Em Goiás, PM mata jovem, planta arma e drogas e tenta destruir imagens do crime
17 novembro 2017 às 13h04
COMPARTILHAR
Famoso como humorista de uma rádio de Goiânia, soldado é apontado pela Polícia como autor de disparo que matou marceneiro durante abordagem de madrugada
Yago Sales e Cris Soares
No 11º andar de um edifício de 24 andares na T-7, avenida de Goiânia, o programa de música caipira aguardava o término da vinheta às 16 horas em setembro deste ano. O âncora do programa, um famoso locutor de rodeio, cumprimentou Velho Venâncio, Maluco da Quebrada e Beth Star. Os três responderam com entusiasmo.
Não fossem os vídeos no perfil do Facebook de Thiago Silva Silva, seria impossível saber que os três personagens são imitações dele, uma das estrelas da programação da rádio que alcança o 4° lugar em audiência na capital. Thiago é, na verdade, o homônimo de Lucimar Correia da Silva, de 30 anos, o soldado Correia, da Polícia Militar do Estado de Goiás (PM-GO).
Mas, por trás do humorista, um homem de duas faces. O riso fácil se desfaz num homem explosivo, como contaram pessoas que convivem com ele. O soldado Correia é o provável autor do disparo que matou com dois tiros – um no pulmão e outro no coração – Wallacy Maciel de Farias, de 24 anos, sem dar chance de defesa à vítima na madrugada do dia 9 de setembro de 2017 em uma esma rua de Goiânia.
[relacionadas artigos=”110411″]
Depois do crime, o soldado teria armado a cena – com ajuda de outros policiais – para despistar a investigação. Ele não contava, contudo, com as câmeras de segurança e com dois policiais militares que desmanchariam o plano de esconder a crueldade. Mesmo depois de o soldado Correia e outros policiais coagirem – segundo testemunhas – os comerciantes na tentativa de apagar as imagens, a Polícia Civil e a Corregedoria da PM resgataram algumas delas. A reportagem teve acesso a elas, que deixam clara a desastrosa ação e devolvem à família a inocência do jovem Wallacy.
Com inquérito concluído pela Corregedoria da PM e pelo delegado-adjunto da Delegacia de Homicídio, as imagens foram anexadas junto ao calhamaço com depoimentos de testemunhas anônimas e de dois policiais militares. “As imagens foram juntadas no inquérito. No procedimento da Corregedoria, tem indicação de autoria”, confirmou ao Jornal Opção o Comandante-Geral da Polícia Militar do Estado de Goiás, tenente-coronel Divino Alves.
Em entrevista exclusiva, o delegado Ernane Cazer, adjunto da Delegacia de Investigações de Homicídios (DIH), informou que o inquérito está concluído e deve enviá-lo ao Ministério Público na semana que vem. “Foi apurado a conduta do militar que atirou. Este inquérito apurou apenas o homicídio, a conduta dos policiais ao redor do veículo, essas coisas, é para outro inquérito. Deve-se abrir outro inquérito para apurar a conduta, senão demoraria demais para concluir, com envolvimento de várias pessoas. Apenas uma segunda investigação pode apontar adulteração”, explicou. “Juntamos a oitiva dos PMs que o abordaram antes no inquérito”.
Ainda segundo Cazer, o policial será denunciado por homicídio doloso, quando há a intenção de matar.
O caso
Sexta-feira, 8 de setembro de 2017. O jovem Wallacy Maciel de Farias tinha um grande sonho: o de se casar com a namorada que conheceu na festa de aniversário de 18 anos dele, dia 7 de junho de 2011. Depois de trabalhar durante todo o dia, o rapaz chegou em casa e levou um susto. Havia docinhos, balões e até um pula-pula.
“Mãe, não sou mais criança”, protestou, sob risos dos amigos e envergonhado com a menina que o olhava de longe – a mesma que ele pediria em namoro. Nas fotografias, Wallacy sorri, abraçando a mãe. Nem parece que, mais cedo, passou por um sufoco enquanto terminava de cortar o MDF, material usado para moldar móveis planejados. Canhoto, ele tinha enorme dificuldades para trabalhar e teve parte do dedo indicador esquerdo decepado. É que os equipamentos da marcenaria são apropriados para destros, mas Wallacy queria superar esta dificuldade e ajudar o pai.
