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Quem passa pela Avenida Princesa Isabel, no bairro da Barra, em Salvador, é surpreendido por um sapato exposto na calçada, acompanhado de uma placa com uma mensagem intrigante: “Seu Waldemar, sapateiro de sucesso internacional, por muitos anos exerceu suas atividades neste endereço, confeccionando sapatos até para o papa”.

O objeto simbólico — um sapato de jazz — não está ali por acaso. Trata-se de uma homenagem ao lendário Valdemar Santos Almeida, hoje com 83 anos, que ali manteve por décadas a tradicional loja Valdemar Calçados, reconhecida por atender à elite baiana e até a celebridades nacionais e internacionais.

A lembrança foi eternizada na fachada do Edifício Jazz, construído em 2020 no mesmo número 653 da Avenida Princesa Isabel, onde a loja funcionou em seu auge. A homenagem partiu das construtoras Civil e Barcino Esteve, responsáveis pelo prédio. O nome do edifício e o sapato na calçada são um tributo à arte de um sapateiro que marcou época.

Um mestre da sapataria

Valdemar iniciou sua trajetória em 1955, aos 12 anos, após chegar de Ubaíra para trabalhar na fábrica do irmão, na capital baiana. Com menos de dois meses, já era apontado como mais talentoso que os demais operários — “Diziam que era dom”, relembra. A partir dali, construiu uma marca respeitada pela qualidade, design exclusivo e atendimento personalizado.

Ao longo das décadas, produziu calçados para nomes como Papa João Paulo II, Chacrinha, Cid Moreira, Roberto Carlos, Jerry Adriani e Wanderléa, além de famílias tradicionais da Bahia, como a de Tales de Azevedo, e primeiras-damas do Estado. Os produtos iam desde tamancos de madeira a sapatos ortopédicos sob medida, saltos em jacarandá e sandálias para misses.

“Se fizer aquele tamanco de novo, vai ser o mesmo sucesso. Só dava ele nas festas de Salvador”, orgulha-se Valdemar, que guarda até hoje uma carta oficial do Vaticano com agradecimentos pela entrega de um par de sapatos ao papa, durante sua visita a Salvador, em 1980.

Nova fase

Aos poucos, a vida mudou. Os mais de 80 funcionários que mantinha no auge deram lugar a uma estrutura reduzida. A loja hoje funciona na Rua Professor Augusto Machado, na Pituba, sob comando de Cláudio Ribeiro, de 45 anos, aprendiz de Valdemar desde os 11.

“Cláudio faz um acabamento melhor que o meu. Isso aqui é coisa boa, não é qualquer um que faz uma sandália dessa”, elogia o mestre sapateiro, exibindo com orgulho o próprio calçado da marca durante entrevista na sede da Accabem, lar de idosos onde vive atualmente, em Lauro de Freitas.

Valdemar se mudou para a instituição há cerca de três anos, após problemas de saúde. Sofreu uma queda e foi diagnosticado com Parkinson, mas, com tratamento adequado, recuperou boa parte da mobilidade. Hoje, participa de atividades sociais, terapias e até jogos de bingo na instituição.

Memória viva

Mesmo aposentado, Valdemar segue sendo o rosto da marca. O sobrinho Vicente, que o visita regularmente, conta que o tio continua apaixonado pela profissão. “Ele cansou da lida, mas não da paixão pelo ofício”, diz.

O sapateiro guarda, com carinho, uma sacola cheia de recortes de jornais, fotos com celebridades, imagens dos sapatos que produziu e a carta do Vaticano. São mais de sete décadas de memórias que contam não apenas a história de um homem, mas de um pedaço da Salvador elegante, criativa e artesanal de outrora.

“Reconhecem em qualquer lugar”, diz Valdemar sobre os antigos clientes. E reconhecem mesmo. Em um dos eventos da Accabem, uma senhora se emocionou ao encontrá-lo. “Minha mãe só fazia sapato com ele”, contou a filha.

Com a bênção do Papa e o respeito de gerações de baianos, Valdemar segue sendo símbolo de um ofício cada vez mais raro: o de criar, com as próprias mãos, sapatos que andaram por palcos, passarelas, palácios — e, agora, pela eternidade.