“Desinformação e desconhecimento” explicam fala de Gustavo Gayer sobre política de cotas, diz especialista
15 março 2024 às 14h01
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“Por desinformação, o deputado fala que o ensino superior perdeu a qualidade com a política de cotas. Isso mostra que ele não conhece o ambiente da educação superior, e muito menos os indicadores do Ministério da Educação”, explicou Pedro Cruz que é vice-presidente da Comissão de Heteroidentificação da Universidade Federal de Goiás (UFG). Em entrevista recente, o deputado bolsonarista afirmou que notas dos estudantes cotistas negros são menores que as dos outros estudantes. O Jornal Opção conversou com especialistas em políticas afirmativas para entender a questão apresentada.
Durante o programa “Bradock Show” na última segunda-feira, 11, Gustavo Gayer afirmou: “Cotas raciais é uma das coisas que prejudicaram o ensino no mundo inteiro. Já ouvi vários estudos sobre isso. Não é à toa que a Suprema Corte Americana proibiu cotas raciais por perceberem que elas prejudicam as instituições de ensino. Agora, cotas sociais são outra coisa completamente diferente. Não importa se a pessoa é negra, branca, ruiva, oriental, se ela vem de uma condição social desfavorável, onde ela não tem acesso à individualidade, então tudo bem, uma cota ou separar vagas para que essa pessoa possa concorrer de igual para igual com pessoas que vieram um ensino particular com capacidade de pagar uma educação diferenciada”, opinou.
Diferente da opinião apresentada pelo deputado, que é pré-candidato à prefeitura de Goiânia, os efeitos da decisão da Suprema Corte Americana de derrubar as ações afirmativas levarão tempo para se materializar, mas um Estudo de Harvard de 2013 apontou que, depois que a ação afirmativa terminou em estados-chave, houve “declínios acentuados” da diversidade no ambiente de trabalho. O estudo de Harvard, que durou de 1990 a 2009, examinou Califórnia, Michigan, Nebraska e Washington depois que esses estados proibiram as ações afirmativas no que diz respeito aos grupos raciais minorizados.
Sobre a questão de diferenciação entre cotas raciais ou sociais, é importante destacar que na prática elas são aplicadas em conjunto. Pedro Cruz ilustra a informação afirmando que na década de 80 o perfil estudantil da UFG era de maioria branca e rica e ao longo do tempo a universidade está chegando a um patamar mais próximo da realidade do País. “Hoje temos mais de 70% dos nossos estudantes que tem renda média per capita de até 2 salários mínimos. É importante a gente perceber que esse indicador socioeconômico mostra que a cota tem um perfil social muito importante. Porque quando eu olho para esse perfil socioeconômico eu estou vendo o perfil social evidenciado e colocado aqui nessa universidade e em todo o ensino público do país”, explicou. Diante desses dados, o especialista ainda complementa que existem resultados mensurados em pesquisa: “e os indicadores de ensino e de qualidade das federais são os melhores do País”.
Especialistas consultados pelo Jornal Opção afirmam que fala do pré-candidato é novamente racista e relembram que ele já foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República (PGR) por afirmar em 2023 que os africanos não têm “capacidade cognitiva” para viver em um regime democrático. “Aí você vai ver na África: quase todos os países são ditaduras. Quase tudo lá é ditadura. Democracia não prospera na África. Por quê? Para você ter democracia, é preciso ter o mínimo de capacidade cognitiva para entender o bom e o ruim, o certo e o errado. Tentaram fazer democracia na África várias vezes”, disse ao podcast Três Irmãos.
Antes disso, o deputado também foi considerado racista ao vincular a afro descendência do ministro Silvio Almeida à uma “suposta inferioridade do quociente de inteligência dos povos africanos e afrodescendentes”. Em resposta ao Jornal Opção, o Ministério dos Direitos Humanos informou que o caso tramita judicialmente e que a pasta não iria comentar.
