Morreu nesta terça-feira, 13, o escritor americano Cormac McCarthy, aos 89 anos. O romancista era um herdeiro de William Faulkner e Herman Melville, e um dos principais representantes do gênero gótico do Sul dos Estados Unidos e do brutalismo realista. Seu livro “Onde os fracos não têm vez” foi adaptado para o cinema pela dupla de diretores, irmãos Coen, e ganhou o Oscar de melhor filme em 2008; e A Estrada (também adaptado para o cinema) ganhou o Pulitzer como melhor romance em 2007. 

Sua morte foi confirmada por seu editor, Alfred Knopf, que por sua vez foi informado pelo filho do autor, John. Cormac McCarthy publicou, em 2022, o livro “O Passageiro”. Entre outros, também é autor de Suttree, Todos os Belos Cavalos e sua obra prima: Meridiano de Sangue. Este último livro é um dos mais importantes romances do século XX.

Cormac McCarthy foi avesso aos holofotes tanto quanto ao trabalho tradicional. Nunca aceitou pagamentos por leituras, palestras, cursos de redação e nunca cometeu jornalismo. Fora de seus romances, suas palavras podem ser encontradas apenas em algumas entrevistas. 

Talvez o melhor material sobre sua vida seja o livro semi-auto-biográfico “Suttree”, que se passa nos anos 1950 e trata do princípio de sua carreira, quando viveu em uma casa flutuante em Knoxville. O livro não possui edição no Brasil e seu prefácio foi traduzido pelo Jornal Opção

Prefácio de Suttree, editora Random House, 1979, Cormac McCarthy. Tradução de Italo Wolff:

Caro amigo, agora nas horas poeirentas e intemporais da cidade quando as ruas jazem escuras e fumegantes no rastro dos caminhões-pipa, e agora que os bêbados e sem-teto desaguaram nas vielas e nos terrenos baldios e gatos vagueiam nas redondezas sombrias — agora, nestes corredores de paralelepípedos ou tijolos negros de fuligem onde as sombras dos fios elétricos formam harpas góticas nas portas dos porões, nenhuma alma andará senão a sua.

Velhos muros de pedra que resistiram às intempéries, instalados em seus ossos fósseis estriados, escaravelhos de calcário alojados no assoalho deste que já foi um mar interior. Árvores finas e negras que se veem através da cerca paliçada de ferro, onde os mortos guardam sua pequena metrópole. Curiosa arquitetura de mármore, estrela e obelisco e cruz e pequenas lápides desgastadas pela chuva onde nomes se ofuscam com os anos. Terra semeada com amostras da arte do fabricante de caixões, ossos poeirentos e seda podre, a mortalha manchada de carniça. Lá fora, sob a luz azulada dos candeeiros, os trilhos do bonde se perdem no escuro, curvados como esporão de galo ao lusco-fusco de ouropel. O aço exala o calor do dia, você consegue senti-lo através da sola dos seus sapatos. Passe pelas paredes de chapa ondulada desses armazéns e percorra as vielas areentas onde carros depenados repousam nos pedestais de blocos de concreto. Atravesse os campos de sumagre e erva tintureira e madressilva ressecada que dão para as elevações barrosas dos trilhos de ferro. Trepadeiras cinzentas enroladas para a esquerda neste hemisfério setentrional, a força que as enrosca também forma a concha do caramujo. Ervas brotadas do cimento e do tijolo. Uma escavadeira a vapor com a pá erguida em abandono solitário contra o céu noturno. Atravesse aqui. Sobre bifurcações dos trilhos e talas de transição onde motores roncam como leões no pátio da ferrovia escura. Para uma cidade mais escura, passando postes com lâmpadas apedrejadas à cegueira, passando barracos tortos esfumaçantes e cachorros de porcelana e pneus pintados onde flores poeirentas crescem. Desça o piso pavimentado com ruína, o lento cataclisma da negligência, os fios que embarrigam de poste a poste através de constelações penduradas de fios de pipa, sapatos amarrados juntos pelos cadarços, brinquedos de crianças menores. Acampamento dos condenados. Cercanias, talvez, onde leprosos gotejantes perambulam sem guizos. Acima do calor e da silhueta improvável da cidade uma lua de latão elevou-se e as nuvens correm diante dela como tinta aguada. Os edifícios estampados contra a noite são como um baluarte para o mundo adiante, abandonado, de antigos propósitos esquecidos. Camponeses vêm até aqui por quilômetros com terra agarrada aos sapatos e sentam-se o dia todo no mercado como mudos. Essa cidade construída sob nenhum paradigma conhecido, de arquitetura mestiça que recapitula os trabalhos humanos em uma breve delineação de tudo o que é aberrante, desordenado e maluco. Um carnaval de formas erguido na planície do rio que sugou a seiva da terra por quilômetros ao redor. 

