Estado e religião: as ameaças do fundamentalismo político e da Teologia do Domínio às democracias globais e ao Brasil

08 setembro 2025 às 10h12

COMPARTILHAR
A relação entre Estado e religião tem sido um dos dilemas mais persistentes das sociedades modernas. No entanto, nas últimas décadas, testemunhamos uma transformação alarmante: o crescimento de movimentos fundamentalistas que buscam subverter a ordem democrática e implantar projetos teocráticos sob a fachada de governos eleitos. Este fenômeno não é exclusivo de nenhuma região ou religião – manifesta-se no fundamentalismo evangélico nos Estados Unidos e Brasil, no nacionalismo hindu na Índia, no sionismo radical em Israel e em vertentes extremistas do Islã. O que une esses movimentos é sua rejeição ao pluralismo e sua determinação em impor uma visão religiosa particular através do aparato estatal .
Como alertam Steven Levitsky e Daniel Ziblatt em Como as Democracias Morrem, o colapso democrático raramente acontece através de golpes violentos, mas sim mediante um lento processo de erosão institucional onde actores eleitos sistematicamente debilitam as normas democráticas. Este processo está agora profundamente entrelaçado com projetos religiosos fundamentalistas que operam dentro das instituições democráticas para miná-las desde dentro.
A Teologia do Domínio (ou Dominionism), desenvolvida inicialmente nos Estados Unidos e recentemente adotada no Brasil, representa talvez a mais sofisticada e perigosa ameaça teológica à democracia contemporânea . Baseando-se numa interpretação literal de Gênesis 1:28 (“Encham e subjuguem a terra. Dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem pela terra”), esta teologia defende que os “eleitos por Deus” devem ter domínio sobre todas as esferas da sociedade – incluindo a política, a economia, a educação e a cultura .
O economista Gary North, um dos principais teóricos deste movimento, defendia uma estratégia em duas etapas: primeiro, expandir o número de fiéis aproveitando a liberdade religiosa; segundo, quando numericamente suficientes, interferir diretamente na vida política para transformar o Estado segundo seus preceitos religiosos . Esta estratégia foi meticulousamente implementada no Brasil, onde em 1977 foi criada a Igreja Universal do Reino de Deus, e em 1988 a Constituição Federal assegurou o Estado laico – apenas para que, décadas depois, os proponentes desta teologia chegassem a posições de poder extraordinário.
No Brasil, a Teologia do Domínio contaminou as concepções de figuras políticas a propósito de uma infiltração institucional. Quando uma ativista pentecostal declarou que “chegou a hora da libertação”, ela estava efetivamente anunciando que “chegou a hora do Estado civil subordinar-se à fé” – não à espiritualidade genérica, mas à sua crença específica . Esta declaração, como alerta o historiador João Cezar de Castro Rocha, é “flagrantemente inconstitucional” e representa “uma enorme ameaça” .
A gravidade desta ameaça é frequentemente subestimada pelo segmento secular, que tende a ver o crente como uma caricatura patética em vez de uma força ideológica coerente.
No caso Brasileiro – da laicidade constitucional ao projeto teocrático – o envolvimento pentecostal na política remonta à década de 1960, mas sofreu uma transformação qualitativa a partir dos anos 1980 . A Igreja Universal do Reino de Deus pioneiramente desenvolveu um “plano político estruturado” dentro da instituição, com indicação verticalizada de candidatos por um conselho de bispos . Este modelo mostrou-se extraordinariamente eficaz: cada templo ou região indica dois candidatos (federal e estadual) com base num cálculo eleitoral racional que maximiza as chances eleitorais .
A Assembleia de Deus, embora menos centralizada, desenvolveu seu próprio sistema de seleção, onde candidatos em potencial assinam documentos “comprometendo-se a apoiar o candidato oficial caso não seja escolhido, para evitar candidaturas independentes” . Este sistema garantiu uma coesão parlamentar impressionante, criando uma bancada evangélica que age cada vez mais como um bloco coeso em defesa de interesses específicos.
Além das questões morais estão os Interesses institucionais. Com efeito, embora a bancada evangélica seja frequentemente associada a pautas morais (aborto, sexualidade, família), os pesquisadores destacam que os interesses institucionais das igrejas constituem o verdadeiro núcleo de sua atuação política . Estes interesses incluem:
· Manutenção de isenções fiscais para instituições religiosas;
· Controle de concessões de rádio e televisão;
· Obtenção de espaços para construção de templos;
· Transformação de eventos evangélicos em “culturais” para acesso a verbas públicas .
Como exemplifica o sociólogo Paul Freston, na época da Constituinte de 1988, a moeda de troca para muitos pentecostais era o acesso a concessões de rádio . Este aspecto materialista do fenômeno é frequentemente negligenciado em análises que focam exclusivamente nas dimensões culturais ou religiosas.
Emerge daqui uma ameaça existencial à democracia, migrando do pluralismo ao maniqueísmo ante a rejeição do outro, pois o cerne da democracia liberal reside no reconhecimento do outro como oponente legítimo – alguém com quem discordamos, mas cujo direito de existir e participar do processo político respeitamos. Como Jesus ensinou, o preceito fundamental é “amar o outro” mesmo na discordância. No entanto, os fundamentalismos religiosos contemporâneos substituíram este imperativo ético por uma lógica que retrata o adversário como encarnação do mal a ser eliminado.
