Crack: as condições de vida na calçada do poder
25 junho 2014 às 20h04
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Há 15 anos nas ruas, já não conhece outra realidade, somente aquela entre ele e o crack
“Você é um lixo na sociedade”, disse o policial. “Você pensa isso, mas para Deus eu sou precioso”, respondeu o baixinho com a boina camuflada. Com os olhos vermelhos, a fala arrastada, e um olhar um tanto perdido e triste, Moisés deixou as mãos para trás enquanto os policiais revistavam um colchão velho, roupas sujas e outros objetos diversos – como o cachimbo prata que Moisés segurava quando os oficiais abordaram a ele e aos outros dois jovens ao seu lado. Mesmo com a forma rude de um dos policiais, os outros dois fizeram a abordagem de forma humana e educada.
Com no máximo 1,55m e 31 anos de idade, não deve ter sido a primeira vez que Moisés ouve isso. Há 15 anos nas ruas, já não conhece outra condição, somente aquela entre ele e o crack. Inicialmente, disse que só daria entrevista em troca de uma gorjeta. Entre uma palavra e outra, soltou que veio do Pará e que já serviu ao Exército. “O povo pensa que na rua só tem analfabeto, mas não é assim não. Na rua tem advogado, juiz, gente de todo o tipo”, disse Moisés, que logo foi andando dizendo que já voltaria. Mas não voltou.
Moisés, como vários outros usuários, costuma ficar em frente à Câmara Municipal de Goiânia. Dormindo, perambulando, usando crack, logo ali, na porta da Casa. A pequena sociedade formada por pessoas escravas de uma pedra está há tanto tempo ali que já passa despercebido por muitos
O outro usuário, 34 anos, não quis dizer seu nome. Com duas garrafas de cerveja na mão, andando de um lado para o outro parecendo não ter rumo (e de fato não tinha), disse: “Eu vivo na rua, só conheço a rua.” Ao lado, sua companheira com a barriga imensa, em uma gravidez já avançada. Perguntada sobre quando nasceria o bebê, respondeu: “Sei lá, não fiz pré-natal”.
Com cenas de pessoas sem rumo, sujas e deitadas nas calçadas da Câmara Municipal, os vereadores dizem que se preocupam com o que acontece lá fora. Djalma Araújo (SDD) afirma que tem cobrado dos órgãos competentes. “Não adianta fazer projeto para ficar engavetado”, disse. Já a vereadora Cristina Lopes (PSDB), presidente da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania, disse, por sua vez, que tem feito diálogo com grupos da Igreja Católica e outras ONGs, conseguindo internação para muitos deles. “Mas a maioria foi na época que teve aquelas mortes de moradores de rua, quando estavam com medo”, disse. A parlamentar, que sustenta ser ativa nessa ação de auxílio aos dependentes químicos, diz que sua “estratégia é a aproximação”. “No fim da tarde, eu sei que gera um pânico nas pessoas que tem que passar a pé pelo local. Mas tirar eles dali para se livrar do problema não é uma solução.”
Policiais que estavam no local fazendo ronda disseram que não há nenhum tipo de orientação por parte da Polícia Militar para um trabalho específico com os usuários de crack em frente à Câmara Municipal. “Nós não podemos interferir no direito de ir e vir do cidadão”, disseram. De acordo com eles, a abordagem foi devido a uma ação de um deles. “Pensamos que ele estava passando dinheiro, podendo ser tráfico, mas chegamos aqui e não se tratava disso.”
O porta-voz da Polícia Militar, coronel Alves, reiterou o que foi dito pelos policias, afirmando que no local deve ser feita uma ação social e não policial. “Desde que não comentam crimes, não podemos tirá-los dali, sendo esse um direito deles. O problema é de saúde pública e social.”
Ações do Estado e prefeitura
No Estado há o Grupo Executivo de Enfretamento às Drogas em atuação desde 2013, presidido por Ivania Fernandes. O grupo é composto por nove órgãos do governo e foi criado para operacionalizar as políticas públicas sobre drogas em Goiás, nos eixos de prevenção, recuperação e reinserção social. Com o principal foco na prevenção, o grupo possui um projeto chamado de “Jornada goiana de prevenção ao uso de droga”, que vai a municípios do Estado de Goiás fazer ações de prevenção, com seminários de capacitação e oficinas. Com o projeto iniciado em fevereiro, sete cidades (Goiânia, Luziânia, Uruaçu, Catalão, Jataí, Aruanã e Seres) já foram percorridas, sendo que a última deste ano será Itumbiara, em agosto. No segundo semestre, um trabalho de reinserção social será iniciado, com disponibilização de cursos de capacitação para unidades terapêuticas. Até o momento, 10 unidades concordaram com o trabalho.
