Mito e realidade literária em Cora Coralina, ou a Celebração do Celebrado
02 julho 2018 às 18h22
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O fato de ter sido sempre mais louvada que estudada ajudou a consolidar o mito, cujos ingredientes misturaram fuga da cidade de Goiás, literatura (popular), escritora reaparecida aos setenta anos e feminismo, além do próprio contexto cultural e mágico da eterna Vila Boa
Gilberto Mendonça Teles
Especial para o Jornal Opção
O sim e o não, o visível e o invisível, a realidade e o mito, melhor dizendo, o mito e a realidade literária nos textos (na obra) de Cora Coralina, pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas (1889-1985). Este pseudônimo foi, desde cedo (1907), um dos seus mais belos achados literários, responsável direta e indiretamente pela popularização do nome da escritora, hoje, só em Goiânia, denominação de bairro, de avenida, de rua, de qualquer empreendimento público ou privado, cultural ou não, tudo se faz em nome do nome da escritora, muito pouco em nome de sua obra. Mais louvada que verdadeiramente estudada.
Quem a estudou já começou predeterminado a celebrá-la, assim todos os seus textos de prosa e verso (que ela chama de “poemas”) são escolhidos e “analisados” com a preocupação de só servir para comprovar o que existe no ar, como um mito, um tecido aéreo que se deve vestir e celebrar. Não se vê o não visto: tudo está “programado” para a celebração do celebrado. De um modo geral, percebe-se na maioria dos estudos a falta do distanciamento crítico, o que impede que os seus textos – a sua obra – não sejam vistos na totalidade. Bem sei que essa “todalidade” é coisa da época positivista, mas tem o seu lugar na avaliação de exemplos de toda natureza – do bom, do ruim e do péssimo. Eles existem, mas estão “impedidos” de serem ditos. Desta forma, volta-se para o fascínio do nome. Cita-se o nome pelo nome que, por si só, já é meio caminho andado no rumo do Mito e da Poesia. Há dois versos de Carlos Drummond de Andrade (aliás, um dos responsáveis pela sua mitificação) que sintetiza tudo sobre a filosofia e a poesia do nome:
O nome é bem mais do que nome: o além-da-coisa,
coisa livre de coisa, circulando.
Nos seus dezesseis anos, quando criou com Leodegária de Jesus e outras senhoritas da cidade de Goiás o jornal A Rosa (1907), Ana Lins (a Aninha) teve a inspiração do pseudônimo Cora Coralina, o qual, no início, quase se perdeu na concorrência com outras sugestões, como, por exemplo, a de “Dora Doralina”, expressão que será usada muito anos depois por Raquel de Queiroz, aliás casada com um goiano. É interessante saber que Cora Coralina se gabava de uma raiz nordestina, com a qual explica o seu interesse pelas aventuras de Lampião e Maria Bonita e até pela palavra “cordel” com que denomina um dos seus livros de memória. Neste sentido, é possível imaginar que a história narrada por Raquel de Queiroz no romance de 1975 sobre a vida de Dôra (Dora), Doralina tenha alguma tradição evemerista, ou seja, uma estória da cultura popular do Ceará, cujos ecos teriam chegado aos ouvidos da Ana Lins de 1908.
A escritora saiu da Cidade de Goiás (o “Goiás Velho”), antiga capital do Estado, em 1910, com idade de 21 anos (na garupa do cavalo de um homem casado: Cantídio Tolentino Bretas Figueiredo, com quem viveu de 1910 a 1934, ano de sua morte: sua mãe foi contra o namoro, por que ele era desquitado, tinha filhos, inclusive com outra mulher, uma índia. [Nos seus escritos no final da vida, Cora vai dizer que saiu casada]. Foram viver no interior de São Paulo (em Andradina e Jabuticabal) e só quarenta e cinco anos depois, em 1956, retornou a Goiás, já nos seus quase setenta anos e sem livro publicado. [Participei em Goiânia das homenagens à volta de Cora Coralina.] A partir daí é que apareceram livros como: — Poemas dos becos de Goiás e estórias mais (José Olympio, 1965, para quem ela vendia livros quando vivia em São Paulo); Meu livro de cordel (Cultura Goiana,1976); Vintém de cobre (UFG,1983); e Estórias da casa velha da ponte, (Global,1985), tornando-se então não só a mulher mais importante do Brasil Central e — por que não? – de toda a literatura feminina do Brasil.
Como explicar o fenômeno, quando se sabe que nos anos de ausência de Goiás escreveu muito pouco ou, se escreveu, não publicou, a não ser pequenos contos e crônicas e alguns poemas em prosa e só depois de sua volta (Cf. o poema “Voltei”, p. 112 de Vintém de cobre), assumiu a condição de escritora? A crer nas suas memórias (nos seus textos autobiográficos), ela voltou sem a aprendizagem maior da prática da escrita. Havia um lapso muito grande de tempo entre o que ela lia, pensava e escrevia na adolescência e o que procurava fazer agora, numa continuidade impossível. Teve assim que partir de um “novo” princípio de criação, que ela pensava ser novo. Foi então que começou a produzir longos poemas em prosa que ela mesma vacilava em chamar de poema, preferindo uma série forçada de sinônimos, como se verá adiante. E foi o que fez. E deu certo, atingiu o gosto do público comum, passando assim (apressadamente) a ser tida como “inovadora”, transformando a carência estética em criação popular.
