A Lei Rouanet, grande combustível para mobilização de bolsonaristas-raiz, é usada na guerra cultural para barrar eventos que vão de encontro ao viés ideológico do governo

É muito mais do que ter um versículo do Evangelho como lema de campanha (ainda que pratiquem, no governo, o contrário do texto, o que não chega a surpreender): se dependesse das intenções do governo Bolsonaro, ao que parece, o Brasil já estaria mergulhado de cabeça na teocracia.

A prova mais recente disso ocorreu em mais um episódio da mal-afamada (pela extrema-direita) série A Mamata Acabou que tem como protagonista a Lei Rouanet, um dos poucos incentivos de iniciativa federal destinados à cultura, nesses tempos bolsonaristas.

O Vale do Capão é um recanto ecológico localizado na Chapada Diamantina, no município de Palmeiras (BA), mais precisamente no distrito de Caeté-Açú, a 470 quilômetros de Salvador. É lá que, faz dez anos, se realiza o Festival de Jazz de Capão, um evento que se caracteriza, além da música, pela sustentabilidade ambiental – guardadas os gêneros, semelhante ao que se tem na cidade de Goiás com o Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (Fica).

Cartaz do Festival de Capão, rejeitado por parecer técnico para ter direito a acessar incentivos da Lei Rouanet | Foto: Reprodução

Mas surgiu um “problema” para a aprovação da renovação do apoio da lei ao Festival do Capão. É que o evento se posiciona como “um festival antifascista e pela democracia”. 

E, como bela forma de passar recibo sobre o que é a essência deste governo, o parecer técnico sobre o projeto rejeitou o pedido, baseado em uma postagem na página do evento no Facebook em que há a afirmação: “Não podemos aceitar o fascismo, o racismo e nenhuma forma de opressão e preconceito”. Detalhe: a postagem foi feita em 1º de junho do ano passado – embora o evento continue a ter como base clara a luta pelos princípios.

Foi assim – mas não só com esse argumento – que a Fundação Nacional de Artes (Funarte) tornou o evento não mais elegível para ser financiado pela Lei Federal de Incentivo à Cultura, o nome oficial da Lei Rouanet.

E, como todo bolsonarista que se preze, o secretário nacional de Cultura, o ex-ator Mário Frias, foi às redes sociais exaltar o ato de seu subordinado:

No governo que usou e usa toda a estrutura da República para aparelhamento ideológico com vistas a seus intuitos nada republicanos – agora prioritariamente para se defender ou abafar as denúncias de corrupção das pessoas e das estruturas que vazam por todos os lados –, o ator frustrado de Malhação que ganhou poder acha que falar sobre política num combate a um fascismo que ele considera próprio “imaginário” é um grande problema. 

É como um analfabeto de pai e mãe criticar a falta de um acento no texto do outro. 

Mas o pior vem agora: na reprovação ao festival, a Funarte concluiu que o Festival do Capão “não tem condições técnicas e artísticas de ser aprovado” também porque não falava em Deus.

É o que diz o parecer técnico desfavorável, que começa tendo como uma espécie de epígrafe uma frase atribuída ao compositor clássico Johann Sebastian Bach:

“O objetivo e finalidade maior de toda música não deveria ser nenhum outro além da glória de Deus e a renovação da alma”

Em outra parte do parecer: “Por inspiração no canto gregoriano, a Música pode ser vista como uma Arte Divina, onde as vozes em união se direcionam à Deus”. Também citou que “A Arte é tão singular que pode ser associada ao Criador”.

De fato, em séculos passados, especialmente na Idade Média, a música e a arte do mundo cristão-ocidental eram destinadas somente ao divino.

Os tempos são outros, mas o governo Bolsonaro está preso em seu próprio tempo. Nada mais medieval no que diz respeito à diversidade e às diferenças (de gênero, de religiosidade, de cultura etc.) do que essa gestão e esse período.

Da atualidade, o que resta é a mesma e eterna corrupção de sempre no Brasil. Agora, no entanto, abraçada não mais com sindicatos e ONGs, mas com pastores e militares.