Folclore mantém identidade cultural de Goiás e carrega o pertencimento de vida de todas as regiões do Estado

09 setembro 2025 às 14h15

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Goiás carrega em sua memória coletiva uma das expressões mais ricas da cultura popular brasileira. O folclore goiano, formado por lendas, danças, festas religiosas, personagens simbólicos e tradições passadas de geração em geração, representa um elo entre história, sociedade e identidade. Para entender como essas manifestações continuam vivas e se transformam ao longo dos séculos, o Jornal Opção conversou com o arqueólogo Wesley Charles Oliveira, mestre em Arqueologia pela Universidade de São Paulo (USP), graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Goiás e diretor da Habilis, consultoria científica na área de arqueologia.
Logo no início da entrevista, Wesley faz questão de situar o leitor no tempo: “É importante lembrar que o folclore goiano é abrangente, mas temos que lembrar que ele tem raízes no passado, no século 18.”
Entre os exemplos citados por Wesley, está a Cavalhada, trazida pelos europeus ao Brasil e que simboliza a luta entre mouros e cristãos. Embora esse embate nunca tenha ocorrido em terras brasileiras, a representação foi incorporada à cultura local por influência da Igreja Católica. Segundo ele, “muitos dos nossos folclores são associados à questão religiosa”. No entanto, o que era europeu não permaneceu intacto. “Ela vai se modificando com o tempo. Aí já entra numa questão antropológica, porque como foi no passado, a gente vai readaptando, trazendo para a realidade local”.

Wesley ressalta que o folclore goiano não pode ser reduzido a uma única matriz. Catolicismo, tradições quilombolas, elementos indígenas e heranças africanas se misturam, formando um sincretismo único. Um exemplo disso é a Capoeira, herança da resistência negra, hoje tombada como patrimônio nacional. “Ela é um marco de luta, mas não estou falando luta no sentido de briga, mas de marcar um povo, marcar uma tradição, marcar uma luta social contra aquele regime que acontecia do escravocrata”.
O antropólogo cita também as Raizeiras, conhecimento tradicional de raízes medicinais com forte influência indígena, também já tombado. Heranças que vão se mesclando no cotidiano. “Geralmente quando eu conto isso, a primeira coisa que as pessoas falam para mim é, ‘nossa, lá no fundo da casa da minha avó, tinha um jardim que quando a gente adoecia, ia lá e pegava uma folha disso, fazia um chá daquilo’”.
“Se tem uma coisa que nós brasileiros possuímos em nosso máximo, é o nosso sincretismo, é a miscigenação, é a mistura de tudo”, frisa.
Além disso, o arqueólogo destaca a capacidade do folclore de reunir pessoas em torno de celebrações que ultrapassam a fé. A Festa do Divino Espírito Santo, por exemplo, mobiliza famílias inteiras em giros pelas casas, rezas coletivas e encontros comunitários que se repetem há décadas e atravessam gerações, passando de pais para filhos e netos. “É algo, do ponto de vista social, antropológico e econômico, importante, porque gira todo o movimento na cidade em torno disso.”
Esse dinamismo também é visto na Catira, dança marcada pelo sapateado e batidas de mãos, que atravessa gerações. “É muito interessante que esse jovem de hoje, ele não tem vergonha de dizer que ele é catireiro, que ele aprendeu com os avós, aprendeu com o pai. Então, tem esse sentimento de pertencimento”, explica o arqueólogo. Ainda que a modernidade tenha reduzido o número de praticantes, grupos continuam ativos, como em Jaraguá.