“Gustavo Gayer Machado de Araújo vinculou a afrodescendência de Silvio Luiz de Almeida a uma suposta inferioridade do quociente de inteligência dos povos africanos e afrodescendentes, sustentadas dias antes no podcast 3 irmãos, reafirmando ser essa a causa das ditaduras, geradora, inclusive, de um “analfabetismo funcional” do Ministro de Estado dos Direitos Humanos e da Cidadania, reforçando estigmas reprodutores de inferioridade contra minoras raciais”, diz trecho da denúncia da PGR.
Em julho do ano passado, a Advocacia-Geral da União (AGU) encaminhou à PGR uma notícia-crime contra o parlamentar. A AGU, por sua vez, pediu para a procuradoria avaliar se as falas do deputado “se enquadram no crime previsto no art. 20 da Lei nº 7.716/19 (Lei do Crime Racial), qual seja: ‘praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.
“As declarações feitas não guardam qualquer correlação com a atividade parlamentar, tendo sido proferidas em entrevista concedida a podcast, cujo tema discutido, além de preconceituoso e discriminatório, não possuía pertinência com a atividade legislativa”, reforça a advocacia.
Procurada, a assessoria do deputado federal ainda não se posicionou para esclarecer essas questões.
Confira abaixo a entrevista completa com Pedro Cruz, Vice-Presidente da Comissão de Heteroidentificação da Universidade Federal de Goiás (UFG), sobre os principais avanços e conquistas 12 anos após sanção da Lei de Cotas no País.
Importância da Lei de Cotas
Pergunta: Qual a importância da Lei de Cotas para o país e quais as principais conquistas nestes 12 anos?
A política de cotas é um instrumento fundamental para a gente promover uma ação que vai romper com o processo de desigualdade que nós temos no país, que remonta a todo um processo de escravização, de colonização do povo preto no Brasil. Então, esses instrumentos são instrumentos de políticas reparatórias historicamente a populações que foram tirados delas, ao longo da sua existência, todos os seus direitos. A política de cotas tem um objetivo.
Qual que é o objetivo da política de ação afirmativa? É de reduzir as desigualdades que uma sociedade. Quando se há uma política assim, por um motivo ou por outro, quer dizer que a sociedade conseguiu avançar nesse aspecto de segregação, de negação de direitos, da cidadania e das pessoas. Nós vivemos num país que tem cotas em vários aspectos. Nós vamos falar de cotas para a educação superior, mas nós temos cotas em vários aspectos para a gente pensar. Quando a gente pensa no passe estudantil, quando a gente pensa numa reserva de vaga para um idoso, para um deficiente, quando a gente pensa no passe do idoso.
Tudo isso a gente está falando de cotas. Quando a gente tem a reserva de cotas, por exemplo, para uma viagem intermunicipal de ônibus, para uma pessoa idosa ou para um deficiente. A gente vive em um país que tem muitas cotas porque a gente vive em país socialmente muito desigual. Então, as cotas signfica dar um tratamento desigual aos desiguais para que em alguma medida, se busque uma igualdade. Para que, efetivamente, a gente possa conseguir a equidade, porque isso é que a gente precisa ter. Quando eu dou um tratamento igual para pessoas diferentes, com situações diferentes, eu estou perpetuando aquela situação de desigualdade.
Falando de cotas nas universidades, sobretudo o sistema federal de ensino, a gente sabe muito bem que, na década de 80, a gente tinha 3% da população negra acessando universidades. Com a política de cotas, que foi adotada num primeiro momento por instituições de forma meio que isolada, mas já fazendo parte de um contexto de movimento social negro, a gente começa na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em 2002. No ano seguinte, há o início nas federais, por meio da Universidade de Brasília (UnB).