O jovem, que montou há pelo menos um ano os móveis do próprio apartamento em que morava com a namorada, decidiu passar na casa da mãe, Adriana Teodoro de Farias, 42, em seu último dia de vida. Queria almoçar com ela. As visitas, cada vez mais rápidas, mesmo assim diárias, eram aproveitadas por Adriana para abraços e beijos. Ela o tratava como um bebê.
Seu ritmo de trabalho era intenso para, além de juntar dinheiro para o casamento, comprar um carro novo. É que o dele foi roubado com o engate em uma carretinha carregada de móveis que ele montaria na casa de um cliente em fevereiro deste ano. Sete meses depois, ele próprio seria acusado por policiais de ter roubado um carro, trocado tiros com policiais. A justificativa para maquiar um crime.
“Preparei o almoço mais cedo naquele dia. Ele comeu duas vezes, sentado aqui [aponta]. Antes de sair, me deu um grande abraço”, lembra, em lágrimas, a mãe.
No bairro em que cresceu e viu a vida financeira de sua família melhorar aos poucos, todos se lembram dele como um jovem trabalhador. “Não tem como deixar de esquecer aquele menino educado, sempre carregando alguma coisa”, conta, sussurrando, uma vizinha. “Eu vi ele crescendo. Dava para ver que tinha medo de tudo, sempre muito cuidadoso com as pessoas que andava. Era exemplo”.
Na lida diária de faxinas, Adriana tinha o menino como braço direito. “Eu levava Wallacy para a casa dos outros e ele me ajudava, puxava a água da área com rodo desde pequenininho”, conta, sobre o primogênito de três filhos: os outros dois têm 15 e 10 anos.
O pai, Joseir Maciel dos Santos, 47, um homem que nos últimos dois meses carrega a memória de um filho que o superou na marcenaria. “Ele chegava a montar uma casa inteira, cozinha, banheiro”, destaca ele que não tem sequer uma imagem na cabeça do jovem morto. “Quando atendi ao telefone, fiquei em casa. Não tive coragem de chegar perto do caixão. Apenas dei o cartão para pagarem o funeral. Nem reportagem sobre o caso, nem fotografia deste policial, nada quis ver”, revela.
À noite, depois de deixar a namorada na casa da sogra, Wallacy voltou para o apartamento dirigindo o carro dela, um Prisma prata, mas ficou por pouco tempo na residência. Deixou, inclusive, a porta aberta. Passou pela portaria, cumprimentou o porteiro José Manuel de França, 43, com um menear de cabeça. “Ele não esboçava nada de errado”, lembra França. O jovem não voltaria mais para casa.
Às 23h02 da sexta-feira, Wallacy comprou três latinhas de cerveja em uma distribuidora de bebidas, como mostram imagens de segurança. Ele entrou no carro, mas antes de liga-lo voltou ao balcão porque esqueceu o troco. Aproveitou as moedas para comprar chicletes. Ele parecia apreensivo. Não sabia, mas seria abordado por policiais cerca de uma hora depois.
“Recebemos a ligação de um morador”, disse um policial militar a Wallacy.
“Estou vigiando minha namorada, acho que ela está me traindo”, teria respondido.
“Rapaz, deixa disso, vai para casa”, retrucou um policial. É o que um dos policiais afirmou à Corregedoria da PM, com termo assinado.
A dupla de policiais inspecionou o carro por volta de meia noite e meia, mas não encontrou nada. Wallacy foi liberado pelo sargento Sobrinho.
O porteiro não viu se o marceneiro voltou ao apartamento. Ele reapareceria às 4 horas, em imagens de segurança, segundos antes de ser abordado por outros policiais. Mas não teria muito tempo de vida. Wallacy, que continuava nas redondezas da casa da namorada, teria deixado vizinhos apreensivos. Depois de mais uma ligação no 190, uma equipe foi empenhada para abordá-lo de novo. Desta vez, Wallacy fugiu e se escondeu em uma rua da redondeza.
Quando decidiu ir para casa, na desértica Avenida Montreal, no Residencial Canadá, ele se deparou com a viatura 8673 parada. Sob direção do soldado Rafael Diógenes de Jesus Ribeiro Souza, o Jesus, e com o parceiro, o soldado Lucimar Correia Silva, o Correia.
Os tiros
Madrugada do dia 9 de setembro. Nas proximidades da Avenida Montreal, pelo menos dez câmeras de segurança registraram lâmpadas que iluminavam as duas pistas da via circundadas por capim acima do joelho. Às 4h41, a viatura 8673, conduzida por Jesus parou. Parecia esperar alguém. Dois minutos depois, em uma pista onde carros costumam passar a 80km àquela hora, Wallacy dirigia devagar. Ele avistou a viatura e viu os dois soldados, armas em punho, em cima do canteiro central de grama seca.
