Donas do céu: conheça as mulheres pioneiras da aviação brasileira
19 dezembro 2025 às 19h57

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Não foi fácil abrir caminhos no céu então ocupado apenas por homens. Foi a partir da década de 20 do século passado que as primeiras aeronautas do Brasil ganharam asas e alçaram voos pilotados por mulheres. Todas elas tiveram que enfrentar um obstáculo em comum: o preconceito. Há cem anos, elas não tinham voz no Brasil. Eram submissas aos homens e enfrentavam fortes restrições sociais e legais. Para se ter uma ideia, nessa época o Código Civil de 1916, em vigor no país, definia o homem como chefe de família; já a mulher casada era considerada civilmente incapaz. Até para votar ou trabalhar, tinha que pedir autorização do marido. O papel a elas assegurado era apenas o de mãe, esposa e dona de casa.
As primeiras mudanças vieram junto com os “loucos anos 20”, a década da virada para “elas”. Foi quando o mundo das mulheres brasileiras virou um campo de batalha. Palco de uma luta feroz entre a tradição e a modernidade, onde as estruturas patriarcais dominantes passaram a ser desafiadas por novas ideias, busca por direitos civis e a ocupação do espaço na esfera pública.
Foi nesse contexto que, em 8 de abril de 1922, o céu paulistano testemunhou um marco histórico na aviação feminina: Thereza de Marzo tornou-se a primeira mulher do país a obter o brevê de piloto, seguida por Anésia Pinheiro Machado que, no dia seguinte, também obteve autorização para voar. Corajosas e determinadas, elas abriram o caminho que efetivou a presença das mulheres na aviação nacional, mas, para isso, tiveram que romper barreiras sociais erguidas a partir do extremo preconceito e da restrição de gênero.
Assim que recebeu o brevê de número 76, no mesmo ano, Thereza realizou o primeiro voo comandado por uma mulher no Brasil. O trecho foi curto — São Paulo–Santos–São Paulo —, mas simbólico. Em seguida, ela criou as chamadas “tardes de aviação” e passou a operar voos panorâmicos com passageiros sobre a cidade de São Paulo. Além da aviação, Thereza teve uma paixão ainda maior, que atendia pelo nome de Fritz Roesler, seu instrutor de voo. Casaram-se em 1926, mesmo ano em que ela encerrou a carreira de aeronauta. Thereza já acumulava 300 horas de voo, mas o marido não quis mais que ela saísse voando por aí e cortou-lhe as asas. Ela obedeceu. Anos depois, eles seriam sócios da famosa e já extinta VASP.

Brevê 77
Anésia e Thereza eram amigas. Por obra do destino, o brevê emitido para Anésia foi entregue no dia seguinte ao de Thereza. Apenas 24 horas separam o pioneirismo que elas carregam nas asas, mas a carreira de Anésia Pinheiro Machado foi longa e duradoura. Naquele mesmo ano, ela já entrou para a história da aviação brasileira ao realizar o voo solo em céu nacional. Pouco depois, fez o primeiro voo interestadual sob o comando de uma mulher, pilotando de São Paulo ao Rio de Janeiro, em comemoração ao centenário da Independência.
Ao pousar na então capital federal, Anésia foi agraciada com uma medalha de ouro e uma carta escrita de próprio punho por ninguém menos que Santos Dumont. Mas Anésia queria mais e conquistou, no ar, o que almejou para si, como o título inédito de voo acrobático feminino do país e o pioneirismo ao pilotar o primeiro voo comercial do Brasil, com passageiros.
A expertise levou a carreira da brasileira à camadas estratosféricas. Em 1943, com mais de vinte anos de experiência, ela foi convidada pelo governo dos Estados Unidos a realizar um curso de aviação em Houston, no Texas, onde adquiriu capacitação suficiente para receber licenças de voo por instrumento e de instrutor comercial. Ao voltar para o Brasil, Anésia foi recebida como celebridade da Aeronáutica. Em 1951, oito anos depois, a aviadora voltou aos Estados Unidos. Dessa vez, para iniciar, a partir de lá, a maior aventura de sua vida.
Sozinha, pilotando um avião Ryan Navion Super 260, à hélice de passo variável, Anésia partiu de Nova York em 27 de fevereiro e atravessou a América até chegar ao Pacífico e percorrer toda a costa, passando por quinze países. Foi quando chegou em Santiago, no Chile, que ela enfrentou o trecho mais perigoso da aventura solitária: o sobrevoo da Cordilheira dos Andes até que entrou no espaço aéreo brasileiro. Anésia aterrizou no Rio de Janeiro em 27 de abril. A viagem durou 60 dias, somou 17.756 km e 82 horas e 25 minutos de voo.