Isto explica, de certa forma, o fato de ter sido sempre mais louvada que estudada, o que ajudou a consolidar o mito, cujos ingredientes misturaram fuga da cidade de Goiás, literatura (popular), escritora reaparecida aos setenta anos e feminismo, além do próprio contexto cultural e mágico da Cidade de Goiás, de onde ela soube retirar a matéria – direi regional – dos seus trabalhos mais autênticos, que envolvem memória e poesia. Por aí a sua produção escrita passou a ser vista como um todo já completo, perfeito, que já nasceu pronto, vertical, totalitário e impositivo, como coisa de gênio, que não precisa ser analisada, mas enaltecida, valorizada e propagada como genial. São a força e a magia do mito.
Aliás, o mito já estava inerente a seu nome, quer dizer, à beleza do pseudônimo (Cora Coralina) que ela começou a usar (repetimos) aos dezesseis anos, em 1907, em torno do jornal A Rosa, de que foi uma das fundadoras. Note-se que no pseudônimo a palavra chave é simplesmente Cora, que pode ser mesmo do grego Κόρη (feminino de Κόρος), com o sentido de “filha” (de filha jovem), termo que se relaciona com o latim Cŏr, cŏrdĭs = coração novo, ser talentoso, como está em Plínio, o naturalista; em grego a Κόρη tinha também o sentido de “menina dos olhos” e do nome de uma cidade consagrada à futura Prosérpina no latim. Grande leitora e possivelmente com algum conhecimento do grego e da mitologia grego-latina, Ana Lins percebeu a íntima relação entre o nome e o pseudônimo da famosa deusa dos Infernos e, por intermédio deles, compôs o seu pseudônimo: proveniente de “Cora”, a corada e corajosa + “Lina”, de Prosérpina. Estava assim formado o modelo do belo sobrenome de Cora Coralina.
Se isto parece ir longe demais, pense o leitor no mais simples: a repetição do nome Cora fazendo surgir a palavra “coral”, transformando a repetição numa frase melódica, de ritmo ternário (cora cora, coral), conotando-se, em português, além de “coração” a gama de significações a partir de quarar (corar), embranquecer a roupa e dar cor à face (corada) — significações que se juntam às de corais e, claro, à metonímia de “cobra coral”, bela serpente venenosa (e não) que se esconde entre os corais e consegue mimetizá-los, fazendo com que o transeunte se distraia com a sua beleza, assim como o leitor se distrai com as peripécias de sua vida — o que ela narra, o que ela esconde, o que revela com a facilidade da descrição emotiva e exata das coisas e dos acontecimentos de uma época desaparecida nas grandes cidades, mas que ainda sobrevive e perpassa pelos murmúrios dos becos da velha capital do Estado de Goiás. Atentem agora para o sufixo –ina que complementa com uma relação de semelhança (“semelhante ao coral”), além de introduzir o jogo das vogais “a” / “i”, mas um “i” nasal que aumenta o sentido da musicalidade da palavra-frase Cora Coralina. No fundo, a mim me parece que o seu famoso pseudônimo pode ter-se originado mesmo foi do “rosto corado” da moça de dezesseis anos em oposição ao “da menina feia, amarela”, como ela gostava de repetir. Foi uma espécie de compensação psíquica.
Assim, sob a fascinação do mito, que já vem do pseudônimo, louva-se a obra de quem traz esse belo nome já na capa dos livros. É como se tudo fosse ali de primeira grandeza. Como a linguagem mítica se estendeu à Autora, que se viu mitificada, o fascínio do mito atinge também o leitor que se vê enleado pelo rumor dos acontecimentos. Assim, os
estudos que têm aparecido visam principalmente à confirmação do mito, citando quase sempre os mesmos poemas, sem aprofundar as análises, não se comprovando pelo estudo a possível excelência literária de seus “poemas”, de seus textos. Colocamos entre aspas o termo “poemas” seguindo a própria Autora que, nos livros de 1980 e 1983, vale-se de uma série de denominações para nivelar os seus escritos, como se vacilasse sobre o valor literário deles – poemas, estórias, cânticos, ode, oração, confissões, imaginário, oferta, exaltação, mensagem, reflexões, conclusões, considerações, recados, lembranças, apelos e até poesia. Não é que usasse cada um desses termos tomando-os como foram usados pela tradição literária. Tomou-os simplesmente como sinônimos de “poema” e “poesia”. É a razão porque preferimos chamar-lhes textos, generalizando-os e evitando a necessidade de forçar um estudo à luz da mais antiga classificação de gêneros, provenientes de Aristóteles.
