Não há nada de louco ou simpático em Kim Jong-un
02 maio 2018 às 19h52

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Mudança de postura do governo do norte da península coreana reforça que a estratégia de manter amigos por perto é boa, mas colocar inimigos mais próximos é melhor ainda

Apesar de ter elevado o tom com os Estados Unidos num passado recente e preocupar o mundo com episódios de disputa e demonstração de poder, Kim Jong-un, líder da Coreia do Norte, tenta quebrar a imagem de ditador e o estereótipo de inconsequente ao buscar se reaproximar da Coreia do Sul. Seja por meio do esporte, ao juntar equipes coreanas nas Olimpíadas de Inverno, seja pela política, ao protagonizar um encontro histórico com o presidente sul-coreano, Moon Jae-in, na parte sul da península, a Coreia do Norte esboça uma estratégia, e não é à toa.
Poucas coisas poderiam convencer mais o mundo de uma possível mudança do regime ditatorial norte-coreano como o tema abordado por Kim e Moon. Na reunião, os líderes da península coreana negociaram a possibilidade de um tratado de paz e a desnuclearização da região, prometida para maio deste ano. Ao adotar uma postura pacífica e harmoniosa, Kim Jong-un reflete a ideia de um governo sereno e razoável, que se pode confiar. E este não é o caso. No passado, seu pai, Kim Jong-il, fez uso desta estratégia por duas vezes enquanto desenvolvia o plano nuclear norte-coreano às escuras.
Não há democracia na Coreia do Norte. Seus cidadãos são privados de suas liberdades e aqueles que tentam fugir, se capturados, não encontram bom destino. Se um turista consegue autorização para visitar o país, o governo escolhe seu hotel e o quarto onde se hospedará, e todos seus passos são guiados por representantes oficiais. Isso faz parte da estratégia propagandista para manter imaculada a imagem da nação, dos líderes e do regime. A Coreia do Norte vive um estado de exceção, uma ditadura, e isso não deve ser esquecido.
Contudo, a propaganda, estratégia de difusão positiva da imagem, tem efeitos imediatos. Um exemplo claro da reformulação da imagem do líder norte-coreano foi seu instantâneo sucesso no topo dos assuntos mais comentados do Twitter. Para tanto, Kim Jong-un se apresentou de forma inusitada na DMZ – linha desmilitarizada que separa as duas Coreias – ao encontrar com Moon Jae-in e cruzar o limite territorial do norte para o sul.
Sorridente e amistoso, contou uma piada ao presidente Moon sobre o “raengmyun”- prato típico do norte da península, espécie de macarrão com carnes e vegetais – e instigou tanto a curiosidade dos sul-coreanos que o produto se tornou em instantes o mais comentado e buscado na internet. A partir deste encontro, parte da opinião pública internacional enxergou uma figura simpática, diferente do vilão que a mídia ocidental retrata.
A tentativa de desconstruir a imagem de ditador pode ter sido o elemento chave que despertou no líder norte-coreano a estratégia necessária para o que mais precisa no momento: estabilizar-se economicamente e garantir a segurança de seu regime. Cabe lembrar que Kim também se encontrará, em breve, com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e, ao que tudo indica, a máxima de manter os aliados próximos, como Rússia e China, é tão válida como se aproximar de seus inimigos.
Fatores econômicos e geopolíticos
Iniciado por seu pai, o programa nuclear norte-coreano tem sido utilizado por Kim, recentemente, como uma importante ferramenta para o desenvolvimento da Coreia do Norte e, também, para barganhar o fim das sanções ao regime.
A mídia tem coberto com afinco as ações empreendidas pelo regime norte-coreano em relação aos mísseis de teste, que demonstram sua capacidade militar. A aparente imprevisibilidade e aleatoriedade dos testes sugerem um ar de insanidade por parte de Kim Jong-un. No entanto, é possível fazer uma outra leitura sobre suas ações aparentemente desconexas e desinteressadas. O ditador realizou, repetidas vezes, testes que reforçam e atestam as capacidades militares que o regime adquiriu nos últimos anos.
Esta demonstração nada mais quer dizer que possíveis investidas ocidentais lideradas pelos Estados Unidos ou seus aliados na região (Japão ou Coreia do Sul) não seriam gratuitas. Kim falava, nesses testes aparentemente desinteressados, de seu poder de retaliação e da força que possui para garantir sua manutenção no poder.
Outro elemento que tem muita influência sobre a questão é o cenário geopolítico em que a Coreia do Norte está inserida. O governo ditatorial luta pela manutenção de seu regime, constantemente ameaçado, e pela integridade de sua soberania, frequentemente questionada. Por fazer fronteira com a China, a Coreia do Norte traz preocupações para o governo de Xi Jinping, pois o chinês teme que um possível colapso norte-coreano possa causar uma crise de refugiados, o que, em alguma medida, o pressiona em apoio ao regime de Kim.
O Japão, outro importante ator na região, não possui uma expressiva força militar desde a Segunda Guerra, mas recorre à cooperação com os Estados Unidos para garantir sua segurança. A Coreia do Sul, histórica rival do Norte, também possui fortes laços de cooperação militar com os norte-americanos, inclusive com realização de exercícios militares conjuntos na região. Todo esse ambiente hostil à Coreia do Norte eleva as preocupações com sua segurança e sua manutenção. Sua principal aliada, a União Soviética, já não existe mais e o país conta com um número cada vez menor de aliados e parceiros.
Ao considerar este cenário e os principais atores neste contexto, a Coreia do Norte acaba por se apoiar à ideia de que a magnitude do comércio internacional que passa pela região (que incluem as importações e exportações da China, Coreia do Sul e Japão) torna difícil e razoavelmente improvável um conflito armado por ali, sobretudo porque resultaria em enormes custos econômicos a todos envolvidos.
Desta forma, a instabilidade que a Coreia do Norte causaria e o ônus que os desdobramentos de um agravamento das tensões representa fazem com que China, Japão e Coreia do Sul pressionem um dos principais atores nesta questão, os Estados Unidos, em busca de uma solução pacífica e definitiva para as tensões.
Assim, observa-se que o crescimento das provocações, em razão dos testes e das declarações de Kim Jong-un, no fundo, não representam os devaneios de um insano ditador, mas certamente os passos calculados de um estrategista que busca, com as limitadas ferramentas de que dispõe, virar o jogo, ganhar cada vez mais relevância e visibilidade ao ponto de que a paz, a estabilidade e a segurança da região acabem por adquirir um peso maior para os países vizinhos do que a manutenção dos embargos à Coreia do Norte.
Neste jogo de poder, Kim, por meio da propaganda bélica e política, é recebido com atenção e respeito ao demonstrar a importância e a delicadeza da questão, aumentar o poder de barganha e as margens de negociação do regime que, a cada dia, está mais acuado, enfraquecido e pressionado.
Portanto, não há loucura, tampouco simpatia, mas sim, estratégia. O atual ditador norte-coreano precisa dinamizar sua imagem frente à opinião pública para garantir que a estratégia de mudança de postura resulte numa possível retirada das sanções que prejudicam a economia norte-coreana e iniba uma invasão ao território controlado pela dinastia Kim desde o pós-Segunda Guerra Mundial.
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