Na mira das pistolas, o marceneiro parou o carro, mas não teve chance nem de ficar em pé. Abriu a porta e a empurrou. O soldado Correia, empunhando uma pistola, atirou duas vezes. Wallacy caiu para a esquerda e ficou se retorcendo. Quase um minuto depois, outra viatura encostou. Os dois policiais desceram rapidamente e olharam para o rapaz caído; mais um minuto, outra dupla de policiais chegou. As imagens mostram que eles não encontraram nada. As viaturas que chegaram depois são a 8668, composta pelo 1° tenente Jordan e o Cabo Magalhães; já a segunda, 8751, trazia o 2° sargento Bernardes e o 3° Sargento Benisvaldo. Os seis são lotados 15ª CIPM (Companhia Independente da Polícia Militar). Os policiais chamaram socorro cerca de 20 minutos depois, mas Wallacy já havia morrido.
Dali adiante, uma encenação. O resultado da montagem foi relatado no Registro de Atendimento Integrado (RAI), um documento em que são unificados registros de ocorrências da PM, do Corpo de Bombeiro, e Polícia Civil. A versão informa que as viaturas que chegaram depois do tiro que matou o marceneiro foram acionadas para darem apoio ao “cerco e abordagem do veículo” a um suspeito de tentativa de roubo a uma residência.
Correia justifica o tiro no RAI: “A equipe então decidiu deslocar com a viatura em baixa velocidade para a sede da companhia, onde pela Avenida Montreal nos deparamos com o veículo Prisma prata vindo em sentido contrário ao da viatura. E diante da situação a equipe desembarcou indo em direção ao veículo dando ordem várias vezes para que o condutor descesse com as mãos para cima, porém o mesmo só desceu quando a equipe já estava bem próxima ao veículo abordado. Neste momento o soldado Correia que estava próximo ao para-lama esquerdo verbalizou novamente para que o motorista descesse, tendo o mesmo descido e se abrigando na porta, neste momento o abordado teria feito um movimento brusco tendo neste momento o soldado Correia visualizado uma arma de fogo na cintura do abordado e sentindo-se ameaçado pelo movimento, efetuou um único disparo no intuito de cessar a iminente e injusta agressão tendo o abordado caído ao solo”.
No vídeo, ao qual a reportagem teve acesso, não é encontrado com o jovem depois do disparo nem mesmo arma na cintura, ao contrário do que foi escrito no registro dos policiais: “Sendo retirado uma arma de fogo calibre 38 da cintura do abordado”. Assim que chegou ao local, a perita Lidiane Santana descobriu “no veículo três munições de calibre .45, um tablete de maconha de aproximadamente 500g, seis porções pequenas de maconha e duas com um pó branco, e apreendido um revólver calibre 38 (retirado da cintura do abordado) com três munições sendo duas intactas e uma deflagrada”.
Na rua escura, em uma distribuidora a 100 metros, um homem terminava de beber algumas latas de cerveja. Não se sabe se ele presenciou os tiros, mas depois de ver que moradores se aproximavam, ele decidiu ir além: olhar de perto. Ele foi espancado pelos policiais. Em uma fotografia, ele aparece caído no chão. Policiais o olhavam enquanto uma mulher, que correu para ajudá-lo, tentava levantá-lo. Procurada, ela não quis comentar nada mais que não conhecia o homem bêbado. Nem a Polícia Civil conseguiu encontrá-lo para que prestasse depoimento.
Quando os comerciantes chegaram, policiais entraram nos estabelecimentos. “Queremos ver a imagem”, diziam. E mandavam apagar. Um primo de Wallacy presenciou uma cena. “Os policiais a todo o tempo com muita arrogância gritavam: apaga as imagens senão vai ficar ruim para os moradores”.
Vídeo mostra momento da abordagem policial e acaba com versão de que a vitima teria resistido a deixar o veículo. Mesmo com as imagens ruins, é possível ver que Wallacy sai do carro tão logo é parado e alvejado em seguida
Câmera de segurança mostra jovem comprando cerveja na distribuidora pouco antes de ser assassinado
“Ele morreu”
Às sete horas, a namorada não tinha notícias do marceneiro que precisava levá-la ao trabalho. Ligou para a mãe dele que, ainda com roupa de dormir, entrou na Amarok preta do marido e foi para a casa da nora. Levou-a ao trabalho com a mãe dela e seguiram para o apartamento. “Ele não tinha dormido em casa. A cama estava arrumada, como se não tivesse dormido. Meu coração apertou”, conta. Ela levava a sogra do filho de volta para casa quando, a pouco mais de 100 metros, viu um Prisma prata parado, porta do motorista aberta e um corpo ao lado, sem camisa. A fita zebrada contornava uma área grande. “A fita dificultava a visão. Poucas pessoas conseguiriam identificar de quem se tratava”, conta uma amiga da família.