Às vezes esses estudos chegam ao risível de lhe impingir gato por lebre, atribuindo à obra de Cora Coralina façanhas de geração e de vanguarda que nada tem a ver com o que deixou nos livros publicados. Isso não é culpa dela, da Autora, mas dos “estudiosos” mais interessados em “participar” da sua glória literária do que realmente mostrar a sua contribuição para a literatura brasileira. Eu mesmo já examinei algumas dissertações de mestrado, na Universidade Federal de Goiás, em que o estudo é só de elogio, de admiração, de rasga-seda, sem se preocupar com o porquê dessa celebração. Falta de sentido crítico tanto do orientando como do orientador. Na maioria das dissertações sobre a obra de Cora Coralina, o que se vê é a paráfrase dos seus textos, os quais, em vez de serem analisados, são primariamente comentados, dando-se a falsa idéia de análise, de estudo.
Os teóricos sabem que os mitos surgem da bela ignorância imaginativa do homem comum e também da astuciosa imaginação da força lírica da mentira, ou seja, da não revelação da verdade: cala-se a verdade e em seu lugar apresenta-se uma realidade cor de rosa, em que, por intermédio da humildade (da modéstia, da menção à vida difícil), capta a benevolência do leitor, que passa à admiração de tudo o que a pessoa escreveu. É ai que entra a preguiça intelectual dos estudiosos que, em vez de aprofundar a pesquisa e a leitura da obra examinada, preferem o mais fácil: sentir (não comprovar) que tudo é belo e bom, dentro da velha fórmula grega do καλός ảγαθός.
A linguagem do mito é poderosa, vertical, absoluta, impositiva, sobre os acontecimentos, e não sobre a linguagem deles. Comanda a política, a escola, a literatura popular, a alma do indivíduo. A sua vida. Mas essa linguagem é transitória, com o tempo cede o lugar a outra que a contesta ou a esquece à luz da tradição ou da nova realidade que vai surgindo. A sinceridade nem sempre é literatura. Assim como os temas (a temática) só se integram na literatura quando se coadunam com a linguagem da obra realizada.
Cora e o nascimento do mito
A escritora Cora Coralina (poetisa, contista) não é culpada do nascimento do mito em torno de seu nome e obra. Pode ter calado nos seus livros algo da verdade original de sua mocidade, mas é certo que muito dessa verdade está em fragmentos nos seus textos, em alguns trechos visíveis da sua obra, toda ela autobiográfica, no entanto deve haver também os ainda invisíveis à espera do exegeta para desentranhá-los dos “poemas” e “estórias”. Lembrando Jean Starobinski: “O manifesto é o latente que não foi compreendido”. É possível garimpar algumas pepitas da verdade que não tinha desejo de revelar-se na maturidade sensata dos setenta anos. À crítica é que cabe o dever dessas garimpagens para usar um dos temas comuns nos textos dos livros que vamos mencionar a seguir.
Como corpus para este pequeno estudo da obra de Cora Coralina, valho-me apenas dos seguintes livros: Meu livro de cordel (1965), que não tem nada a ver com o conhecido livreto de cordel nordestino; Poemas dos becos de Goiás e Estórias mais (1980); Vintém de cobre: Meias confissões de Aninha (1983); e Estórias da casa velha da ponte (1985). Dos textos destes livros, na maioria escritos (ou modificados) depois dos setenta anos, já sem a força total da emoção poética, com a imaginação criadora se resolvendo na exploração das reminiscências, é que extraímos a matéria crítica, desenvolvendo-se a teoria (documentada) de que Cora Coralina, na sua infância e adolescência
a – Sentia-se desprezada pela mãe e pelas irmãs que a tinham como feia e sem inteligência e que, por isso, não conseguiria casamento.
b — Arquitetou o inesperado: a sua fuga da cidade de Goiás, que ainda era a capital do Estado. Era o desejo de sair do comum, de buscar a liberdade com que sonhava na adolescência.
c – Teve quando nova um orgulho velado da sua inteligência literária; mas, na velhice, procurou disfarçar esse orgulho escrevendo que seus textos não valiam nada, numa espécie de disfemismo comum nos grandes escritores: diz-se que são ruins para que sejam percebidos como bons. No caso de Cora o povo e a “crítica” gostaram e pensaram que havia mesmo modéstia sobre o valor de seus escritos.
Aí está, me parece, um possível método de contradição entre dois temas para explicar uma nova situação decorrente dessa contradição. Compreendo que esta lógica dialética não se verifica exatamente na criação literária, mas serve de base crítica para a compreensão de alguma coisa que diz respeito a ela: uma afirmação (tese), uma negação (antítese) e, afinal, a tentativa de estabelecer uma visão (síntese) da vida literária de Cora Coralina.
Sentindo-se desprezada pela mãe e pelas irmãs que a tinham como feia e sem inteligência, alguns de seus textos documentam a luta íntima na convivência com a família, sobretudo com as irmãs mais velhas, as “manas”, como aparece com certo desprezo. Em Poemas dos becos de Goiás e estórias mais (3ª edição da UFG), a primeira grande publicação de seus textos, confirma-se na apresentação da Autora o jogo dialético do seguinte modelo teórico de Modéstia X Orgulho: de um lado, a Modéstia (“Vai, meu pequeno livro”.); e de outro o Orgulho (“Que possa sobreviver à autora e ter a glória de ser lido por gerações que hão de vir de gerações que vão nascer”), vendo-se, de início a figura do disfemismo, isto é, da desvalorização por modéstia e, no final, o orgulho intelectual de imaginar seu livro na eternidade, coisa parecida com a “Ode VII”, do Livro I, de Horácio. Este modelo se documenta em todos os seus escritos.
