A Universidade Harvard anunciou na quarta-feira, 27, que removeu a encadernação feita de pele humana de uma edição do livro “Des Destinées de l’Âme” (os destinos da alma). A cópia da obra estava na biblioteca da Universidade desde 1934.

A decisão de retirar ocorreu devido à ‘natureza eticamente complexa das origens e da história do livro’. ”Os restos mortais devem ser tratados com dignidade”, escreveu a Universidade em comunicado. O dono do livro, médico Ludovic Bouland, foi quem encadernou a obra com a pele de uma de suas pacientes.

Enquanto ainda era estudante de medicina, Ludovic retirou o órgão sem consentimento do corpo de uma paciente morta em um hospital psiquiátrico onde trabalhou na década de 1860. No livro, há uma nota feita por Bouland em que ele afirma que a pele humana foi retirada das costas de uma mulher e colocada na capa porque “um livro sobre a alma humana merecia ter uma cobertura humana”.

A descoberta do material humano foi feita em 2014 por um grupo de cientistas. Atualmente, a universidade americana disse que falhou em padrões éticos ao usar “um tom sensacionalista, mórbido e humorístico” ao se referir à obra e que pretende dar “uma destinação final respeitosa para devolver dignidade à mulher cuja pele foi usada”. Apesar disso, a administração disse continuar comprometida com a liberdade intelectual e acadêmica.

“A Biblioteca está agora no processo de conduzir pesquisas biográficas e de proveniência adicionais sobre o livro, Bouland, e a paciente anônima, bem como consultar as autoridades apropriadas na Universidade e na França para determinar uma disposição final respeitosa desses restos mortais humanos”, disse Harvard em nota.

A capa do livro Des Destinées de l’ame. | Foto: Divulgação

Durante sua revisão, a biblioteca identificou várias falhas em suas práticas de administração que não estavam alinhadas com os padrões éticos que ela se comprometeu a seguir. Até recentemente, o livro em questão era disponibilizado a qualquer pessoa que o solicitasse, independentemente do motivo.

A tradição da biblioteca remonta a décadas atrás, quando estudantes encarregados de catalogar coleções nas estantes de Houghton foram solicitados a recuperar o livro sem receberem informações sobre a presença de restos humanos em seu conteúdo, o que gerou confusão.

A Biblioteca de Harvard reconheceu falhas passadas na administração do livro que objetivaram e comprometeram ainda mais a dignidade do ser humano cujos restos mortais foram usados ​​para sua encadernação. “Pedimos desculpas às pessoas afetadas negativamente por essas ações”, concluiu a Universidade.

Sobre a obra

Cópia de Des Destinées de l’Ame que continha pele humana na encadernação na Universidade de Harvard. Fotografia: Universidade de Harvard

O livro, escrito pelo romancista francês Arsène de Houssaye, foi publicado na década de 1880 e contém reflexões sobre a natureza da alma e sobre a vida após a morte. Ele está nas coleções da Biblioteca de Harvard desde 1934, inicialmente aceito em depósito por John B. Stetson Jr. (1884–1952), um diplomata americano, empresário e ex-aluno de Harvard (AB 1906); transferido da Biblioteca Widener para a Biblioteca Houghton em 1944; e doado pela viúva de Stetson, Ruby F. Stetson, à Biblioteca Houghton em 1954.

Em suas páginas, Houssaye aborda temas como a natureza do bem e do mal, a existência de Deus, a imortalidade da alma, e a busca pela verdade e pela virtude na vida humana. Suas reflexões muitas vezes são permeadas por uma visão cética e irônica da condição humana, e ele frequentemente utiliza a sátira e a crítica social para expressar suas ideias.

Há registros de encadernação de livros com pele humana desde pelo menos o século 16. A prática é chamada de bibliopegia antropodérmica. Historicamente, essa técnica era realizada de diversas maneiras, mas geralmente envolvia a remoção da pele de um cadáver humano e seu tratamento para ser usada como material de encadernação.

Os métodos exatos variavam, mas geralmente incluíam o curtimento da pele para torná-la mais durável e resistente à deterioração. Uma vez que a pele estava preparada, ela era cortada e moldada para se ajustar à capa do livro. Em alguns casos, a pele era decorada com relevos, bordados ou outros detalhes para tornar a encadernação mais ornamentada.

A prática era comum especialmente nos séculos XVIII e XIX, e era muitas vezes associada a coleções privadas ou institucionais. Livros encadernados em pele humana podiam ser encontrados em bibliotecas privadas de acadêmicos, colecionadores ou até mesmo em instituições médicas.