A instituição de cotas da UNB gera uma situação de descontentamento por uma parcela da sociedade. Na época, um partido político (DEM) judicializa a questão, com o intuito de declarar essas cotas ilegais. E o Supremo Tribunal Federal, só em 2012, vai então votar essa medida, que é uma ação de descumprimento de preceito fundamental, que é um instrumento que o Supremo usa para proteger um direito que a Constituição não está protegendo diretamente ou que as leis infra-constitucionais não estão protegendo. Então o STF julga e passa a proteger aquele direito que estava desprotegido.
Logo depois da decisão é instituída a Lei 12.711, que cria a reserva de, no mínimo 50% das vagas, para pessoas pretas, pardas, indígenas que cursaram todo o seu ensino médio em escola pública. Então a gente começa a implantar isso a nível nacional. Como eu falei dos 3%, a gente chega em 2018 com mais de 50% já de população negra dentro da universidade. Aí leia-se pretos e pardos. É importante a gente trazer esse recorte e associando a um item que, por desinformação, o deputado traz como um argumento de desqualificação da política. Ele fala que o ensino superior perdeu a qualidade. Isso demonstra, antes de mais nada, que ele é uma pessoa desinformada, que ele não conhece de fato esse ambiente da educação superior, e muito menos os indicadores do Ministério da Educação.
Pergunta: O que dizem os indicadores sobre a educação de nível superior?
Os indicadores medem a qualidade do ensino superior público federal no Brasil. É algo geral, mas pegando como exemplo a UFG, nós temos a ampla maioria dos cursos aprovados com 4 e 5, que é a nota máxima do MEC. Então, 3 é a nota de validade, mas 4 e 5 são notas de excelência. E o ensino superior público no Brasil está nessa taxa, o que significa dizer que nós avançamos em qualidade do ensino oferecido pelas instituições públicas federais no Brasil contrariando a informação do deputado.
Mas a gente nem vai entrar nesse debate, porque alguém que nega a ciência, que nega evidências, como é que a gente vai argumentar com uma pessoa dessa? O deputado que se manifestou nas redes sociais, ele é conhecidamente como uma pessoa conservadora, que não tem nenhum letramento racial, demonstra-se desinformado em relação a indicadores da educação superior, é uma pessoa que tem posturas preconceituosas e até racista, não é à toa que inclusive responde processos dessa ordem. Acho que não é uma pessoa que está preparada para falar sobre esse tema.
Então é uma fala que tem, ao meu ver, muito mais o objetivo de falar para um público específico para poder se colocar nas redes sociais, do que alguém que traga de fato um conteúdo consistente para falar de uma política tão importante como essa. O que nós temos de fato hoje é que a política de cotas, ela reconfigurou as universidades brasileiras, os institutos federais, que trouxeram para dentro dessa instituição a representação real da sociedade brasileira.
Porque a gente olhava para essa universidade há pouco tempo, a gente tinha majoritariamente homens brancos e pessoas ricas. Esse era o perfil dessa universidade. Hoje nós temos mais de 70% dos nossos estudantes que tem renda média per capita de até 2 salários mínimos. Então, a gente tem uma completa inversão nisso e é importante a gente perceber que esse indicador socioeconômico mostra que a cota tem um perfil social muito importante. Porque quando eu olho para esse perfil socioeconômico eu estou vendo o perfil social evidenciado e colocado aqui nessa universidade e em todo o ensino público do país.
O que nós precisamos de fato apresentar são os resultados positivos de uma instituição que tem provado a cada dia a sua importância, eficiência e capacidade. A gente teve, num momento recente, de pandemia, um momento de agonia no mundo inteiro. Nós vimos as universidades no mundo inteiro (e o Brasil não ficou de fora) dando respostas e soluções pra algo que era completamente desconhecido. Ou seja, a ciência chegando pra dizer quais são os rumos e quais são as medidas que devem ser tomadas.
Essa pesquisa realizada pela Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior) é a quinta pesquisa nacional de perfil socioeconômico e cultural feita com os estudantes. O estudo revela a qualidade do ensino e essa inversão na composição da universidade. Além disso, mostra a diversidade imensa dentro da instituição hoje, representada por pessoas que estavam fora e hoje estão dentro do sistema federal de ensino superior no Brasil.