No poema “Minha cidade”, (p.37) apresenta-se, dizendo: “Eu sou aquela amorosa / de tuas ruas estreitas / e curtas”, concluindo-se anaforicamente: “Eu sou aquela menina feia da ponte da Lapa. / Eu sou Aninha”. O poema todo não passa de uma auto-apresentação da “mulher que ficou velha” e que está “Cantando” agora o passado da cidade e, orgulhosamente, “Cantando teu futuro”. Ela trata a cidade como um ser vivo e humano, em segunda pessoa, como se estivesse conversando com ela. Na verdade, é como se a Aninha dos quinze anos estivesse dizendo a Cora Coralina dos setenta o que deveria ter dito antes, pensando no “futuro”. Mas qual deles? O da cidade ou o da própria escritora?. Note-se o intervalo temporal entre a primeira estrofe, quando ela está falando de sua infância, e o tempo da segunda, quando fala da mulher adulta (“Eu sou aquela mulher / que ficou velha”). Esta oposição entre o novo e o velho está na psicologia dramática do tempo que se perdeu entre a saída de Goiás e a volta quase cinqüenta anos depois. É aí que se dá no texto a presentificação da adulta até o fim, quando então se volta ao refrão da estrofe inicial. A estrutura deste poema é assim toda ela anafórica para a recuperação do tempo perdido… Dá-se aí a identificação metonímica com as coisas da cidade de Goiás: “Eu sou aquele teu velho muro”, “Eu sou estas casas, “Eu sou o caule”, “Eu sou a dureza desses muros”, concluindo-se com a repetição do verso inicial:
Eu sou a menina feia
da ponte da Lapa.
Eu sou Aninha.
Também o texto “Antiguidades” oferece “documentação” para a relação conflituosa com as irmãs, como se vê já no início. O poema fala de um bolo que enchia os olhos da menina, mas “A gente mandona lá de casa / cortava aquele bolo / com importância./ […] Eu presente. / Com vontade de comer o bolo todo./ Era só olhos e boca e desejo / daquele bolo inteiro”. Diz a seguir que sua irmã mais velha “governava. Regrava. Me dava uma fatia, / tão fina, tão delgada” e […] guardava bem guardado, / com cuidado, / num armário, alto, fechado, / impossível”. O mesmo se pode dizer do texto “Vintém de cobre”, como na p.47: “Eu vestia um antigo mandrião / de uma saia velha de minha bisavó. / Eu vestia um timão feio [camisola comprida] / de pedaço, de restos de baeta”. Mas havia o sonho do “pé-de-meia”, de “Melhorar de vida, prosperar, / num esforço inútil e tardio”.
Em “Velho sobrado”, p. 99, aparece a expressão “Nós, gente menor”. Mas é em “Minha infância”, com o sintomático subtítulo de “Freudiana”, que praticamente serve de fecho ao livro, o lugar em que se pode “documentar” o sentido maior de desprezo a que era submetida a personagem narradora, o que pode até pôr em dúvida se se trata mesmo de mito ou de realidade imaginada, talvez as duas coisas sendo uma só. Na verdade, são dois belos poemas que estão juntos no livro – “Minha infância” e “As tranças da Maria” – possuindo ambos excelente “documentação” sobre o tema que vimos expondo: o desprezo de Aninha, onde modéstia e orgulho se contrapõem. Vale a pena uma transcrição maior deste texto:
“Minha infância”
Éramos quatro as filhas de minha mãe / Entre elas ocupei sempre o pior lugar.
Duas me precederam – eram lindas mimadas. / Devia ser a última, no entanto,/
Veio outra que ficou sendo a caçula. // Quando nasci, meu velho Pai agonizava, /
Logo após morria. / Cresci filha sem pai,/ secundária na turma das irmãs. // Era
triste, nervosa e feia. / Amarela, de rosto empalamado. / De pernas moles, caindo à toa. /
Os que assim me viam – diziam: / — “Essa menina é o retrato vivo / do velho pai doente”
[…] Caía à toa. / Caía nos degraus./ Caía no lajedo do terreiro. / Chorava, importunava./
De dentro a casa comandava: “—Levanta, moleirona”. / […] “—Levanta, pandorga”,/ […]
“—Levanta, perna-mole…” // E a moleirona, pandorga, perna-mole / se levantava
com seu próprio esforço.// […] E a casa me cortava: “menina inzoneira!”/
Companhia indesejável – sempre pronta / a sair com minhas irmãs, / era de ver as arrelias /
e as tramas que faziam / para saírem juntas / e me deixarem sozinha. / sempre em casa.
