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Cora Coralina escutou uma leve batida. Levantou descalça, abriu a janela devagarinho. Alguém bateu? Era a lua querendo entrar para reverenciá-la. A luz nunca ficou fora desde que ela nasceu, a menos de 3 meses do golpe de 1889, a 20 de agosto. Veio escorrendo num veio longínquo de cascalho, pedra preciosa no rio Vermelho, ela falando em versos como os utilizados aqui, o rio falando em murmúrios.

Qual pedra? Ouro. Qual ouro? O que fundou sua cidade e nosso Estado. O “ouro que não sofre as oscilações do mercado”, como Carlos Drummond de Andrade definiu a poesia feita pela velha mais bonita de Goiás, em correta autodefinição. Que namorava as estrelas, se dava bem com o rio e tinha segredo com os morros.

Morreu quando? Nunca. Não morre aquela que deixou na terra a melodia de seu cântico na música de seus versos. Em 10 de abril de 1985, aos 95 anos, virou obra de arte, busto de bronze e namoradeira esculpida na janela da Casa Velha, que seu trisavô comprou há cerca de 200 anos. Daquele pedestal, atravessa os dias a observar quem atravessa a ponte.

Virou o século escrevendo, logo começou a publicar, cedo se casou com um advogado antecessor meu na Secretaria de Segurança do Estado, ele no início e eu no fim do século 20. Nas 5 décadas de viuvez, foi de vendedora de livros a autora de best-sellers –para os padrões de tiragem de poesia nacional. Depois, lançou a rede naquela lua que lhe batia à janela, andava catando as estrelas e recolhia experiências que viraram histórias.

Em 1980, um colégio meu vizinho em Goiânia, o Gonçalves Ledo, realizou gincana com seus secundaristas, como eram chamados os estudantes do que hoje é o ensino médio. Um grupo foi à Cidade de Goiás e a convidou para representar o 1º ano técnico em administração. Topou. Sacolejaram nos 260 km de estrada ruim, ida e volta do interior à capital, 7 em um Fusca. Ainda assim, a já nonagenária poeta chegou alegre, declamou com sua maravilhosa e inconfundível voz e deu a vitória ao 1º A, eternizando-se na mente daquela moçada 4 anos antes de entrar na Academia Goiana de Letras.

Gonçalves Ledo se notabilizou como líder maçom, cujo dia é esta 4ª feira, 20 de agosto, em que além de Cora nasceram o também escritor Décio Pignatari e o vocalista do Led Zeppelin, Robert Plant. Entre os mortos, o revolucionário comunista Leon Trotsky e 3 papas, João 14, Pio 7 e Pio 10, que dá nome à igreja em cujo terreno a gente jogava futebol no mesmo bairro do colégio Gonçalves Ledo.

Essas coincidências foram lembradas pela fonte que me passou a informação de Cora no Fusca com os estudantes –teria sido testemunha ocular, de dentro do carro. Já estava me convencendo dessas tramas do zodíaco quando fui ao Google, aquele buscador antigo, do Ciclo do Ouro, antes de Chat GPT-5 e assemelhados. Eita que o calendário demole a astrologia.

O 45º e 47º presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, é de 14 de junho, o mesmo do argentino Ernesto Guevara, o Che, protagonista da Revolução Cubana. Foi também o dia em que morreu Afonso Pena, 6º presidente do Brasil. O que os liga? Só o desmentido a qualquer arremedo de credibilidade que possa existir nessa bobagem.

Se algum elo existir, forçando bastante a barra, é que Cora morou em Penápolis, cidade paulista batizada em homenagem a Afonso Pena, que dá nome também à mineira Conselheiro Pena. Ali, fazia e vendia linguiça caseira e banha de porco, delícias típicas da cozinha goiana que deveriam ser inigualáveis saindo do engenho e arte de nossa poeta doceira.

Infelizmente, Cora não é nome de cidade em nosso Estado. Há um roteiro turístico, o Caminho de Cora, que começa e termina em belíssimos municípios históricos, Pirenópolis e Goiás.

Talentosa e bastante à frente de seu tempo, que é todo o tempo do planeta, Cora estaria se lixando para isso. Curiosa como sempre, ficaria ligada na inteligência artificial, pois faz sucesso na internet muito mais que nos tempos em que… que quaisquer tempos, já que todos são seus.

Ah, a fonte da história do Fusca me contou outra, ocorrida em outro veículo, com outro final. Alguns domingos depois, um daqueles estudantes voltou à Casa Velha da Ponte e entabulou conversa com a poeta. O assunto saiu da literatura quando ele a convidou para andarem de moto pelas ruas de paralelepípedos do lugar que é Patrimônio Cultural Mundial. Ela topou. Já se encaminhavam para a proeza quando a família interveio. Aí já seria loucura demais, até porque havia detalhes que os parentes da escritora desconheciam –o rapaz era menor de idade e não havia capacete para qualquer um dos 2.

Demóstenes Torres, 64 anos, é ex-presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, procurador de Justiça aposentado e advogado.

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