Com a façanha, Anésia tornou-se uma lenda viva da Aeronáutica brasileira. A repercussão de sua aventura aérea foi tão grande que, em 1954, a Fédération Aéronautique Internationale (FAI) a reconheceu como decana mundial da aviação feminina, por ter o brevê ativo mais antigo. Anésia faleceu aos 95 anos, em 1999, e até hoje recebe homenagens póstumas pelos feitos realizados pelos céus do Brasil e do mundo.
A terceira mulher a conquistar a licença de piloto de avião no Brasil foi Ada Rogato que, em 1941, foi a primeira mulher a saltar de paraquedas no país. Ada tem registrado em seu currículo mais de 130 saltos. Seis anos antes, em 1935, ela já havia conquistado o primeiro brevê feminino que permitiu pilotar um planador. Em 1948, mais um feito único: a aeronauta realizou o primeiro voo agrícola do país. Até que, em 1951, em sentido contrário ao da colega e piloto Anésia Pinheiro, voou sobre as três Américas em um avião “Paulistinha”. Num voo solitário percorreu mais de 51 mil km até alcançar o Círculo Polar Ártico.

A barreira do preconceito
Ninguém tira o mérito de Thereza, Anésia e Ada. Mesmo assim, de acordo com a concepção machista da época na condução das empresas de aviação comercial no Brasil, o que elas fizeram não foi suficiente para que as mulheres conquistasssem o mercado de trabalho. Durante décadas, elas permaneceram vetadas para atuar no comando das aeronaves de diversas companhias aéreas.
Somente no final da década de 80, após a promulgação da Constituição de 1988, que, por meio de cláusula pétrea, estabeleceu-se a igualdade entre homens e mulheres no país. Após uma longa espera que durou mais de trinta anos, o mercado de trabalho da aviação comercial e militar finalmente foi aberto para elas.
Efeito Arlete
A VASP e a VARIG eram as duas grandes companhias aéreas que dominavam os céus e aeroportos do Brasil no final da década de 80 e início dos anos 90. A competição acirrada pelo pioneirismo levou a Viação Aérea São Paulo a sair na frente da Viação Aérea Rio-Grandense. A Vasp não esperou a lei da igualdade de gênero para contratar uma mulher piloto de linha aérea no Brasil. Assim, em outubro de 1986, a carioca Arlete Vitória Ziolkowiski tornou-se a primeira copiloto de um Boeing 737-200. Dois anos depois, a VASP contratou outra copiloto para o 737-200: foi a vez da gaúcha Carla Roemler dividir os controles do cockpit. Após oito anos, Carla fez história ao ser promovida a comandante, tornando-se a primeira mulher da América do Sul a ocupar esse posto.


Rumo à Antártica
Joyce Conceição é manauara e foi em Manaus que ela se formou aviadora da FAB, há 20 anos. Joyce fez parte da primeira turma de mulheres da Força Aérea Brasileira e, durante seis anos, adquiriu experiência militar no transporte aéreo de carga, operações de apoio e transporte institucional, até que foi escolhida para viver o pioneirismo. Em 2012, Joyce tornou-se a primeira mulher da FAB a pilotar o C-130 Hércules; o maior avião militar em atividade no país, uma aeronave com função específica de transporte de carga e tropas. Em 2016, a capitã Joyce tornou-se a única aeronauta brasileira a pousar no Continente Antártico, em missão de apoio ao Programa Antártico Brasileiro. No começo deste ano, Joyce foi nomeada a primeira comandante de uma unidade aérea da FAB, o “Esquadrão Gordo”, um marco histórico institucional.

Ainda é pouco
Hoje, no Brasil, as mulheres já ocupam e comandam qualquer tipo de aeronave. Até mesmo um Airbus A-380 da Emirates tem uma comandante brasileira. Flávia Lucilo entrou para a história ao pilotar o maior avião comercial do mundo. A piloto faz parte de uma lista inesgotável de aviadoras brasileiras relevantes.

Mesmo assim, para quem acha que elas já conquistaram o espaço devido nesse mercado, está enganado. Nem aqui nem no planeta. A média mundial de mulheres aviadoras no comando de linhas aéreas no mundo não chega a 5%, e, no Brasil, beira apenas 2%.
Atualmente, omercado indiano de aviação comercial, é o que mais emprega mulheres em postos de pilotagem, com 12% de representatividade no mercado de linhas aéreas. Esses números tão baixos, mostram que há espaço de sobra para que as mulheres possam ocupar o mercado aeronáutico de forma justa e equilibrada aos homens. As aviadoras pioneiras já provaram que, para elas, o céu é o limite.
