parte do remédio, diversos especialistas apontaram lacunas e erros metodológicos na pesquisa, anulando as conclusões apontadas pelo estudo. Ela pode, assim, causar efeitos colaterais diversos, como tontura, vertigem, tremor, febre, dores abdominais, dores de cabeça, queda de pressão, coceira e até levar ao óbito.
Já a cloroquina e a hidroxicloroquina também são usadas, há dezenas de anos, contra protozoários e doenças como malária, lúpus e artrite reumatoide, com ação imunomoduladora, estimulando e fortalecendo o sistema imunológico. “Ela atua o pH dos protozoários e os mata. Como foi descoberto que in vitro ela tem alguma ação contra vírus, lançou-se mão para descobrir se ela atuava em cima do coronavírus. Alguns pequenos estudos pequenos e mal desenhados, no começo, mostraram que parecia que teria alguma atividade, mas hoje os bons estudos mostraram que ela é ineficaz e não há mais nenhuma dúvida em relação a isso”, esclarece a infectologista.
Os principais efeitos colaterais provocados pela cloroquina têm relação com a toxicidade cardíaca que o medicamento promove. Assim, podem levar a alterações somente detectadas por eletrocardiogramas e causar arritmia cardíaca e até morte subida. Também foram registrados casos de complicações renais e comprometimento da saúde ocular após o uso da droga. Já a hidroxicloroquina, que advém da cloroquina, apesar de também apresentar toxicidade cardíaca, também pode causar vazamento do líquido da retina, dormência nos nervos do corpo e neuropatia.
Heloína explica que a azitromicina, por outro lado, é um antibiótico do grupo dos macrolídeos, dos quais fazem parte outros antibióticos, como eritromicina e a claritromicina. É usada há muitos anos para o tratamento de bactérias e em doenças como pneumonia, sinusite amigdalite, entre outras. A azitromicina também tem efeito imunomodulador e anti-inflamatório.
“Imagino que esse medicamento tenha sido associado a outros para tratar o coronavírus por sua ação anti-inflamatória, mas foi uma péssima ideia, porque ela não tem ação antiviral. Não usamos azitromicina para o tratamento de nenhum vírus, somente de bactérias, e ela tem sido utilizada de forma tão exagerada que está causando resistência bacteriana no organismo das pessoas”, acrescenta a médica infectologista.
Eventualmente a azitromicina também pode levar a uma toxicidade hepática, levantando efeitos colaterais (mesmo que leves) quando interage com outras drogas, como as do kit covid, e provocar toxicidade cardíaca.
Já a nitazoxanida é usada como vermífugo. Tem ampla cobertura para alguns helmintos, strongyloides, amebas, giárdias, protozoários, além de uma ação antiviral que já foi comprovada em alguns estudos para rotavírus (que são os que provocam diarreia). Apesar de uma pesquisa do Laboratório Nacional de Biociências, em Campinas, São Paulo, que é vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, ter indicado a eficiência da nitazoxanida em pessoas que estão na fase inicial da Covid-19, diversos especialistas questionaram o estudo.
A médica infectologista e diretora técnica do Hospital Estadual de Doenças Topicais Dr. Anuar Auad explica que mesmo que ainda se tenha alguns estudos sobre os efeitos da nitazoxanida contra o coronavírus em andamento em alguns lugares do mundo, “não há entusiasmo em relação ao seu funcionamento”. Seus efeitos colaterais também são leves, podendo causar diarreia e tontura, entre outros efeitos.
A ozonioterapia, independente do fim da utilização, é polêmica na Medicina. Heloína explica que seu uso é liberado somente para pesquisa, especialmente para áreas mais alternativas, mesmo que não haja qualquer comprovação de seus benefícios reais. Seu uso pode, inclusive, afetar os glóbulos vermelhos do sangue, que são responsáveis pelo transporte de oxigênio.
O Tamiflu, nome comercial do fosfato de oseltamivir, é um antiviral e é específico para vírus da influenza, como o H1N1. “Pode ser usada para profilaxia, então quem se expõe a alguém gripado, pode tomar preventivamente depois do contato para evitar a doença”, esclarece Heloína. No entanto, acrescenta que o tamiflu não realiza nenhuma atividade sobre o coronavírus, fazendo com que não se exista nenhum motivo para sua utilização no combate à Covid-19.
“O que se faz é, se estivermos em uma epidemia de gripe e houver algum quadro respiratório, se pode recomendar o oseltamivir pensando em tratar essa gripe”, completa Heloína. Os principais efeitos colaterais do Tamiflu são vômito e dor de cabeça.
Tratamento e prevenção da Covid-19
Com o resultado das pesquisas realizadas em nível mundial acerca de possíveis efeitos de combate à Covid-19 com medicamentos já existentes, a médica infectologista Heloína Claret reitera que “não existe nenhum tratamento precoce com medicamentos que possamos fazer no início do sintoma da doença e que realmente funcione”. “Não devemos fazer uma coisa só por fazer. A pessoa deve ser assistida desde o começo dos sintomas, acompanhada por médicos que possam avaliar se a pessoa tem algum fator de risco ou algum exame inicial que nos prediz que essa pessoa possa ter um desfecho mais grave da doença”, esclarece.
Segundo a infectologista, o que ainda pode ser utilizado precocemente para ajudar no combate à doença são os coquetéis de anticorpos monoclonais, pelo simples motivo de melhorar o sistema imunológico. No entanto, ela ressalta que esses coquetéis são extremamente caros, de modo que “devem ser reservados para casos específicos, como no caso de pessoas que tenham risco de apresentar quadros graves”.
O que pode ser feito
“O que precisamos, na verdade, é de acompanhamento clínico adequado, para ver as comorbidades e fatores de risco, exames iniciais para saber se a pessoa precisa de suporte hospitalar e a realização de oximetria em casa para que a queda da saturação (falta de ar) seja acompanhada”, opina Heloína. Ela ainda acrescenta que, durante o tratamento de pacientes com a Covid-19 que já estão na fase inflamatória da doença, são utilizados corticoides e anticoagulantes.
“O suporte de oxigenoterapia, de uma boa equipe, de uma UTI adequada e com profissionais habilidosos e adequados já vão ajudar na sobrevida. Como prevenção, a única coisa que temos é o que todo mundo já sabe: o uso de máscaras de forma adequada, evitar aglomerações e a vacina”, conclui Heloína.