Para Wesley, as Cavalhadas representam talvez a marca mais singular do folclore goiano, já que dificilmente são encontradas em outros estados. Realizadas em cidades como Pirenópolis e no Vale do São Patrício, exigem figurinos caros, adereços elaborados e apoio de prefeituras e patrocinadores. “A Cavalhada se destaca na frente das outras, sendo algo de Goiás.”
O avanço da urbanização e a força do agronegócio, ao contrário do que muitos poderiam supor, não ameaçam o folclore. Para o arqueólogo, esses setores convivem bem com as tradições. Agricultores, em sua maioria religiosos, apoiam e financiam festas como Folias de Reis e Cavalhadas, seja por devoção ou pela valorização da cultura local.
“Nós temos o privilégio aqui em Goiás de conseguir essas verbas, tanto na iniciativa privada quanto no poder público, para que todo ano, naquelas datas estipuladas, que são datas diferentes para cada uma dessas manifestações, elas possam acontecer da forma mais bonita. Então eu acho que para nós, goianos, é muito positivo”, diz Wesley.
Se as festas carregam força comunitária, as lendas cumprem um papel de pertencimento. Um exemplo citado por Wesley é o mito da Tereza Bicuda, ligado à Serra de Jaraguá. A narrativa, transmitida entre moradores da região, descreve uma mulher que vaga de branco pela serra, seduzindo homens incautos. “Essa lenda, todo mundo ali de Jaraguá, do Vale do São Patrício, conhece. Ou seja, é uma lenda local.”

A lenda ganhou tamanha relevância que inspirou até empreendimentos locais, como uma cervejaria de Jaraguá que leva o nome da personagem. “O que eu quero dizer com isso? Do ponto de vista da tradição, do ponto de vista econômico, do ponto de vista antropológico, existe o pertencimento, a lenda é nossa, é daqui da nossa região”, afirma Wesley Oliveira.
Formando gerações pela memória
Além de celebrar, o folclore educa. Wesley coordena projetos de educação patrimonial em escolas, que buscam envolver alunos a partir da escuta e da valorização de sua própria cultura. “A gente não chega dizendo: olha aqui, a sua cultura é isso. Não. A gente escuta. Vamos entender o que eles consideram como cultura deles.”
Essas práticas incluem desde oficinas lúdicas até o uso de música. Wesley explica que um dos grandes desafios é envolver a juventude em práticas tradicionais em plena era digital, e, para isso, o arqueólogo aposta na integração entre tecnologia e cultura.
Ele cita um projeto em Minas Gerais, no qual um sítio arqueológico está sendo mapeado em 3D e será disponibilizado em óculos de realidade virtual para alunos. A estratégia pretende permitir que estudantes explorem o patrimônio cultural de forma imersiva, sem riscos físicos de visita a campo.
“É oferecer tecnologia para ele porque eles gostam. A gente sabe que uma criança novinha já nasce sabendo tocar o dedinho para cima no celular”, pontua. E o objetivo de tudo isso, explica, é aproximar o jovem da tradição de maneira prazerosa e inesquecível.
“Quando ele tiver seus 60, 70 anos, ele vai contar para os netos: uma vez, quando eu era criança, foi um pessoal falar sobre patrimônio. Eu me lembro até hoje. Isso é tradição.”
Para Wesley, a principal característica da cultura é sua dinamicidade. O folclore nunca permanece estático, mas se remodela conforme os tempos, sempre buscando raízes no passado. “A cultura é muito dinâmica. Uma coisa que não é estática, em nenhuma hipótese, é a cultura. Mas tem uma coisinha que é interessante: pode até aparecer algo novo, mas ela está sempre buscando alguma coisa na raiz de origem.”
Ele usa a música sertaneja para ilustrar: mesmo o artista mais ‘universitário’ uma hora ou outra, vai, durante um show ou em uma gravação de um novo EP, cantar alguma música raiz. “Um dia alguém vai pedir para ele cantar Boate Azul, vai pedir para ele cantar Fio de Cabelo. E o cultural é sempre assim”.
O arqueólogo ressalta que a cultura pode se transformar ao longo do tempo, adaptar-se a novos contextos e ressignificar suas raízes, mas, ainda assim, sempre buscará inspiração no passado. “Tem essas evoluções? Sim, mas a gente está sempre voltando. E é isso que dá o charme para a questão, porque você vai, você volta e busca, bebe na fonte raiz, repensa uma outra forma, caminha mais um pouco e assim você fica nessa dinâmica da cultura. Isso é para tudo dentro da cultura”, conclui.
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