A vendedora Magna Fernandes de Souza, de 31 anos, após ser seguida pelo ex-marido foi morta a facadas, na cidade de Morrinhos, região sul de Goiás. O feminicídio aconteceu sábado, 6, dentro da casa da vítima – menos de 24 horas antes do “Levante Mulheres Vivas” ocorrido no domingo, 7, que mobilizou milhares de mulheres contra esse ato cruel, que tem encurtado a vida delas pelo simples fato de existirem.

Todos os dias, outras como Magna são assassinadas de maneira cruel, sendo arrastadas, queimadas ou recebendo dezenas de socos. A problemática da violência contra a mulher tem-se intensificado ainda mais com o movimento “red pill” — uma ideologia misógina, difundida nas redes sociais e fóruns digitais.

O movimento defende um suposto “despertar” dos homens para a “realidade” das relações de gênero, promovendo a ideia de que homens teriam sido prejudicados pela ascensão dos direitos das mulheres. Uma das referências do movimento “red pill” no Brasil, o influencer Thiago Schutz, conhecido como “Calvo do Campari”, foi detido recentemente acusado pela namorada de agressão e tentativa de estupro, em Salto (SP).

Especialistas alertam que a cultura “red pill” representa um risco social, pois doutrina homens a verem as mulheres de forma negativa e pode levar à radicalização e ao extremismo, negando uma realidade social comum. O Jornal Opção entrevistou profissionais da área da Psicologia, que afirmam que, por trás desse discurso, há uma narrativa reducionista e hostil.

Para a presidente do Conselho Regional de Psicologia de Goiás (CRP-GO), Jéssica Florinda Amorim, a sociedade machista e os discursos misóginos contribuem significativamente para a submissão feminina.

“A normalização da violência contra as mulheres é um problema grave, pois pode tornar mais difícil para as vítimas reconhecerem a violência e buscarem ajuda”, explica.

Jéssica Florinda Amorim é presidente do CRP-GO | Foto: Arquivo Pessoal

“A submissão feminina pode levar a problemas de saúde mental, como depressão e ansiedade, e a violência contra as mulheres pode aumentar, incluindo a violência física, psicológica e sexual. A desigualdade de gênero pode persistir, limitando as oportunidades e a autonomia das mulheres”, alerta a presidente do CRP-GO.

Segundo a psicóloga Daniela Tealdi, especialista em Neurociência, Comportamento e Psicopatologia Clínica, pessoas que possuem crenças baseadas nas suas próprias experiências sem olhar com empatia e sem compreender a realidade do outro, tendem a interpretar o mundo de forma rígida, julgadora e limitada. 

“Essa falta de abertura emocional não só distorce percepções, como também enfraquece vínculos, alimenta preconceitos e impede o desenvolvimento de relações saudáveis. Quanto mais uma pessoa se fecha nos seus próprios filtros, mais repete padrões, mais reproduz violências simbólicas e mais se afasta da capacidade fundamental de reconhecer a humanidade e a vulnerabilidade do outro”, explica Daniela Tealdi.  

A professora titular do Departamento de Psicologia da PUC Goiás, Ilma Goulart, indica que, culturalmente, essas práticas persistem porque passam a funcionar como regras que orientam comportamentos de submissão feminina. “Ao longo da história, normas e valores sociais foram se consolidando de modo a legitimar e reforçar papéis de poder desiguais entre homens e mulheres. Essa naturalização faz com que a violência de gênero seja perpetuada, muitas vezes de forma silenciosa”, complementa.

“Quanto à submissão, mulheres estão em par de igualdade aos homens, portanto não aceitem serem caladas e nem diminuídas, mas procurem enxergar a vida com leveza e feminilidade, onde, em um relacionamento saudável, a parceria é fundamental para o crescimento de ambos”, aconselha Ilma Goulart.

O que dizem os Red Pills?

 O termo “Red Pill” — ou pílula vermelha — surgiu originalmente no filme Matrix (1999). Na obra, tomar a pílula vermelha significa “despertar” para a verdade oculta do mundo. Com o tempo, grupos online masculinos apropriaram-se dessa metáfora para criar sua própria narrativa: a ideia de que os homens estariam vivendo “enganados” pelas transformações sociais, especialmente, relacionadas ao feminismo.