Entretanto, quando se fala de tratamento, o trabalho não é o mesmo. Na verdade, a única ação que visa tratamento vem do Centro Estadual de Avaliação Terapêutica, Álcool e outras drogas (CEAT-AD), criado pelo grupo no final de maio deste ano, com um serviço de triagem dos usuários e o encaminhamento para Caps ou outras comunidades terapêuticas. Recentemente, o Estado, em parceria com o governo federal, comprou 750 leitos em unidades de tratamento, e nem todas as vagas estão preenchidas. Isso porque convencer os usuários a se tratarem é outro grande desafio.
Desafio este que pode ser ultrapassado pelo trabalho de assistentes sociais, no convencimento de usuários em situação de rua. Um trabalho difícil e exaustivo, e que não é realizado de forma específica pela Secretaria Municipal de Assistência Social (Semas) junto aos usuários. Antigamente o órgão desempenhava um trabalho de cadastramento e acompanhamento de usuários morando nas ruas, mas a ação foi encerrada. Atualmente são realizadas abordagens a pessoas em situação de rua todos os dias, 24h. As pessoas que aceitam sair das ruas são levadas para a Casa de Acolhida Cidadã, onde é feito um acompanhamento. A Semas explica que por mais que não haja um trabalho direcionado especificamente a usuários de droga em situação de rua, o órgão aborda moradores de rua, sejam eles dependentes ou não.
A extinta secretaria de Defesa Social, agora nas mãos da Agência de Guarda Municipal, afirmou que a Semas era responsável pela parte do trabalho de aproximação com os usuários no programa “Crack, é possível vencer”. A Semas, entretanto, não confirmou tal participação no programa. A secretaria possui o Serviço Especializado em Abordagem Social (Seas) que possui seis equipes de abordagens compostas por 48 educadores sociais, onde cada equipe tem em média oito educadores sociais. A assessoria do órgão municipal explicou dizendo que não focava em questões relacionadas às drogas, que é um problema multifacetário.
A vereadora Cristina Lopes, diz ser muito complicado separar os usuários de droga de pessoas em condição de rua. “Geralmente pessoas que moram nas ruas sofrem de algum tipo de dependência”, disse. De acordo com ela, o problema é que os gestores nunca abraçam o problema a fim de resolvê-lo. “Ao invés de juntar forças, jogam o problema de um lado para o outro. Eles têm que perceber que é uma somatória de esforços”, disse a legisladora.
O vereador Djalma Araújo afirmou que convidou à Casa municipal por diversas vezes a Semas para que os problemas dos usuários de crack e moradores de rua fossem discutidos. “Mas até agora não veio”, disse o vereador. O Jornal Opção Online tentou entrar em contato com a secretária, Maristela de Alencar Bueno, mas a assessoria do órgão disse que não seria possível. Sobre as ações da secretaria, a Semas sustenta que não trabalha especificamente com usuários de droga, mas sim com moradores de rua. O órgão ainda afirma que possui vários trabalhos na área de prevenção e reinserção social, realizados pelos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS).
Guarda Civil Metropolitana à frente dos projetos
Em Goiânia, a Secretaria Municipal de Defesa Social (Semdef) foi criada no ano passado e cuidava de questões referentes à dependência química. No final de 2013 um documento de parceria foi assinado entre o município e o governo federal em que a gestão municipal se comprometia a participar do programa “Crack, é possível vencer”, que ainda não teve os trabalhos iniciados. Em fevereiro, a então secretária Adriana Accorsi saiu da pasta, que foi ocupada pelo presidente comandante da Guarda Municipal, Elton Ribeiro de Magalhães, que passou a acumular as duas secretarias. Com a reforma administrativa da prefeitura, a Semdef foi incorporada a Guarda Civil Metropolitana (GCM), e os trabalhos de defesa social continuaram nas mãos de Elton.
O presidente comandante passou, então, a ser também presidente do Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas, cujo principal propósito é organizar ações. Coordenando o projeto “Crack, é possível vencer”, Elton explica que pretende dar início aos trabalhos no próximo mês, e que houve atraso devido a não chegada de todos os equipamentos. Com a verba, a AGM adquiriu 80 câmeras a serem distribuída em quatro regiões (bairro Ipiranga, saída para Trindade; Campinas; Coimbra; Centro), quatro microônibus, 16 veículos, 16 motos, 50 tasers (máquinas de choque), 150 sprays de pimenta – todos a serem distribuídos nas quatro regiões já citadas. No momento, o grupo aguarda o recebimento dos microônibus.
De acordo com Elton, esses equipamentos irão propiciar o monitoramento do usuário, em um trabalho em parceria com Semas, Secretaria Municipal de Saúde e Polícia Militar. “Temos como objetivo o tratamento, mas iremos precisar de uma parte repressiva”, disse o presidente comandante. Segundo Elton, este tipo de ação é necessária também para identificar traficantes.
A diretora de políticas sobre droga, Izabela Barbosa de Carvalho Santos, explicou que a diretoria (que era da extinta Simdef, mas continua na mesma sede) somente estabelece as políticas e faz a gestão. “A droga é um tema multifatorial, vai desde a vulnerabilidade social, passa pelo aspecto da doença, saúde e abrange também a questão criminal. A execução é por parte dos vários órgãos, como a Saúde e assistentes sociais da Semas”, disse. A Secretaria de Assistência Social, entretanto, assim como já foi apontado, sustenta que não realiza nenhum trabalho específico na área da luta contra as drogas.
