Transplante de testículos de macacos, injeções de extratos testiculares, massagens na tireóide, eletrochoque, psicanálise, ginástica respiratória, tratamento da constipação intestinal, mudança de ambiente e até leituras de romances de paixões heterossexuais já foram usadas como tratamento para a homossexualidade. Na década de 1940, homossexuais eram vistos como doentes a serem curados ou corrigidos. O historiador Rodrigo Ramos Lima estudou o tema em sua pesquisa “Terra de ninguém ou a terra de todo mundo? A opoterapia como recomendação para o tratamento de homossexuais”.

Há mais de 80 anos, embora não fosse tipificada como crime no Brasil, a homossexualidade era considerada uma doença, status que perdurou até 1990, quando a Organização Mundial de Saúde a retirou da lista internacional de patologias. No manual da Associação Americana de Psiquiatria, porém, ela já tinha deixado de ser classificada como transtorno mental em 1973. Agora, em 2023, o termo “cura gay” voltou a pauta com o suicídio da influencer Karol Eller, que escancarou uma política homofóbica em curso no país. A mulher de 36 anos passou por um retiro espiritual para reverter a sexualidade em Rio Verde, Goiás. O presidente da Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados disse recentemente que deve votar o projeto de lei de “cura gay” até o fim do ano.

Em entrevista exclusiva ao Jornal Opção, a transexual e psicóloga Roberta Fernandes, conhecida como Beth da Astral, relembra que foi na década de 1980 que surgiram os termos “peste gay” e “cura gay”. Ela explica que as práticas de cura gay têm relação com o momento da pandemia do HIV, período em que os termos discriminatórios se disseminaram. Na época, havia o equívoco, principalmente por parte da comunidade conservadora religiosa de que o vírus da Aids era um castigo de Deus devido à liberdade sexual.

“Eu sou psicóloga há 25 anos e atuo com a questão da Aids”, diz Roberta Fernandes, a Beth. “Desde a década de 1980, muitas pessoas na minha época morreu sofrendo com a doença. Foi neste período em que o termo ‘peste gay’ foi disseminado e surgiu também a chamada ‘cura gay’. Como se a doença tivesse vindo para colocar fim à uma população que era subjugada e tratada como doente, visto que a homossexualidade era tratada como enfermidade”, explica Beth.

A cura gay, também denominada de terapia de reversão ou de conversão à heterossexualidade, foram consideradas práticas de tortura por produzirem muitos agravos à saúde, entre eles, a própria construção de ideias suicidas. Essa é a definição do Conselho Federal de Psicologia (CFP) do Brasil.

“Hoje isso é um problema de saúde pública: a existência ainda dessas tentativas de aniquilamento das subjetividades de pessoas LGBTQIA+, movidas em grande parte por igrejas fundamentalistas. O Brasil precisa olhar para isso e entender que isso está produzindo agravos sérios na saúde mental da nossa população, em especial, na saúde mental da população LGBTQIA+”, disse o presidente do CPF em entrevista à Agência Brasil.

Pesquisa da All Out e Instituto Matizes escutou 365 pessoas que afirmam ter enfrentado alguma forma de “correção da sexualidade” . | Foto: Nelson Almeida

Neste mês, a Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados aprovou o projeto que proíbe o casamento entre pessoas do mesmo sexo. A medida está prevista no parecer do relator, deputado Pastor Eurico (PL-PE), apresentado ao Projeto de Lei 580/07 e aos textos apensados a ele. O parecer recebeu 12 votos favoráveis e cinco contrários. Beth explicou ao Jornal Opção como e quando surgiram as políticas homofóbicas, bem como ocorreu o regresso dos direitos da população LGBTQIA+ ocorreu.

Como surgiu o termo cura gay e por que voltou a ser usado como tratamento para o que não é doença?

O termo surgiu com o termo “peste gay”, para se referir à Aids. Começou a desaparecer por completo porque houve um esclarecimento sobre o assunto. Na década de 1990, a homossexualidade foi retirada da lista de doenças pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Desde então, ficou estipulado que a sexualidade alheia não seria tratada como doença. E as condições de identidades como a travestilidade e a sexualidade também não são patologias.

Hoje, como está a saúde mental dos jovens trans?

O caso de Karol Eller está ligado ao fundamentalismo religioso. Enquanto nosso estado é laico, nossas políticsa de saúde também precisam seguir esse entendimento. O que aconteceu nos últimos quatro anos foi um grande desmonte das políticas sociais, em especial da saúde da população. O Supremo Tribunal Federal concedeu o casamento homoafetivo e considerou todas as identidades, desde elas, travestis, travestilidade, transexualidade, não como doença ou patologias em essências médicas.

O que vemos é um regresso político. Direitos conquistados com muita luta foram perdidos. O que deveria estar em pauta, por exemplo, são postos de saúde para atender a população LGBT. Em nossas escolas, estão impedindo que uma adolescente trans use o banheiro na qual se identifica com seu gênero, o que provoca problemas fisiológicos. Em uma cidade que faz 40 graus, como Goiânia, a adolescente não bebe água para não ter esse constrangimento do banheiro. Essa pessoa tem problemas como infecção urinária. Quando é atendida no posto de saúde, como é o atendimento dessa pessoa?

Rio Verde se apresenta como uma cidade extremamente conservadora, religiosa. No mês de setembro, atendi mães e pais da cidade, cujos problemas eram justamente com seus filhos LGBT.

Houveram avanços, entretanto. Em 2022, duas deputadas trans foram eleitas para o Congresso Nacional. Apesar de o governo ser mais progressista agora, em relação ao último, o Congresso é extremamente conservador, o que reflete o alinhamento da população. Pastor discutem política dentro da igreja. A premissa de Deus, bênção, acolhimento, é negada à população LGBT+. O que se vê são discussões para tornar o grupo ainda mais vulnerável. A população trans, especialmente, tem uma articulação política precária.

Quem é Beth Fernandes?

Psicóloga e mestre em Saúde Mental pela Universidade de Campinas, Beth Fernandes é presidenta da ONG Astral, coordenadora do projeto Casulo e membro do Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Já escreveu diversos livros relacionados às pesquisas voltadas à população LGBT, como Orientação Sexual e Identidades de Gênero: Repensando Conceitos (2015, Engegraf Gráfica e Editora) e Tráfico de Pessoas e Mobilidade Urbana (2018, Correio do Livro UnB).

Pós-modernidade é marcada pela queda da tradição

Para o psicólogo Leandro Borges, a era da modernidade é marcada pela queda da tradição e dos ideais religiosos. Segundo ele, com o engajamento do discurso científico, o deus contemporâneo passou a ser muito mais a ciência, o que incomoda os religiosos.

“É o que a gente chama de declínio do patriarcado, declínio da tradição. As coisas que cimentavam a sociedade até então não cimentam mais. Então a igreja fica voltando nesse pensamento meio retrógrado. E eu acho que as pessoas não estão prontas para isso, para a queda da tradição. E a homossexualidade, que sempre esteve presente no mundo, agora ganhou voz social. Os homossexuais conseguiram o direito social, porque eles produzem, fazem e existem grandes nomes nesse lugar”, explicou ao Jornal Opção.