Esta visão apocalíptica é claramente expressa no documentário Rezando pelo Armagedom (2018), que examina como certos setores do evangelicalismo americano não apenas antecipam o fim dos tempos, mas ativamente trabalham para acelerá-lo através de políticas que promovem conflitos globais. Uma versão tropicalizada desta teologia do desespero ganha força no Brasil, onde dois terços dos evangélicos não acreditam no resultado da eleição de 2022 e 64,3% apoiam intervenção militar para invalidar resultados eleitorais .
Este articulista não é de esquerda, tampouco de extrema direita, pois adota a filosofia espírita como ponto de vista científico em seus preceitos cristãos no campo ético-moral.
O fato é que, de fundo, há uma distorção da mensagem religiosa, sendo profundamente irônico que movimentos que se autoproclamam cristãos adotem posturas tão contrárias aos ensinamentos centrais de Jesus, que explicitamente declarou: “O meu reino não é deste mundo” (João 18:36) e alertou repetidamente contra os “falsos profetas” que viriam em seu nome.
O casamento entre política e religião não apenas ameaça as instituições democráticas e o estado de Direito – também corrompe a fé genuína, transformando-a num instrumento de poder e dominação.
Como demonstra a série The Family da Netflix (baseada no livro de Jeff Sharlet), estes movimentos frequentemente operam através de redes informais de poder que conectam líderes religiosos, políticos e empresários em projetos comuns. No Brasil, testemunhamos fenômenos similares com a influência de pastores bem conhecidos como Silas Malafaia e Edir Macedo e aqueles que os abandonaram para formarem novas igrejas políticas.
A ameaça não é exclusivamente brasileira ou americana. Observamos alianças estratégicas entre movimentos fundamentalistas de diferentes religiões e países:
· Hungria: Viktor Orbán promove um “Cristianismo não denominacional” que une nacionalismo étnico e religião para justificar políticas antiliberais;
· Índia: O BJP implementa um projeto de nacionalismo hindu que marginaliza muçulmanos e outros grupos religiosos;
· Israel: Governos de direita aliados a partidos religiosos sionistas promovem políticas expansionistas baseadas em interpretações teológicas;
· Estados Unidos: O Christian nationalism torna-se força dominante no Partido Republicano, com tentativas evidentes de influenciar o Judiciário (como na escolha de juízes da Suprema Corte alinhados com esta agenda) .
Estes movimentos, apesar de baseados em tradições religiosas diferentes, compartilham uma rejeição comum do pluralismo e uma estratégia similar de captura do Estado para promover agendas sectárias.
A separação entre Igreja e Estado não é um “ataque à religião” – pelo contrário, é a condição necessária para que a fé genuína floresça sem ser corrompida pelas distorções do poder político. Como demonstram os search results, estamos perante uma ameaça sistêmica às democracias contemporâneas, que exige respostas igualmente sistêmicas:
- Fortalecimento das Instituições Democráticas: O Congresso Nacional e o STF devem vigiar ativamente para preservar a separação entre Estado e religião, combatendo abusos do poder religioso tal como combatem outros abusos de poder;
- Regulação do Financiamento Político: É essential transparentizar e regular os fluxos financeiros entre organizações religiosas e campanhas políticas, impedindo que igrejas se transformem em aparelhos eleitorais disfarçados;
- Disputa Hermenêutica: A ala religiosa e a secular devem engajar-se numa batalha de narrativas dentro do campo religioso, recuperando as tradições proféticas de justiça social e pluralismo que sempre existiram nas comunidades de fé ;
- Presença Territorial: Os ativistas precisam reconhecer que, enquanto se afastam do povo com sua ideologia secular, as igrejas pentecostais e neo ocuparam este espaço transformando Jesus em mercadoria e projeto de poder. É imperativo reconstruir uma presença autêntica nos territórios, respeitando a experiência religiosa popular e laica sem capitular ao fundamentalismo;
- Alianças Transnacionais: Democratas em todos os países devem formar alianças para combater a internacional autoritária religiosa, compartilhando estratégias de resistência e proteção das instituições democráticas.
A democracia não morre num dia – ela definha através do desrespeito gradual às leis, da normalização da intolerância e da capitulação perante os abusos de poder. Preservá-la exige de nós não apenas vigilância institucional, mas também uma redescoberta dos valores éticos fundamentais que estão na base tanto da tradição do Estado de Direito quanto das genuínas tradições religiosas: o respeito pela dignidade humana, o amor ao próximo e o compromisso com a justiça.
Como alerta o historiador Castro Rocha, o risco é que a democracia se transforme numa “distopia teonomista” que pretende subordinar toda a vida à religião . Impedir este desfecho é o desafio político e espiritual mais urgente do nosso tempo.
*Abílio Wolney Aires Neto, escritor e crítico literário, é colaborador do Jornal Opção.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
LEVITSKY, S.; ZIBLATT, D. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
NORTH, G. Dominion and Common Grace: The Biblical Basis of Progress. Tyler: Institute for Christian Economics, 1987.
WAGNER, C. P. Dominion: How Kingdom Action Can Change the World. Chosen Books, 2008.