A partir daí o poema vai fazendo um contraste entre a rua e a casa: na primeira o “mundo sugestivo de maravilhosas descobertas”, / “o rio, a ponte, gente que passava”; na segunda “Na quietude sepulcral da casa, / era proibida, incomodava, a fala alta, / a risada franca, o grito espontâneo, / a turbulência ativa das crianças”. “E a gesta dentro de mim”[negrito nosso], exclamava entre esperançosa e enojada. O poema termina com a Cora Coralina adulta repetindo a lembrança de que era “Triste e feia. / Amarela de rosto empapuçado. / De pernas moles, caindo à toa. / Retrato vivo de um velho doente. / Indesejável entre as irmãs. / / Sem carinho de Mãe. /Sem proteção de Pai… / — melhor fora não ter nascido”. No entanto, ela conclui que “E nunca realizei nada na vida”, embora, no fundo, devia estar consciente de que, aos vinte e um anos, teve a inteligência de “escrever” a “gesta” heróica — a proeza de mudar o seu destino e sair da acanhada Cidade de Goiás.
Contraponha-se agora a essas tristes reminiscências da infância a arquitetura do inesperado que se vinha preparando a algum tempo — a sua fuga da cidade de Goiás. O desejo de sair do comum, de buscar a liberdade com que sonhava, levou a jovem Cora Coralina ao extremo de fugir na garupa de um cavalo, embora fosse o meio comum de se viajar e de se roubar uma moça naquela época no Estado de Goiás, como bem documenta o conto “Mágoa de vaqueiro”, de Hugo de Carvalho Ramos. Querendo ou não, os seus escritos acabaram revelando, embora em fragmentos, a gesta, a epopeia dessa aventura [não da sua obra] que a tirou da cidade de Goiás e do próprio Estado de Goiás, levando-a a viver em cidades interioranas de São Paulo, lugares culturalmente inferiores ao que deixara.
Eis agora, alguns versos e fragmentos de versos encontrados em Poemas dos becos de Goiás e estórias mais, principalmente no belo poema “As tranças de Maria”, quando a Autora se identifica com a personagem, presentificando-se no texto: “E Maria… Aonde foi Maria? / Na garupa de um vaqueiro / desconhecido dali […] Moça não tem pensar… […] A moça no seu sumiço. […] Não mais chorassem por ela. […] E Maria nunca mais voltou. / Ninguém viu nada. / Ninguém ouviu nada. / O mato guardou seus segredos escuros. // Maria se foi na garupa / de um vaqueiro, desconhecido dali. […] Consolasse com o destino de sua filha. / Sinais?… Teriam a seu tempo”. [pusemos em negrito]. É certo que o poema-conto belíssimo termina enfatizando as forças regionais, mas deixando nas entrelinhas do intertexto, os sinais suficientes para mostrar que, pensando em Maria, Cora Coralina pensava também na sua gesta heróica de sair de Goiás. Creio que foi uma bela maneira de ocultar / revelar a sua própria história: uma contadora de “estória” (uma narradora) que fala de uma personagem que tem alguma coisa a ver com ela mesma. Um poema-narrativo que lembra alguma coisa do “Noturno de Belo Horizonte”, de Mário de Andrade, onde se fala da Serra do Rola Moça, com “o noivo com sua noiva / cada qual no seu cavalo”.
Eis também alguns exemplos extraídos de Vintém de cobre, onde se lê a força de vontade, o desejo vital de sair do ramerrão de sua vida familiar sem afeto em busca da aventura que lhe acenava com o sentido da liberdade. Em Vintém de cobre, com o subtítulo de “Meias confissões de Aninha”, encontra-se, logo no início, o “Cântico primeiro de Aninha”, onde há versos que parecem reduplicar os acontecimentos da vida real, e que brotam do discurso poético como um iceberg na solidão do viajante: “Cavalgando o negro corcel da febre. / Desmontado para sempre”, “Escondida no meu mundo, / Longe…. Longe … / Indefinido longe, nem sei onde. / O tardio encontro”. A seguir, no poema “Moinho do tempo”, aparece um verso que resume com indignação toda a vida difícil que levava: “Tanta pobreza a contornar”. Tanto sonho irrealizado, tanto abandono”. […] “E a gente a querer abrir uma brecha naquela muralha parda de pobreza e limitação”. [Negritos nossos]
Veja-se gora a beleza de um verdadeiro poema de versos livres, poema, não estória ou tipo de narrativa comum em vários outros textos de Cora Coralina. O poema “Aquela gente antiga – II”, além da contenção de linguagem, tem a força poética da dicção perfeita:
Aquela gente antiga explorava a minha bobice.
Diziam assim, virando a cara como se eu estivesse distante:
“Senhora Jacinta tem quatro fulores mal falando.
Três acham logo casamento: uma, não sei não, moça feia num casa fácil”.
[…]
Cresci com os meus medos e com o chá de raiz de fedegoso,
presente pelo saber de minha bisavó.
Certo que perdi a aparência bisonha.Fiquei corada
E achei quem me quisesse.
