Empresários goianos defendem utilização de medicação sem eficácia comprovada

09 março 2021 às 20h19

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Outdoors espalhados por Goiânia pedem atendimento precoce contra a doença do coronavírus; especialistas rebatem e dizem não ter eficácia

*Por Eduardo Pinheiro e Marcos Aurélio Silva
Durante a última semana em Goiânia apareceu outdoors com a frase ‘Atendimento precoce na Covid-19 salva vidas. Respeite a autonomia do médico e paciente’. O Jornal Opção apurou que se trata de uma ação financiada por empresários da capital não contentes com as medidas de isolamento social adotadas pelos municípios da Região Metropolitana.
Do mesmo modo, reunião realizada com o procurador geral da República, Augusto Aras, o presidente da Federação das Indústrias do Estado de Goiás (Fieg), Sandro Mabel, defendeu que prefeituras que não utilizarem medicação precoce merecem ser responsabilizadas pela Justiça.

Mabel sugeriu que os 117 municípios que receberam documento elaborado pelo Ministério Público Federal (MPF) em que recomenda coquetel composto por hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina, e suplementos de vitaminas para combate à Covid-19 devem ministrá-los à população para combate à doença. Os medicamentos, no entanto, não tem eficácia contra o coronavírus. Órgãos de saúde do mundo todo recomendam distanciamento social, uso de máscaras, limpeza das mãos, além da vacinação em massa.
Entre as participantes da reunião estava a médica Lucy Kerr, que já participou de videoconferência no ano passado promovida por entidades de classe. Assim como em 2020, a médica voltou a defender uso de medicamentos contra a Covid-19.
MPF não têm legitimidade para tornar obrigatório o tratamento precoce
Diferente do que cobra Sandro Mabel, os municípios não são obrigados a implantar o tratamento precoce, seguindo o que pede o Ministério Público Federal de Goiás (MPF-GO) em uma nota técnica em que apoia o uso de drogas como hidroxicloroquina e a ivermectina no tratamento precoce da Covid-19 .
“Temos que entender que o procurador faz a recomendação ao gestor municipal. Esse é um ato de opinar ou sugerir. Cabe ao prefeito, gestor ou secretário de Saúde decidir se adota ou não”, explica o advogado especializado em Direito Público e professor em Direito Público, Rafael Arruda. “O Ministério Público é órgão de controle externo. Então quando ele recomenda não se tem ordem, determinação ou qualquer coisa parecida. Ordem ou determinação quem dá é o judiciário”, salienta.
Segundo o jurista, caso o MPF exija que uma recomendação seja acatada ou buscar alguma punição caso não seja pode ser apontado como um abuso. “O prefeito foi eleito. Ele é agente político e eleito por meio do voto, portanto é ele quem faz escolhas em nome da coletividade, não é o MPF que deve fazer escolhas. Cabe fazer essas escolhas quem tem o poder político, que é dado a quem foi eleito pelo voto, ou seja, quem tem mandato”, expõe.
Rafael Arruda ainda aponta que não há legitimidade do MPF em exercer poder político. “Isso seria usurpação Como vivemos em estado democratico as escolhas são feitas com a maioria democrática”, diz. “Se por ventura o MPF chegar a conclusão que há a prática de ato ilegal, que está ocorrendo desvio, arbítrio ou abuso por parte do poder publico, cabe ao MPF adotar as medidas juciais correspondentes.
Tratamento

O epidemiologista e professor do Instituto de Patologia Tropical e Sáude Pública da Universidade Federal de Goiás (UFG), João Bosco Siqueira Júnior, aponta que o cenário em que se encontra o estado e o país é próximo do colapso. Assim, é preciso “fechar a torneira”, não buscar “novos copos”.
A alegoria usada por João Bosco se refere conter o vírus, através de medidas efetivas, e não uso de paliativos. Ele sustenta que cada vez mais estudos mostram que ivermectina e hidroxicloroquina não têm eficácia alguma contra a Covid-19. “Dizer que é preciso de tratamento quer dizer que a pessoa já está doente. O que precisamos é conter o vírus. Isolar os novos casos e monitorá-los. Sabemos mais do que antes como evitar mortes”, avalia.

O infectologista Boaventura Braz corrobora o fato de que não há tratamento precoce conforme os principais protocolos internacionais. Os órgãos americanos e europeus, não dispõem de protocolos sobre tratamento precoce contra a Covid-19. Além disso, diz que não há nenhum tratamento com evidências científicas para que sejam instalados. A Sociedade Brasileira de Infectologia também não tem nenhum protocolo favorável a qualquer tratamento deste tipo nesse momento.
“O uso da ivermectina e da cloroquina podem, inclusive, ter agravado o quadro clínico de alguns pacientes. E o incentivo do uso desses medicamento fez com que muitas pessoas tivessem gastos econômicos sem nenhuma evidência científica e sem nenhum benefício”, aponta.
Sem eficácia comprovada “Kit Covid” pode representar risco a saúde

Segundo diversos estudos rigorosos realizados ao redor do mundo, medicamentos que integram esse “kit covid” ofertado nas fases iniciais da doença no Brasil já se mostraram inclusive ineficazes ou até mais prejudiciais do que benéficos quando administrados nos quadros leves, moderados e graves de covid-19.Ao longo dos últimos meses, diversas entidades nacionais e internacionais se posicionaram contra o coquetel de medicamentos promovido pelo governo Bolsonaro, que inclui a hidroxicloroquina, a azitromicina, a ivermectina e a nitazoxanida, além dos suplementos de zinco e das vitaminas C e D.
No dia 2 de março, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou “fortemente” que a hidroxicloroquina não seja utilizada como prevenção contra a covid-19 e deixe de ser prioridade em pesquisas científicas. A decisão foi tomada após seis estudos com 6 mil pacientes mostrarem que a droga não teve efeito significativo na redução de casos e “provavelmente” aumenta o risco de efeitos adversos.
A cloroquina foi desenvolvida na década de 1930 pela empresa alemã Bayer e recebeu o nome comercial Resochin. Ela tem uso regulamentado para tratar pacientes com malária, lúpus e artrite reumatoide. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Food and Drugs Administration (FDA), dos Estados Unidos, não recomendam seu uso contra a covid-19.
Na reunião em que foi aprovado o uso emergencial das vacinas Sinovac e de Oxford, os diretores da Anvisa refutaram a existência de tratamento precoce contra a covid-19.
A FDA, dos Estados Unidos, ressalta que “qualquer uso de ivermectina para prevenção ou tratamento da covid-19 deve ser evitado, visto que não houve registro de benefícios e de sua segurança” para este fim. A Anvisa esclarece que “não existem estudos conclusivos que comprovem o uso desse medicamento para o tratamento da covid-19, bem como não existem estudos que refutem esse uso”.
A agência pontua que até o momento não existem tratamentos comprovados para a infecção pelo novo coronavírus.Por sua vez, a azitromicina é um antibiótico — isto é, medicamento utilizado para combater infecções causadas por bactérias. A medicação foi combinada aos antimaláricos cloroquina e hidroxicloroquina em estudos laboratoriais, mas também não teve eficácia comprovada contra a covid-19 — causada por um vírus.
O Ministério da Saúde já desmentiu que zinco e vitamina D fossem tratamento eficaz contra a covid-19. Mesmo assim, a receita continua sendo compartilhada nas redes sociais.