Milionários estão fugindo do Brasil? Dados da Receita mostram que não

31 agosto 2025 às 10h32

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Em meio à tramitação da reforma do Imposto de Renda na Câmara dos Deputados, voltou à cena uma polêmica recorrente: a ideia de que o Brasil estaria vivendo uma fuga de milionários, fenômeno que poderia se intensificar com a alta da tributação sobre os mais ricos. O debate ganhou fôlego após a consultoria Henley & Partners divulgar um relatório em junho prevendo que 1,2 mil milionários devem deixar o país em 2025 — um crescimento de 50% em relação a 2024, o que colocaria o Brasil como líder latino-americano em “êxodo de milionários”.
A estimativa, no entanto, não é aceita sem questionamentos. Para verificar se há fundamento na tese, a BBC News Brasil obteve dados inéditos da Receita Federal, via Lei de Acesso à Informação, sobre declarações de saída definitiva do país. O documento é obrigatório para quem permanece mais de 12 meses no exterior ou transfere residência fiscal de forma permanente. O levantamento mostra que, embora centenas de milionários deixem o país a cada ano, a proporção em relação ao total de pessoas nessa faixa de renda está em queda.
Até agosto de 2025, 1.446 milionários entregaram a declaração de saída definitiva — número expressivo, mas que representa menos de 1% do total e está distante de configurar uma debandada. A tendência de queda é observada desde 2017, quando houve recorde de saídas em meio à crise política, ao auge da Operação Lava Jato e à lei de repatriação de recursos mantidos no exterior.

Especialistas divergem sobre impacto da tributação
As entrevistas conduzidas pela BBC News Brasil com economistas, consultores e especialistas em tributação ajudam a esclarecer o cenário. Para Pedro Humberto Carvalho Jr., pesquisador do Ipea, os dados mostram que mudanças tributárias não explicam sozinhas o movimento migratório. “Se você quiser olhar o impacto de mudanças na legislação na mudança de domicílio fiscal dos milionários, o melhor é dividir o total de saídas pelo total de milionários”, argumenta.
Sergio Gobetti, também pesquisador do Ipea, reforça a ideia de que o crescimento no número absoluto de milionários distorce a leitura. “Ter R$ 1 milhão de renda em 2011 é muito diferente de ter R$ 1 milhão de renda em 2025. Naturalmente, o número vai crescendo ao longo do tempo.” Em estudo publicado no portal FiscalData, Gobetti mostrou que a fatia do 1% mais rico na renda nacional saltou de 20,4% para 24,3% entre 2017 e 2023, com destaque para o 0,1% mais rico, cuja renda é impulsionada por lucros e dividendos.
Na visão da Henley & Partners, a questão tributária é central. Michel Soler, diretor da empresa na América Latina, avalia que a migração de milionários está associada a busca por novos estilos de vida e segurança. “Temos visto essa tendência na última década. As pessoas procuram mais oportunidades de negócios e, claro, mais segurança também no que diz respeito à vida pessoal.” Bruno Cury, que lidera o escritório no Brasil, acrescenta que a reforma tributária funciona como um incentivo adicional: “É uma forma para os brasileiros buscarem outras jurisdições para se realocar, uma espécie de ‘plano B’”.
Gobetti, contudo, questiona a ideia de que a tributação seja um fator decisivo. “Para onde [os milionários] pretendem migrar a fim de obter um tratamento mais privilegiado do que já possuem no Brasil?”, indaga. Ele lembra que mesmo com a criação de uma alíquota de 10% sobre dividendos, como prevê a reforma, o Brasil seguirá abaixo da média da OCDE, onde a tributação sobre lucros chega a 42,8%, contra os 40,6% que o país teria após a reforma.
Debate político e efeitos econômicos
O ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles, em entrevista à BBC News Brasil, fez ressalvas à proposta em análise no Congresso. “O problema são esses aumentos generalizados para pessoas de renda mais alta ou para empresas. Isso pode prejudicar um pouco a competitividade”, avaliou. A crítica reforça a disputa de narrativas em torno da reforma, considerada pelo Planalto uma medida popular de justiça social, mas que enfrenta resistência de parte do empresariado e do mercado financeiro.
A discussão também toca em outra dimensão: a do impacto econômico da saída de milionários. Consultores como Soler argumentam que a migração de pessoas de alta renda implica em perda de investimentos, empregos e arrecadação. Já pesquisadores como Carvalho Jr. defendem que o risco maior está em brechas na legislação que permitem benefícios fiscais a não residentes. Para ele, o Brasil deveria adotar medidas como um “imposto de saída”, aplicado na transferência de domicílio fiscal, além de tributar dividendos enviados ao exterior.
O dilema brasileiro
Os números da Receita mostram que, ao contrário do discurso alarmista, não há um êxodo de milionários em curso. O movimento existe, mas tem peso pequeno diante do crescimento do número de pessoas nessa faixa de renda. A polêmica, no entanto, expõe um dilema central: como o Brasil pode ampliar a justiça tributária sem comprometer a competitividade internacional e sem abrir espaço para que os super-ricos encontrem alternativas fiscais fora do país.
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