“Desci do carro, passei por baixo da fita. Perguntei para um policial se meu filho estava morto. Ele disse que eu ia ter que dar conta do outro que estava com ele e que tinha fugido. Meu filho menor tentou dizer alguma coisa e o soldado quis bater nele. Eles tentaram me tirar de perto do corpo do Wallacy e eu me joguei no chão, do lado dele. Fiquei deitada, com a cabeça em cima dele. Se eu levantasse, eles iam me tirar dali”, conta Adriana.
“Ele está morto”. Ela ligou para Joseir que desligou o telefone assim que soube que Wallacy foi assassinado e ficou em silêncio. O mesmo silêncio que os curiosos que acompanhavam o desespero de Adriana mantiveram até que souberam que se tratava de seu filho. É que antes os policiais disseram que o rapaz morto trocou tiros com eles, que tinha roubado um carro.
“Tem até droga no carro”, ouviu a funcionária de um dos estabelecimentos de um policial que falava com um grupo de curiosos. Quando souberam que, na verdade, se tratava de Wallacy, o marceneiro, uma vaia explodiu.
“Meu filho estava jogado no chão como um traficante, que trocou tiros com a polícia. Mas ele é canhoto, a arma que eu vi na foto estava na mão direita. Meu filho morto no chão, e não deixaram nem eu colocar um lençol sobre ele”, relata.
Mais tarde, enquanto a família preparava o enterro, um primo da vítima teria sido abordado por policiais. “Um sobrinho meu estava numa feira aqui perto de casa. Seis policiais, três em cada viatura levaram ele para o meio do mato e disseram que ele estava falando demais. Se não tivessem tanta gente eles iam colocar ele em um carro”, relata Adriana.
No cemitério, uma romaria de gente que admirava Wallacy. Entre abraços, um Adriana não conseguiu esquecer. Uma amiga, mulher de um policial, lhe soprou nos ouvidos: “Temos as imagens. Vamos fazer justiça pelo seu filho”. Adriana recuperou as forças que havia perdido desde que caiu sobre o corpo do menino que ela sustentou, que teve de negar, na infância pobre, o que comer e que agora lutaria para provar a inocência.
“Eu nem pensei de buscar justiça, mas com as imagens conseguiria desmentir aquela versão”, ela lembra, principalmente quando a mulher do coronel enfatizou: “Eles executaram seu filho”. “Eles pegaram a mim e ao meu marido e nos levaram para a Corregedoria. Registramos o fato. As imagens apagadas foram recuperadas e serviram de prova”, relata Adriana.
Nenhuma das denúncias de invasão a domicílio, contudo, foram formalizadas na Corregedoria da Polícia Militar. É o que diz o comandante-geral, o tenente-coronel Divino Alves. Segundo ele, será aberto outro inquérito para apurar a atuação dos policiais que agiram para acobertar a execução. “Evidente que vamos identificar. Este primeiro inquérito foi em cima da morte”, diz, ao revelar que o soldado Correia não foi afastado das ruas e continua no ostensivo. “Não há necessidade de ele ser afastado. Ele responde em liberdade. O inquérito aponta a autoria, cabe ao MP denunciar”.
A mãe tem recebido convite para falar nas emissoras de televisão, onde repete que “quer o policial militar preso, para não voltar a matar”. Acompanhou diariamente o desenrolar do inquérito na delegacia, mesmo vendo o autor dos disparos circular pela região, livremente. “A verdade vai prevalecer. Vai”, ela acredita.
Resposta
Em entrevista ao Jornal Opção, o soldado Correia, autor dos disparos, se mostrou agressivo. “O que você quer comigo, velho? Tenho o que fazer da minha vida. Pega esse jornal e vai tomar na puta que te pariu. ‘Tá’ enchendo o saco já. Tenho mais o que fazer, irmão. Vai atrás de bandido. Vai caçar o que fazer, meu irmão. Vai ligar para a polícia”, respondeu.
Indagado sobre o que teria ocorrido na madrugada em que Wallacy foi morto, o soldado desligou.