Em relação ao nível de escolaridade dos pais, a IV Pesquisa revelara que 64,1% de discentes do sexo
masculino e 66% do feminino já tinham nível de escolaridade superior ao de suas mães e que 66,6% dos estudantes do sexo feminino e 69,4% do masculino tinham nível de escolaridade superior ao de seus pais. Estes dados indicavam um impacto geracional proporcionado pela ampliação das oportunidades de acesso às IFES brasileiras. A pesquisa demonstrara que a maioria dos (as) estudantes havia frequentado escolas públicas no ensino médio. Do total, 64,1% dos estudantes tinham realizado o Ensino Médio em escolas públicas, enquanto 35,9% frequentaram escolas particulares. Com efeito, cada vez mais o público universitário se aproximava das características sociodemográficas da população brasileira nos coortes cor ou raça e sexo.
Contrariando o que diz o deputado, nossos sindicatórios são os melhores possíveis, nossas universidades são premiadas em estudos, pesquisas e produtos que ela desenvolve e isso mostra qualidade. Então, não dá pra entender o discurso que o deputado traz, inclusive quando ele fala dos Estados Unidos. Primeiro, a gente tem que entender que tipo de racismo tem nos Estados Unidos e que tipo de racismo é praticado no Brasil.
O racismo de origem nos Estados Unidos é um racismo identificado pelo sangue das pessoas. Aqui no Brasil o racismo é identificado pelas marcas, pelas características fenotípicas que as pessoas trazem no corpo. São essas marcas que discriminam, isolam as pessoas e provocam a violência. São essas marcas que marcam, matam e encarceram muitos negros no Brasil. Temos que olhar para o sistema carcerário brasileiro e ver qual população está lá. É uma população favelada, periférica, pobre e preta, que não tem condições sequer de ter um advogado. Quantos estão lá, inclusive, que nem deviam estar? Quantos já até cumpriram a sua pena? Quantos nem foram condenados, mas não tem um advogado que possa ajudá-lo a sair daquela condição?
É uma sociedade injusta. E o parlamento, que tem uma importância muito grande, precisa estar mais qualificado para poder promover ações de cidadania, para poder promover leis que efetivamente garantam o direito humano das pessoas. Ao contrário, a gente tem muitos que procuram degradar esses direitos, que procuram ofender essas pessoas, que procuram negar historicamente o direito que já foi negado. Quando o deputado fala, por exemplo, dos japoneses e chineses na relação com os Estados Unidos, ele traz essa ideia de que são mais capazes. Olha só, nós temos realidades tão diferentes. Eles não foram escravizados, mas o nosso povo negro foi.
À população negra foi negada todas as oportunidades, inclusive do ensino fundamental, onde você tem no sistema de ensino infantil uma criança branca que roda de braço em braço. Já a criança negra nem todos querem pegar e nem todos querem passar a mão na sua cabeça e no seu cabelo. Nós só queremos que as pessoas tenham direito e tenham sua dignidade respeitada, seu direito de cidadão, de chegar e de ser atendido, de chegar e de ter as mesmas oportunidades. Agora, nós temos felizmente uma Lei Nacional, que já trabalha nessa perspectiva de que mulheres e homens tenham salários iguais. Já temos na estrutura pública um decreto que diz que tem que ser instituído nos cargos de poder de gestão da instituição, no mínimo 30% para pessoas pretas e pardas. Então, algo está mudando, e de fato, precisa mudar.
A Universidade Federal de Goiás hoje tem 21 mil estudantes matriculados e 49% são pretos e pardos. Nós temos também uma população indígena e população quilombola por um programa próprio da universidade que ofereceu agora pela primeira vez no SISU a primeira coleta pelo censo que identificou essa população, quantificou e começou a se instituir nacionalmente a política de cotas nas universidades.