Sim, que esse não estava contaminado dos princípios goianos,
de que moça que lia romance e declamava Almeida Garrett
não dava boa dona de casa.[Negrito nosso]
É uma das raras vezes em que fala, embora obliquamente, do seu companheiro de fuga. Mas em “Semente e fruto” diz claramente: “Um dia, houve. / Eu era jovem, cheia de sonhos. / Rica de imensa pobreza / que me limitava / entre oito mulheres que me governavam.
E eu parti em busca do meu destino.
Ninguém me estendeu a mão.
Ninguém me ajudou e todos me jogaram pedra.
A ideia de saída é constante na suas memórias . “Em “Menina mal amada” confessa que “Tinha medo de ficar moça velha sem casar”. Em “Premonições de Aninha” lê-se o seguinte: “Por que não partiu para longe, distante”. Poderia ter acrescentado: “pera longes terras”, como no texto de Menina e moça, que ela devia conhecer no Gabinete Literário Goiano.
Aí está, mais que comprovado, o sentido maior da antítese: A (irmãs ruins), logo B (saída de perto delas). Mas vejamos em seguida uma possível síntese dessa vida dramática, valendo-nos da sua metalinguagem, melhor dizendo, do seu apego à figura do disfemismo, forma de expressão literária de menosprezar o que escreveu para mais valorizá-los do que por verdadeira modéstia e humildade. O orgulho velado da inteligência literária de Cora Coralina, descoberta precocemente já era um modo de contrapor-se às suas irmãs. E agora, na velhice, procura disfarçar, esse orgulho (na verdade lhe dando mais ênfase) quando escreve que seus textos não valem nada, numa espécie retórica do disfemismo tão comum nos grandes escritores, como no Tutameia, de Guimarães Rosa, por exemplo. Na abertura de Poemas dos becos de Goiás e estórias mais, além do texto “Este livro”, cujos versos finais nos deram motivo para mencionar o jogo dialético entre Modéstia e Orgulho, traz uma “Ressalva” (p. 31) que, por si só, com seus vários significados de “atestado”, de “nota para corrigir erro naquilo que se escreveu ou publicou”, funciona também como documento, exceção, reserva, etc. Mas a “ressalva” de Cora Coralina tem um sentido claro de metalinguagem quando diz na primeira estrofe que “Este livro foi escrito / por uma mulher / que na tarde da Vida / recria e poetisa sua própria / Vida”. Note-se que “Poetisa” está aí como verbo, a sugerir que a sua obra transmite magia à própria vida da escritora. A segunda estrofe repete um pouco, mas sem a força poética da primeira. É a parte final que confirma o que ela pensa dos seus versos e poemas, melhor, o que ela não pensa; por astúcia ou veracidade, ela passa a sua dúvida e a sua batata quente ao leitor: este é quem tem de saber se é poema, se é poesia, se é verso ou se tudo não passa de umas simples e velhas estórias:
Este livro:
Versos…. Não.
Poesia…. Não.
um modo diferente de contar velhas histórias.
Esse “modo diferente” levou a própria escritora, com ceerto orgulho, a pensar que era verdade, que era diferente, que estaria renovando… Mas não estava: era o mesmo, o mesmo tipo de escrita já usado por muitas outras escritoras brasileiras. Apenas com uma ressalva importante: Cora Coralina fazia realmente o mesmo, mas com o talento literário dela, só dela, de mais ninguém. Reunido todos esses exemplos (catados apenas nos livros acima mencionados), tem-se a teoria de que o conflito com a própria família foi resolvido com a saída de Goiás, surpreendendo a todos. E é por essa fuga que ela encontra noutro lugar o sentido da liberdade, interrompendo com isso toda a iniciação literária e cultural que vinha adquirindo em Goiás. Daí porque, entre família e fuga, ela soube voltar ao ponto de partida e construir, na velhice, com a força telúrica da sua vivência na região, um belo depoimento pessoal, de grande importância para o conhecimento da mulher e da cultura do Planalto Central nos anos que se seguiram à República e à Abolição da escravatura no Brasil.
Relações com a obra
Vai em anexo, uma espécie de fortuna crítica da minha relação com a obra de Cora Coralina:
A — Em 1956, quando Cora Coralina voltou a Goiás, depois de uma ausência de 45 anos, os escritores goianienses — de Goiânia — (por intermédio da ABDE – Associação Brasileira de Escritores de Goiás), fizeram-lhe uma homenagem no Jóquei Clube de Goiás e no restaurante Bamboo. Na ocasião foram homenageados também outros escritores que havia publicado o seu primeiro livro, entre os quais este que escreve.
