“Lições de abismo”, livro de Gustavo Corsão, foi publicado em 1954. Ele estava há muito tempo em meu plano de leitura. Fui atraído pelo título. O abismo do livro é diferente do desta crônica homônima. Corsão fala do personagem José Maria, um homem doente, com a morte batendo à sua porta. Minha próxima empreitada de leitura é reescalar “A montanha mágica”, de Thomas Mann.

Outrora, já fui de ler muito, mesmo não lendo bem, por me faltar maior familiaridade com as palavras como a que tenho hoje. Já desperdicei muitas manhãs ensolaradas e noites enluaradas com livros que não valeram as árvores derrubadas para que eles existissem.

Os pardais, ao contrário de algumas aves, não botam seus ovos em ninhos alheios com o objetivo de fugir da responsabilidade de chocá-los e consequentemente cuidar dos filhos. Eles são pais responsáveis. O chupim, por exemplo, está entre as aves “irresponsáveis”, visto que bota seus ovos em ninho alheio e cai no mundo. Quando o chupim faz isso em ninhos de aves menores que ele, os pais “adotivos” quase morrem de trabalhar em busca de comida para os filhos maiores que eles. Já registrei fotograficamente no muro do Palácio das Esmeraldas um sabiá-laranjeira tratando de um chupim; neste caso não há desigualdade de tamanho. Também presenciei um tico-tico ralando para alimentar um filhote maior que ele. E até um sabia-poca.

Antes de citar o fato que me fez enxergar uma lição de abismo e assim construir este texto, vou relatar algo paralelo, mas sem perder o fio da meada. Pois bem. Que filhotinho faminto aquele! Aonde o pai ia, o pardalzinho ia atrás, pipilando seu pedido de comida e batendo as asinhas. O pai, que não fugia da obrigação paternal, saía saltitando entre os vários bancos e mesas de cimento, instalados um gramado viçoso à porta de uma lanchonete, a recolher as migalhas de comida para seu filhotinho faminto. Ao cuidar do pardalzinho, o pai, inconscientemente, dava ao filho lições de sobrevivência e também de como ele deveria fazer para com seus filhos quando fosse também pai ou mãe.

Não foi, entretanto, a lição dada pelo pardal ao seu filhotinho que vi aquela mulher passando ao neto, um menino de aproximadamente cinco anos de idade. Ambos estavam na porta do restaurante onde almoço com frequência. Um policial militar, que também almoça por lá, aconselhou a mulher a não se valer do neto para pedir esmolas. Temendo a advertência, ela agora está sozinha na sua rotina de pedinte. Antes o ato de pedir era incumbência do menino. A ela cabia a tarefa de abrir uma bolsinha rosa, encardida, para que o neto colocasse o dinheirinho que ganhava.

Essa estratégia desumana de marketing (uso de criança para pedir esmolas ou vender coisas em portas de estabelecimentos comerciais, principalmente à noite, quando essas crianças deveriam estar sonhando com anjos), já se tornou rotina. Desta maneira, a lição de abismo é passada às crianças. Nas ruas do Centro, por exemplo, há casais venezuelanos com crianças pedindo esmola.

Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza