Era uma vez uma luzinha cintilante que pontilhava as noites do Cerrado, um espetáculo gratuito e mágico que marcou a infância de gerações de goianos. Essa memória afetiva, no entanto, está se tornando cada vez mais rara, um lampejo nostálgico ofuscado por um presente mais escuro e silencioso. 

A pergunta, embrulhada pela saudade, percorre os campos e cidades: para onde foram os vaga-lumes? A resposta, construída a partir de pesquisas científicas e da observação no campo, desenha um cenário onde a perda de habitat e o uso indiscriminado de agrotóxicos aparecem como os grandes vilões por trás do fenômeno do apagão gradual desses insetos luminescentes.

Para desvendar os fios dessa teia que ameaça a biodiversidade, a reportagem do Jornal Opção ouviu biólogos que dedicam suas carreiras a estudar e vivenciar o mundo dos insetos.

Os relatos de Kennedy Borges, analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e coordenador de pesquisas no Parque Nacional das Emas, e de Bruno Piotrovski Begha, mestre em biologia evolutiva e doutorando em biodiversidade animal pela Universidade Federal de Goiás (UFG), convergem no fato de que a luz dos vaga-lumes está sendo extinta pela ação humana.

Raiz do problema: Desmatamento e o círculo do veneno

Da sede do Parque Nacional das Emas, Kennedy Borges traça uma linha entre o sumiço dos insetos e o modelo agrícola predominante. “Vamos falar mais ou menos assim, os insetos, de uma forma geral, no Brasil e no mundo todo, eles estão perdendo habitat por conta da… o que nós temos no Brasil é a agricultura extensiva, e essa agricultura extensiva que produz commodities, principalmente soja, milho, etc., para enviar para o exterior, para virar ração, né, para o mundo todo, não só para o Brasil, eles utilizam muitos agrotóxicos”, afirma.

O biólogo faz uma ressalva terminológica que carrega um peso político e científico. “Eles querem que a gente chame isso de defensivo agrícola. Só que esse defensivo agrícola, na verdade é veneno, a maioria deles são cancerígenos, e principalmente causa a mortandade em mais de 99% das espécies de invertebrados, incluindo aí os vaga-lumes”.

Kennedy Borges no Mirante do Avoador, Parque Nacional das Emas | Foto: Arquivo pessoal

Para Kennedy, “a raiz de tudo, de todo o problema, é o desmatamento”. Ele explica que a destruição da vegetação nativa elimina o local onde os insetos vivem, se reproduzem, se alimentam e completam seu ciclo de vida. Sobre essa terra desmatada, instala-se a monocultura, que por sua vez, demanda o coquetel de químicos que envenenam o solo, a água e o ar.

“Existe a questão da ação humana, existe a questão das mudanças climáticas também, a ação humana está justamente ligada à intensificação da agricultura, ou seja, quanto mais se desmata para plantar, a prática dessas monoculturas, né, vai usar fertilizante químico, vai criar uns ambientes não propícios mais para os invertebrados, que grande parte deles são polinizadores”, detalha o coordenador do ICMBio.

Ele afirma que “grande parte da biodiversidade de insetos está ligada à diminuição, à intensificação da agricultura e o que vem com ela, que é principalmente o uso de agrotóxicos, né, aí vem inseticidas, pesticidas químicos, eles matam insetos, causam câncer na gente, né, começa por aí”.

Kennedy critica a falta de fiscalização e a impunidade que cercam o uso desses produtos. “A fiscalização dos extensivos, como eu falei, soja, milho, etc. Ela não tem fiscalização. Fiscalização é praticamente irrisória. Então não diluir o veneno como tem que ser, etc. Então a raiz é isso. Desmatamento e uso de agrotóxicos”.

O biólogo vai além e aponta uma contradição geopolítica bárbara. “Nós temos contato direto com o Ibama mesmo, e a gente sabe que muitos agrotóxicos usados no Brasil são proibidos nos seus países de origem. Eles proíbem isso principalmente na Europa, mas tem outros países que produzem também. Mas os países produtores, é uma coisa que eles sabem que causa câncer e mandam pra nós, mas é o Brasil vivendo como colônia até hoje, é incrível”.

“Se eu tivesse um poder de caneta, eu diria, ‘ó, pode usar o agrotóxico, mas desde que não seja proibido em seus países de origem’. Aí o povo fala assim, ‘ah, mas vai quebrar o agro brasileiro, não sei o quê’. Que quebre, que quebre, ninguém come soja. A minha visão é baseada em ciência”, propõe Kennedy. 

Parque Nacional das Emas é um santuário de luz

Em um cenário desolador, o Parque Nacional das Emas permanece como um reduto onde a magia ainda resiste. É dentro dos seus 132 mil hectares, localizados no extremo sudoeste de Goiás, nos municípios de Mineiros, Chapadão do Céu e Costa Rica (MS), que uma espécie específica de vaga-lume, o Pyrearinus termitilluminans, consegue se reproduzir de forma espetacular. O fenômeno da bioluminescência, quando as larvas desses vaga-lumes iluminam os cupinzeiros do parque, tornou-se uma atração turística internacional.

Kennedy Borges explica por que o parque é um refúgio. “No caso do Parque Nacional das Emas, por que que a gente ainda tem o efeito da bioluminescência? (…) o parque sente o efeito dos pesticidas do agronegócio nas bordas, mas dentro do parque não chega, nem mesmo por deriva, não chega o agrotóxico, então esses bichos sobreviveram ali”.

Essa sobrevivência, no entanto, é circunscrita aos limites da unidade de conservação. “O parque hoje é o único local do planeta que essa espécie de vaga-lume ainda consegue reproduzir bem”, ressalta.

Veja vídeo:

A fragilidade desse santuário fica evidente quando se observa o entorno. “Se você olhar no Google Earth, o Parque Nacional das Emas, e subir um pouquinho, você vai ver que em volta do parque não tem conexão com outras áreas verdes. (…) Tudo é agronegócio, principalmente na região aqui, com plantação de cana, milho e soja”.

E o efeito da contaminação é visível mesmo na fronteira do parque. “Tu vê que nas bordas do parque não tem mais a luminescência. Por quê? Porque as larvas e os vaga-lumes morreram. Morreram todas”, relata Kennedy, pintando um quadro de como a barreira invisível do parque é, literalmente, uma linha entre a vida e a morte para essas espécies.

O ciclo de vida desse vaga-lume está intimamente ligado ao ecossistema local. “Normalmente ela acompanha a chuva. Porque quando está seco e começa a chover, você já viu que saem aqueles cupins alados da terra que a gente chama de aleluia? Esse é o principal alimento das larvas do vaga-lume”, explica Kennedy. O espetáculo, segundo ele, é melhor apreciado em “noites sem Lua. Noites escuras é o melhor período”.

Vaga-lumes em cupinzeiro | Foto: Jota Alberto/ Condutor no Parque Nacional das Emas

Entretanto, essa dependência de escuridão total traz à tona outra ameaça, complementar aos agrotóxicos: a poluição luminosa.

Poluição luminosa é uma barreira invisível

Bruno Piotrovski Begha, doutorando na UFG, reforça o impacto da iluminação artificial sobre os vaga-lumes. “Como o vaga-lume usa muito da luz para se comunicar com si, para se reproduzir, os bichinhos acabam se confundindo e tendo essa dificuldade em ambientes urbanos. Então a gente vê muito menos vaga-lume em ambientes urbanos, justamente por causa dessas luzes artificiais”, explica.

A bioluminescência não é um simples ornamento, mas uma ferramenta vital de comunicação. Os sinais de luz são usados para afastar predadores durante a fase larval e, na vida adulta, são cruciais para o ritual de acasalamento, permitindo que machos e fêmeas de uma mesma espécie se localizem no escuro. Quando a noite é invadida por postes, holofotes e anúncios luminosos, esse delicado sistema de sinalização colapsa. Os insetos se confundem, não conseguem encontrar parceiros e a reprodução falha.

Bruno Piotrovski Begha | Foto: Arquivo pessoal

Bruno corrobora a visão de que as áreas urbanas foram as primeiras a testemunhar o apagão mais drástico. “Com certeza a maior diminuição foi nas regiões urbanas, né? Aqui tem menos local para eles se protegerem, menos alimento”. No entanto, ele adverte que a queda não se restringe às cidades. “Mas de uma forma geral, tem uma queda das populações em todas as regiões”.

Vaga-lumes são sentinelas ambientais

Ambos os biólogos enxergam no vaga-lume muito mais do que um inseto bonito; ele é um bioindicador, um termômetro da saúde do ecossistema. “O vaga-lume é muito bom como ambientificador porque ele é fácil de ser coletado e reconhecido”, pontua Bruno. A sua sensibilidade o torna um aviso precoce de desequilíbrios.

“Como esses insetos são sentimentos frágeis aos agrotóxicos e poluição humana, se esses bichinhos começarem a desaparecer, pode ser um alerta. ‘Poxa, não tem vaga-lume aqui? Talvez esse meio não esteja tão saudável quanto aparenta. Talvez essa poluição possa vir a causar mal para a gente’”.

Kennedy Borges amplia o alerta para todo o grupo dos insetos, essenciais para a vida na Terra. “Abelhas, por exemplo, abelhas são extremos polinizadores, depende muito, não só delas, como de alguns besouros e tal, que são, como eu diria, polinizadores de plantas que a gente consome. Eu li um artigo recente, mostrando que a perda de insetos nos últimos 40 anos, em algumas regiões do planeta, já chegou a 90%, você diminuiu 90% de insetos”. 

Quais são os caminhos para reacender a luz?

Diante de um quadro tão complexo, quais seriam os caminhos para frear e, quem sabe, reverter o apagão dos vaga-lumes? As soluções apontadas pelos especialistas passam por mudanças estruturais e pela valorização das áreas preservadas.

Para Bruno Begha, a prioridade é clara: “O mais importante é aumentar a área de reservas preservadas. Porque protegendo essa área, você vai remediar todos esses problemas que podem causar extinção ou exposição dos bichos a qualquer pesticida”. Ele também defende a criação de corredores ecológicos e a valorização da vegetação nativa, mesmo em ambientes urbanos.

“Aumentar a possibilidade de áreas preservadas, naturalmente, ter reserva legal, áreas urbanas com mata nativa, porque mesmo alguns parques urbanos são feitos com umas plantas que são mais bonitas do que outras. Então você acaba pegando uma planta que não é nativa. Então se você criar plantas nativas aqui, acaba facilitando para as espécies deflorarem naquela área”.

Vaga-lumes em cupinzeiro | Foto: Kennedy Borges

No âmbito agrícola, ele sugere a rotação de culturas como uma prática menos agressiva. “Tem uma atividade de culturas, se eu não me engano, que você usa… Porque a gente tem muito aqui a monocultura de soja. Daí, se você está alternando as culturas que tem em uma área, você acaba possibilitando que o solo fique melhor, não precisa ter tanto agrotóxico nesse sentido”.

Kennedy Borges, por sua vez, mantém o foco no combate ao uso indiscriminado de agrotóxicos. “Eu não sou contra a produção, eu sou contra a utilização exacerbada de veneno”, reforça. Ele defende uma aplicação que siga rigorosamente as instruções técnicas, algo que, em sua experiência, muitas vezes não acontece.

“Eu já conversei com outros engenheiros agrônomos, eles passam a receita direitinho aos produtores, aos fazendeiros, só que o cara quer para ontem, né, o brasileiro é muito imediatista, então, se ele tem que diluir uma coisa lá a 30%, 70% de água, o cara bota logo uns 50%, mete bronca para acelerar a produção”.

Diminuição de vaga-lumes e insetos é um alerta global

O fenômeno do declínio dos vaga-lumes em Goiás não é um caso isolado. Um estudo global publicado na revista Biological Conservation aponta uma queda anual de 2,5% na população mundial de insetos, uma tendência impulsionada por mudanças no habitat e pela poluição.

No Cerrado, bioma mais pressionado do Brasil, a situação é ainda mais crítica. A reportagem do Correio Braziliense destacou levantamentos da bióloga Stephanie Vaz, coordenadora regional para a América do Sul na União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN), que apontam a perda de habitat como a maior ameaça aos vaga-lumes.

A pesquisadora explicou que, além do desmatamento e dos pesticidas, a poluição luminosa se tornou um fator decisivo. Em regiões onde a noite já não é tão escura, estudos comprovam que as populações de vaga-lumes são significativamente menores.

Enquanto a ciência documenta o declínio, a experiência cotidiana das pessoas confirma a ausência. As noites de verão, outrora animadas pelo piscar ritmado dos vaga-lumes, agora se entregam a uma escuridão mais profunda e vazia. 

O Parque Nacional das Emas, com seus cupinzeiros iluminados, é o testemunho do que o Cerrado já foi e do que ainda pode ser preservado. Mas a visão de Kennedy Borges sobre o futuro é comedida. “Os efeitos a médio e longo prazo, com certeza serão catastróficos porque eles estão em franco declínio”.

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