Um programa de prevenção, os “Anjos da guarda”, também foi instituído pela Diretoria de Políticas sobre Droga. Algo pequeno, se mensurado o tamanho do problema. Com somente 12 guardas civis capacitados para falarem sobre o problema, eles vão às escolas mostrar a crianças e adolescentes os malefícios das drogas – mas vão somente se forem chamados. Possuem, no entanto, uma agenda anual junto a escolas do município que, segundo o órgão, é cumprido desde julho de 2013.
A delegada e ex-secretária de defesa social, Adriana Accorsi, explica que a Semdef é uma secretaria nova, que no ano passado ainda estava sendo estruturada. Foi Adriana que assinou o contrato com o governo federal para o programa “Crack, é possível vencer”. De acordo com ela, ainda assim os programas existentes não são suficientes. “Tem que ser feito muito mais, com políticas de longo prazo. Este é um problema que não resolve de um dia para o outro”, afirmou.
Caps e Credeqs
O município de Goiânia possui quatro Centros de Atenção Psicossocial álcool e outras drogas (CAPSad) cujo objetivo é o atendimento especializado para pessoas com problemas com drogas, sendo o último a ser inaugurado o CAPSad Girassol, em março deste ano. Segundo a Secretaria Municipal de Saúde, no total são 100 leitos distribuídos entre os centros, sendo que há a previsão de abertura de 24 leitos nos CAPSad III, em fase de implantação.
Já quanto ao governo de Goiás, que ainda não possui nenhum centro próprio de internação, anunciou que irá inaugurar cinco Centros de Referência e Excelência em Dependência Química (Credeq), sendo que o de Aparecida está previsto a entrega no segundo semestre deste ano. No último dia 17 o governador Marconi Perillo (PSDB) assinou o contrato de gestão com a Associação Comunidade Luz da Vida.
Mitos que devem ser superados
“O crack é a droga mais devastadora e com maior número de usuários.” “O crack é a droga que mais deixa uma pessoa violenta.” “É a droga do século.” “A pessoa vicia após usar uma vez.”
Essas e outras afirmações são ouvidas e difundidas especialmente depois que o problema ficou ainda mais evidente. Entretanto, o médico Airton Ferreira dos Santos Filho, especializado na área da psiquiatria afirma que se fosse colocar uma droga como “vilã” colocaria o álcool. “O álcool tem o maior impacto negativo no mundo, sendo a porcentagem de dependentes é muito maior do que os dependentes de crack. As pessoa tem fácil acesso, baixo custo, e além disso é legalizada”, disse Airton.
O crack e cocaína são feitas pelo mesmo material, sendo que a mudança, segundo Airton, é na forma em que é usada, quando o crack é fumado e a cocaína é cheirada. O psiquiatra explica que a absorção do crack é diferente, e por isso tem o potencial de causar dependência maior que a cocaína.
E ao contrário do que muitos dizem, o vício não é adquirido em uma única tragada. “Para desenvolver a dependência uma pessoa deve fazer o uso repetido, sendo que a quantidade de vezes varia de pessoa para pessoa.” O fato da droga ser fumada tem o poder de dependência maior, já que a reação é mais rápida, o pico mais agudo (os efeitos são sentidos entre 7 a 10 segundos após consumir a droga) e passageiro.
E a alucinação e euforia que uma pedrinha pode causar prende aquele que passa a depender deste sentimento. Morando nas ruas, o bem-estar causado pelo crack é tudo que uma pessoa em condições precárias pede. O psiquiatra Airton explica que o baixo custo da droga é um dos motivos de sua rápida disseminação. E, aliada a isso, várias questões sociais. “Condições precárias de educação, moradia, falta de trabalho, contribuem para a maior expansão do vício em drogas.
Quanto à agressividade, Airton explica que não há relação alguma com o uso excessivo da droga. “Não se pode encarar essa como uma característica do usuário de crack”, explicou. De acordo com ele, o que mais está associado à violência é o comércio ilegal, sendo que o usuário às vezes faz alguns delitos para sustentar o vício. “O uso em si pode aumentar a impulsividade da pessoa, assim como o álcool. Se for para falar de agressividade, eu falaria da bebida alcóolica, quando vemos que vários homicídios tem o uso do álcool envolvido.”
A dependência de droga é uma condição crônica, complexa, que assim como não foi instalada da noite para o dia, não é curada rapidamente. O psiquiatra afirma que, assim como a cocaína e o álcool, a dependência no crack, uma vez instalada, o tratamento é difícil. “A chance de recuperar não são altas, assim como doenças crônicas. O índice de recaída é grande e é um trabalho difícil e de longo prazo”, disse Airton, frisando que o trabalho é complicado, mas não impossível, completando: “Por isso a importância de trabalhar com a prevenção”, afirmou.