Para os adeptos, tomar a “pílula vermelha” significaria “acordar” para uma realidade em que, segundo eles, os homens perderam espaço — seja nas relações afetivas, no mercado ou socialmente. Defendem valores como masculinidade tradicional, hierarquia de gênero e criticam o que chamam de “excesso de privilégios femininos”.

Ilma Goulart é professora titular da PUC Goiás | Foto: Arquivo Pessoal

“A violência de gênero tornou-se uma realidade presente em diversos contextos, manifestando-se por meio de abusos físicos e verbais. O efeito desses abusos é a manutenção da mulher em uma posição de subserviência, transformando a união do casal em uma relação de escravidão e reduzindo os atos de amor a meros rituais sem significado afetivo genuíno”, afirma a professora Ilma Goulart.

Triste estatística

Cerca de 30% das mulheres de Goiás já sofreram algum tipo de violência doméstica ou familiar provocada por um homem é o que aponta a 10ª Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher. O levantamento mostra também que em todo país é majoritária a percepção de que a violência doméstica aumentou nos últimos 12 meses (74%). Entre as goianas, um número ainda maior de cidadãs percebem o mesmo (80%).

Entre as mulheres agredidas de Goiás, 24% buscaram algum tipo de assistência à saúde e 76% afirmam não conviver mais com a pessoa que as agrediu. Boa parte das vítimas do Estado, a exemplo do que ocorre no Brasil, vivencia a primeira agressão ainda muito jovem. Para 37%, a primeira ocorrência se deu quando tinham até 19 anos.

De acordo com Jéssica Florinda Amorim, é desafiador trabalhar com vítimas de violência, justamente, porque é preciso criar um ambiente seguro e de confiança para que elas compartilhem o que foi vivenciado.

“É fundamental abordar as consequências emocionais e psicológicas da violência, ajudando as vítimas a desenvolverem estratégias para reconstruírem a autoestima e a confiança”, complementa.

Ligue 180

Em Goiás, o Ligue 180 registrou aumento de 34% nos atendimentos em 2024. Foram 18.232 ligações no ano passado, contra 13.588 em 2023. Denúncias também cresceram, de 3.483 em 2023 para 4.422 em 2024, acréscimo de 26,9%.

Entre as denúncias no ano passado, 2.083 foram apresentadas pela própria vítima, enquanto 1.616 foram por terceiros. A casa ainda é o cenário onde mais situações de violência são registradas: 1.762 denúncias tinham este contexto. A residência compartilhada por vítima e suspeito também é local de grande parte das denúncias em Goiás, com 1.550 casos.

Os dados apontam que há mulheres que vivenciam diariamente as situações de violências. No Estado, a frequência diária foi relatada em 1.992 atendimentos, enquanto 826 disseram que as agressões ocorrem ocasionalmente. São as mulheres pretas e pardas as vítimas mais frequentes (2.722) e são os esposos(as) e companheiros(as) — ou ex-companheiros (as) — aqueles que mais cometem atos violentos (1.902).

Especialista em Psicopatologia Clínica, Daniela Tealdi | Foto: Arquivo Pessoal

“Permita-se pedir ajuda. Permita-se ser cuidada. Você merece segurança, dignidade e uma vida onde o amor não machuca”, aconselha a psicóloga Daniela Tealdi.

“Primeiramente, é necessário estabelecer o controle da situação e, pra isso, a mulher precisa se afastar o mais rápido possível, não há questionamentos, dú6qvidas, nem satisfação do que está acontecendo, procure segurança. Preserve a sua integridade física”, é o que a psicóloga também orienta. 

Por fim, ela solicita as vítimas de qualquer tipo de violência, seja física ou psicológica, que busquem um acompanhamento psicológico. “Existem feridas, culpas e vivências familiares que podem nos colocar, sem perceber, em situações de perigo. Nenhuma mulher ‘escolhe’ a violência — ela é capturada por um ciclo que mexe com sua história, sua autoestima e seu senso de merecimento”, contextualiza Daniela Tealdi.

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