Paredes da fábrica de velhos e escuros tijolos, trilhos invadidos pelas ervas daninhas, um canal de água escoada, imunda e azul, onde filamentos escuros de escória indefinível ondulam na corrente. Folha de flandres nas armações enferrujadas das janelas. Há um esgar em forma de crescente na lâmpada do poste onde uma pedra entrou e desta abertura cai, por meio da espiral constante de insetos ascendentes, um chuvisco das mesmas criaturas queimadas e sem vida.

Aqui, na desembocadura do córrego, os campos descem até o rio, a lama formando um delta e expelindo de seus ricos aluviões as ossadas e o lixo pavoroso, destroços de caixas de madeira e camisinhas e cascas de frutas. Velhas latas e jarros e artefatos domésticos arruinados que surgem do atoleiro fecal como marcos nos vales sem rastros da demência praecox. Um mundo além de toda fantasia, malevolente e tátil e dissociado, as lâmpadas estilhaçadas como pólipos semi translúcidos e da cor de crânios, boiando cegamente correnteza abaixo, e olhos espectrais de óleo e aqui e ali, encalhadas e fedorentas, as formas de fetos humanos, inchados como passarinhos de olhos arregalados e azulados ou de um cinza rançoso. Adiante, no escuro, o rio rasteja vagaroso rumo mares do sul, arrastando pés de milho e plantações pequenas e barro das hortas dos fazendeiros do interior que a chuva destruiu, rangendo ao longo do leito como pó de osso, carregado com o passado sonhos dispersos na água sabe-se lá como, nada nunca se perde. Casas flutuantes puxam suas amarras. A lama ao longo da margem jaz acidentada e escorregadia como a carcaça cavernosa de alguma besta afundada e, mais além, o campo se estende ao sul e às montanhas. Onde caçadores e lenhadores já dormiram de botas calçadas junto às últimas luzes de suas mil fogueiras e seguiram adiante, velhos antepassados teutônicos com olhos encandecidos por uma imensa cobiça, enxurrada após enxurrada de homens violentos e insanos, seus cérebros alimentados por versões obscuras de tudo que já houve, arianos magros com seu livro de cordel semítico proibido a reencenar os dramas e parábolas contidas nele, desvairados e pálidos com um anseio que nada salvo o esquecimento total da escuridão poderia saciar. 

Chegamos a um mundo dentro do mundo. Nestas extensões estranhas, nestas fossas repugnantes e rejeitos intersticiais que os justos avistam de suas carruagens e carros, outra vida sonha. Deformada ou negra ou transtornada, fugitivos de toda ordem, estrangeiros em todas as terras. 

A noite está quieta. Como um acampamento antes da batalha. A cidade atormentada por uma coisa desconhecida, e ela virá da floresta ou do oceano? Os sentinelas fortificaram a paliçada, os portões estão fechados, mas eis a coisa dentro dos muros, e você consegue adivinhar sua forma? Onde é mantida ou o contorno de seu rosto? É um tecelão, lançadeira ensanguentada atirada através do tempo, cardador de almas da lanugem do mundo? Ou um caçador com cães, ou será que esqueletos de cavalos puxam seu carro funerário pelas ruas e será que ele oferece a todos seus serviços? Caro amigo, não se deve pensar sobre ele porque é justamente desta forma que se convida-o para entrar. 

O resto de fato é silêncio. Começou a chover. Garoa de verão, você pode vê-la caindo inclinada nas luzes da cidade. O rio jaz em um graal de quietude. Daqui, da ponte, o mundo abaixo parece uma dádiva de simplicidade. Curioso, nada mais. Lá embaixo, nas grutas de luz derramada, um gato aparece de pedra em pedra através da calçada de um negro líquido e costura em rápidos opostos pela rua escurecida pela chuva apenas para desaparecer, gato e contragato, nas fendas entalhadas adiante. Fraco relâmpago de verão ao longe, rio abaixo. Uma cortina se ergue sobre o mundo ocidental. Uma chuva fina de ferrugem, besouros mortos, ossinhos anônimos. A plateia está coberta de poeira. Dentro das órbitas evisceradas do mestre-de-cerimônias uma aranha dorme e as ruínas articuladas do bobo dependurado balançam, suspensas na forca, um pêndulo de ossos em trajes multicoloridos. Figuras quadrúpedes perambulam sobre o tablado. Formas mais rudes sobrevivem.