B – Em 1964, em A poesia em Goiás, escrevi sobre a contribuição feminina às letras goianas, e sobre Cora Coralina anotei na p. 509:
CORA CORALINA, Goiás, é o pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto, conforme já registra o Prof. Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, em 1910: “é um dos maiores talentos que possui Goiás [Cidade]; é um temperamento de verdadeiro artista. Não cultiva o verso, mas conta na prosa animada tudo o que o mundo tem de bom, numa linguagem fácil e harmoniosa, ao mesmo tempo elegante. É a maior escritora do nosso Estado, apesar de não contar ainda vinte anos de idade”. [cf. p. 209]. Anotei o seguinte: “Parece um tanto exagerada a opinião do famoso professor goiano, mas Cora Coralina desde aquela época parece que nunca deixou de fazer a sua literatura, passando do conto ao verso, ou melhor, ao poema em prosa, porquanto, apesar da forma do verso livre, a sua linguagem não possui muita densidade poética, a não ser num ou noutro poema, como nos que escolhemos para a Antologia [segunda parte do livro]. Mas é na verdade exímia contista, conforme salientamos no primeiro número dos Cadernos de Estudos Brasileiros, de 1963, Na revista Oeste, nº 4, p. 30, José Lobo [J. Lúpus] nos dá notícia de que Cora Coralina escreveu um livro com o nome de Canção das águas. Houve engano tal livro nunca existiu. Trata-se apenas de um poema, bastante longo. Aliás, na sua Bibliografia, J. Lupus comete também outros enganos, segundo já dissemos, quando tratamos de Bráulio Prego. [Na verdade a crítica em Goiás foi sempre superficial, contentando-se em elogiar parentes e amigos sem a preocupação maior do sentido universal.] O único trabalho publicado de Cora Coralina é o seu O Cântico de volta (1956)*.
Depois de muitos anos fora de nosso Estado, a escritora voltou e os intelectuais goianienses receberam-na com um coquetel onde se distribuiu esse livro, melhor, uma plaqueta em que a autora se mostra deslumbrada com a cidade de Goiás, que há muito tempo havia deixado na garupa de um cavalo… Não se trata todavia de poemas, e sim de crônicas, na acepção moderna que a palavra veio a tomar, e na qual se revela talentosa. Daí trechos, como sobre as lavadeiras: “Quando, de tarde, atravessam as ruas grandes trouxa alvacentas, equilibradas nas trunfas, têm um cheiro infante e gotoso de gente limpa, água e sabão”. E termina oferecendo sua crônica-poema com bastante força poética: “Para ti, cidade Mater, este cântico perdido de quem volta às origens da Vida”.O curioso é que nenhum desses poemas se encontra nos livros acima mencionados. [Nota de 2017.]
C – Em 1969, em O Conto Brasileiro em Goiás, escrevi:
Parece que o único conto representativo dessa fase nebulosa e genética da ficção em Goiás é “Tragédia na roça”, de ANA LINS DOS GUIMARÃES PEIXOTO (1890-1985), mais conhecida pelo pseudônimo de Cora Coralina. Vem publicado na página literária do Anuário Histórico, Geográfico e Descritivo do Estado de Goiás, de 1910 […] De fato, percebem-se no conto de Cora Coralina os primeiros sintomas do regionalismo goiano, evidentemente mais no aproveitamento do tema rural do que pelos caracteres da linguagem criadora, de teor poético mas estilisticamente romântica. No entanto, apesar de uma e outra imagem já inoperante e frágil para a época, apesar da estrutura numa mesma pauta e ritmo, não se pode negar-lhe a movimentação dramática, a concisão expressiva, a fina sensibilidade da pincelada rápida e sugestiva.
D – O poema “Coral” em 1985— Um dia a escritora Heloísa de Campos Borges, ex-presidente da Academia Feminina de Letras e Artes, me disse que Cora Coralina se lamentava de eu não ter escrito nada sobre ela. Estranhei, pois quando a visitei em Goiás, ela tinha os meus dois livros (A poesia em Goiás e O conto brasileiro em Goiás) na estante. Foi então que, a pedido da Heloísa, escrevi o poema “Coral”, publicado em Saciologia goiana e musicado por Antônio Verve no Rio de Janeiro e por Marcelo Barra em Goiânia. Saiu na 3ªª edição de Saciologia goiana (1986). A escritora, já na UTI, não pôde ver meu poema de pura homenagem a ela. Aí vai ele:
CORAL
Cora Cora Coralina Cora Cora Coralina
cora o verde da campina cora o peixe da piscina
cora o vento dos gerais cora a festa dos pardais
cora o peito da camisa cora tudo que me inspira
cora o elo desta brisa cora as cordas desta lira
na divisa de Goiás. cora o tempo de Goiás.
Cora Cora Coralina Cora Cora Coralina
cora o ouro dessa mina ora lâmina mais fina
cora a terra e seus cristais cora a ponta dos punhais
cora tudo que não tenho cora a força deste tema
cora a moenda do engenho cora a letra do poema
moendo o som de Goiás. na escritura de Goiás.
Cora Cora Coralina
cora a face da menina
cora a cor dos arrozais
cora o nome que desliza,
cora a coisa mais precisa
na divisa de Goiás.
[Saciologia goiana, 2ª ed.,1986.]
