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Uma pequena ilha no Golfo da Guiné, a cerca de 500 quilômetros da costa africana, virou manchete após um pedido inusitado: se tornar parte da Argentina. Trata-se de Annobón, território pertencente à Guiné Equatorial. A proposta, que inicialmente gerou reações bem-humoradas nas redes sociais argentinas, tem raízes profundas em denúncias de violações de direitos humanos e abandono estatal.

Em entrevista exclusiva à revista Galileu, o autoproclamado primeiro-ministro de Annobón, Orlando Lagar, afirmou que a população local está sendo vítima de um processo sistemático de extermínio. “Não somos políticos profissionais. Somos filhas e filhos de Annobón que não podemos mais ficar calados diante do abandono e da violência lenta que sofre nossa terra”, disse.

Uma ilha com raízes lusófonas

Com passado ligado ao tráfico de escravizados portugueses, Annobón mantém laços históricos e culturais com Angola, São Tomé e Príncipe e, por consequência, com o Brasil. A língua local tem origem portuguesa, e a cultura é marcada pela miscigenação entre descendentes de escravizados e colonizadores.

Apesar dessa identidade, a ilha foi incorporada à Guiné Equatorial por meio do Tratado de El Pardo, em 1778, quando Portugal cedeu o território à Espanha. Desde então, a ilha passou a integrar a antiga Guiné Espanhola, que chegou a ser administrada a partir de Buenos Aires — vínculo remoto que motivou o recente apelo de anexação à Argentina.

Segundo Lagar, a aproximação com o governo argentino foi uma tentativa de chamar a atenção internacional depois de sucessivos pedidos de ajuda ignorados pelos países de língua portuguesa. “Buscamos contato com o Brasil, Portugal, Angola, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. Ninguém respondeu”, afirmou.

“Nossa luta é pela sobrevivência”

A denúncia central de Lagar é de que o governo da Guiné Equatorial promove uma política deliberada de despovoamento da ilha. “Em Annobón, não há acesso à saúde, educação, eletricidade, água potável, transporte ou qualquer infraestrutura básica. Jovens são forçados a emigrar. Isso não é acidente: é estratégia.”

Segundo ele, a ilha está sob ocupação militar, com registros de deportações, desaparecimentos forçados e realocação de populações de outros grupos étnicos para modificar a composição demográfica local. “Trata-se de uma operação sistemática de supressão cultural e étnica”, denuncia.

A situação levou à autoproclamação de independência em 2022, após assembleias populares da diáspora e de habitantes locais. O movimento, segundo Lagar, é legítimo e pacífico. “O que pedimos inicialmente foi autonomia de gestão. Como fomos ignorados, proclamamos nossa autodeterminação.”

A CPLP e o silêncio lusófono

A Guiné Equatorial tornou-se oficialmente membro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) em 2014, graças justamente à herança cultural de Annobón. Na prática, porém, segundo Lagar, esse vínculo tem sido instrumentalizado pelo regime apenas para obter legitimidade internacional.

“A cultura anobonense é a única conexão real entre a Guiné Equatorial e o mundo lusófono. E é justamente essa cultura que está sendo reprimida”, afirma. “Não há sequer um estudante anobonense no Brasil, em Portugal ou em qualquer outro país da CPLP. Não temos acesso a bolsas, intercâmbios ou ajuda institucional.”

A Rede de Direitos Humanos da CPLP, segundo ele, recusou-se a intervir alegando que não há nenhuma organização guineense de direitos humanos formalmente integrada ao grupo — o que, para Lagar, é uma prova da ausência de sociedade civil no país.

Exílio forçado e luta por visibilidade

Orlando Lagar vive atualmente na Espanha, onde lidera o movimento anobonense no exílio. “Deixamos o país não por escolha, mas por necessidade. É a única forma de sobreviver e garantir algum futuro aos nossos filhos”, explica.

A decisão de apelar à Argentina surgiu da urgência em obter visibilidade internacional. O gesto provocou uma onda de memes no país sul-americano, com internautas recriando a ilha no Google Maps com homenagens a Maradona, Messi e churrascarias fictícias. “Recebemos com gratidão e humor. Por trás de cada meme há uma história real de sofrimento. Se o humor ajuda o mundo a nos ouvir, já quebramos o cerco do esquecimento.”

O apelo final: ajuda do Brasil

Para Lagar, o Brasil tem papel estratégico na defesa dos direitos do povo anobonense. “Queremos nos conectar com o mundo lusófono. Grande parte da nossa sobrevivência depende disso. Esperamos que o Brasil, como nação influente e de raízes comuns, possa ouvir nosso clamor.”

Enquanto isso, a ilha de Annobón segue entre o abandono e a resistência. De um lado, a repressão silenciosa da Guiné Equatorial. De outro, a esperança de que uma piada no mapa transforme-se em solidariedade real.

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