E –Em Entrevista a Deonísio da Silva, divulgada pelo site “Plataforma para a Poesia”, em 24 de julho de 2004, perguntado sobre o que eu pensava da obra de Cora Coralinas, respondi o que continuo a responder:
Os seus poemas constituem um belo mito literário de Goiás e — por que não? — de todo o Brasil. E, como todo mito, foi criando a sua própria estrutura, uma superestrutura, uma linguagem estratosférica e fechada que impede que a obra seja realmente e examinada, e julgada. E como se iniciou tudo isto? Através de um duplo movimento: Primeiro, com a sua saída de Goiás: Cora Coralina (cujo nome literário por si só já possui um encantamento mítico-poético) saiu da Cidade de Goiás (que também por si só é um berço de mitos) ainda muito nova, em 1911, numa aventura que deixou seus habitantes boquiabertos, criando-se um sentido evemerista para a base do mito. Nesse período não publicou quase nada. Segundo, com sua volta a Goiás, 45 anos depois, em 1956 o tecido mítico já estava quase pronto: só faltava um ingrediente de ordem superior que o ativasse. E isto se deu com o início da publicação de seus “poemas” e uma série de pequenos acontecimentos oportunos, como a crônica do Drummond, em que se fala mais da mulher de 70 anos e dos temas do que da sua linguagem poética e quando toca no verso parece desconversar, dizendo apenas: “O verso é simples, mas abrange a realidade vária”. A partir daí fala de sua “consciência humanitária […] que o seu verso consegue exprimir tão vivamente em forma antes artesanal do que acadêmica” [negrito nosso]. O poeta não fala do verso, mas do tema. É o único momento em que fala dos versos da escritora goiana. Assim, o mito drummondiano se estendeu sobre o nome de de Cora Coralina, ampliando-o no sentido da “forma antes artesanal do que acadêmica”.
Aliás, Cora Coralina chegou a Drummond por intermédio do editor José Olympio, o seu grande editor. A pedido do velho J. Olympio (para quem Cora trabalhou vendendo livros em São Paulo), Drummond leu e escreveu uma crônica. Foi o estopim acendido. Um leitor consciencioso percebe que Drummond evita falar da estrutura dos poemas e concentra o seu elogio na capacidade de Cora já idosa tratar das coisas simples e humanas. Ele se encantou com a mulher de setenta e tantos anos e com a sua disponibilidade para escrever. As feministas, reunidas no Rio de Janeiro, precisavam de uma referência como a de Cora Coralina e a tomaram como símbolo do movimento das mulheres. Cora, inteligentemente, aceitou as homenagens do movimento, escrevendo muitos de seus últimos poemas sobre esse e outros temas sociais. Aí todo mundo foi atrás – gente, professores, políticos, todo mundo passou a repetir o sentido hiperbólico desse mito que ficou assim consolidado.
Desta maneira aquele que escreve hoje sobre Cora Coralina está inconscientemente “dirigido” pela linguagem mítica, que é simbólica e, como tal, opressora, vertical e impositiva, de cima para baixo. A especulação crítica perde a sua liberdade e o estudioso não se dá conta de que está escrevendo o “esperado”. Escreve-se sobre a mulher e não sobre sua obra, que vai ficando “invisível” como forma literária. Só se veem os “temas”, como se isto por si só constituísse a literatura. As dissertações de mestrado e os trabalhos que aparecem são “sobre” Cora Coralina e não sobre sua obra. Com isto, os elementos estruturais, estéticos e estilísticos de seus poemas e os problemas primários de verificação de manuscritos e textos publicados depois da morte da autora vão sendo marginalizados. E o público, que não sabe nada disto, vai achando que é assim mesmo. Mas está errado. A crítica não tem a função emotiva de confirmar o que já se disse, e sim a de examinar a obra, reexaminá-la e trazer novas contribuições que justifiquem o seu valor na literatura.
As editoras do Brasil não estão interessadas nesses problemas: querem é faturar, vender os livros da autora, independente de estarem ou não fiéis aos manuscritos. E o problema vai rolando até que um dia apareça alguém que faça um estudo digno do nome e do mito de Cora Coralina, sem o malabarismo de citar Deus e todo o mundo para justificar o inexplicável. Desviam-se da obra para o contexto, onde metem à força a escritora, falseando a idéia de geração e a visão teórica dos gêneros. Para isto é preciso partir apenas da sua obra: não ter medo de desagradar à filha e levantar o que Cora publicou em revistas e jornais, antes de voltar para Goiás — na primeira fase do mito. Na verdade, não publicou quase nada, conforme se vê na Informação Goiana, do Rio de Janeiro, onde só encontramos três crônicas e nenhum poema. Em seguida, ver os seus livros e os poemas inéditos, num trabalho preliminar de preparar os textos de Cora para o futuro leitor. E só depois analisar seus poemas, a partir da linguagem deles, mostrando os textos como eles são, revelando o seu valor pelo modo com que foram produzidos e estruturados. Daí, tenho certeza, sairá não um antimito, mas uma Cora Coralina digna de ser realmente reverenciada como signo, como ícone, como âncora (não como símbolo) da cultura goiana.
Rio de Janeiro, 23 de março de 2017
* O Cântico de volta, de Cora Coralina, não traz indicação de editora nem de data, mas foi publicado na Cidade de Goiás, em 1956. Trata-se de duas folhas apenas, em formto13 x 24.