Canetas emagrecedoras podem te deixar cego? Especialista explica benefícios e riscos do uso
26 novembro 2025 às 13h00

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Em meio a uma febre global por soluções rápidas para a perda de peso, as chamadas “canetas emagrecedoras” conquistaram o status de fenômeno. No entanto, a popularização explosiva desses medicamentos, originalmente desenvolvidos para o diabetes tipo 2, preocupa autoridades sanitárias e a comunidade médica.
A equipe do Jornal Opção percorreu os detalhes dos benefícios reais, nos perigos subestimados e na complexa teia de responsabilidade que cerca esses fármacos, com base no alerta de um dos principais endocrinologistas do país, o chefe do Serviço de Endocrinologia do Hospital Estadual Alberto Rassi (HGG), Nelson Rassi.
A preocupação aumentou após a Anvisa solicitar a inclusão, nas bulas de medicamentos que contêm semaglutida, como Ozempic, Wegovy e Rybelsus, da reação adversa “muito rara” chamada neuropatia óptica isquêmica anterior não arterítica (NOIA), condição que pode levar à perda repentina da visão.

Além disso, um estudo conduzido por pesquisadores da Harvard Medical School, por meio do hospital especializado Mass Eye and Ear, publicado em 2024 na JAMA Ophthalmology, reforçou a discussão ao analisar 16.827 pacientes ao longo de seis anos. O levantamento incluiu 710 pacientes com diabetes tipo 2 e 979 indivíduos com sobrepeso ou obesidade, destacando um aumento significativo no risco de NOIA entre usuários da semaglutida.
O estudo observou que, ao longo de três anos, pacientes diabéticos que utilizam semaglutida apresentaram risco quatro vezes maior de desenvolver a condição, enquanto pacientes com sobrepeso ou obesidade tiveram risco sete vezes maior.
Fora das fronteiras nacionais, o caso da enfermeira Susan McGowan, de 58 anos, moradora de North Lanarkshire, na Escócia, aumentou a repercussão sobre os riscos. Ela morreu após aplicar duas doses de tirzepatida, princípio ativo do Mounjaro, aprovado pelo sistema público britânico (NHS). A ligação da morte ao medicamento ainda é investigada, mas o episódio gerou preocupação global sobre monitoramento, automedicação e controle de qualidade.
A visão de um especialista
Para o especialista em endocrinologia Nelson Rassi, é indispensável estabelecer um diálogo que não demonize a medicação, mas que enfoque a imprescindível corretagem médica. “Elas representam um grande avanço na medicina, em particular na área do diabetes e da obesidade”, afirma Rassi. Ele expande o leque de benefícios: “E, mais recentemente, têm também mostrado resultados positivos em doença renal crônica, em doenças cardiovasculares e doenças hepáticas. E, frequentemente, nesse caso, são associadas à diabetes e obesidade”.
O médico explica que o impacto positivo vai além da balança ou do controle glicêmico. “Esse benefício das chamadas canetas emagrecedoras, elas atingem a obesidade, o diabetes e as comorbidades das outras doenças que, frequentemente, vêm com a obesidade e com o diabetes. Ou seja, doença hepática, fígado, doença renal, rins, doença cerebrovascular, encéfalo e doença cardíaca”.
No entanto, o doutor Rassi traça uma linha que separa o uso salutar do perigoso. “Antes de falar sobre efeitos colaterais, é importante mencionar que ela deve ser bem indicada”. Ele defende que a prescrição deve ser feita por um profissional especializado, preferencialmente um endocrinologista, ou, em casos específicos, por cardiologistas, hepatologistas ou nefrologistas. “Uma vez que ela é bem indicada… esses efeitos colaterais podem ser evitados ou minimizados”.
Entenda quais podem ser os efeitos colaterais
O médico detalha que os efeitos adversos mais frequentes são gastrointestinais, afetando até um quarto dos usuários. “Os principais são náusea, mal-estar gástrico, algumas vezes vômito, constipação intestinal, às vezes diarreia”. Segundo ele, esses sintomas tendem a aparecer nas primeiras semanas e a diminuir com o tempo, especialmente se o médico realizar uma “titulação de dose”, um ajuste cuidadoso e gradual da medicação.
Quando o assunto são os efeitos mais graves, Rassi adota um tom mais sóbrio. Sobre a pancreatite, ele é cauteloso, dizendo que “é questionável se ele existe, existem alguns relatos de casos, mas são pacientes que têm a predisposição, algum tipo de predisposição a desenvolver a pancreatite”. Em sua experiência clínica, a ocorrência não parece ser mais frequente do que o esperado pelo acaso.
E então chegamos ao risco que está percorrendo temores pela mídia e em alguns pacientes: a perda de visão. “Existe uma enfermidade que é denominada na oftalmologia de noia, que é uma isquemia óptica, uma neurite. A neurite é uma inflamação do nervo óptico, o nome é noia. É uma doença rara, extremamente grave, que pode levar à cegueira”, explica o médico.
Ele confirma a associação com a semaglutida, mas ressalta sua raridade. “Entretanto, é uma incidência extremamente rara, que não inviabiliza o uso do medicamento quando ele é indicado, devido à sua raridade”. A chave, aqui, está na predisposição. “São pessoas que já têm uma doença ocular prévia, que predispõe, e o medicamento, assim, raramente, é uma incidência muito, muito rara”.
A grande questão para os pacientes que enfrentam esse drama é: a cegueira é permanente? A resposta do médico Rassi é direta: “O NOIA, muitas vezes, ele causa uma cegueira irreversível, sim”. Em contrapartida, condições como a pancreatite geralmente cessam com a interrupção do fármaco. “Uma vez que você interrompe o medicamento, esse processo desaparece”.
O doutor faz uma ressalva importante: “Assim como os benefícios também desaparecem, né? Uma vez que você tira o medicamento, muitas vezes, o diabetes volta a subir, a pessoa volta a engordar”.
Em sua prática em Goiânia, Rassi relata que os casos graves são uma exceção. “Isso é muito raro. O que você vê muito é a náusea, o vômito, a diarreia”. Ele reforça que episódios mais sérios são tão incomuns que muitas vezes se tornam casos para a literatura médica.
O mercado de falsificações das “canetas emagrecedoras”
Um dos aspectos dessa epidemia farmacológica é o florescimento de um mercado paralelo, no qual o Nelson Rassi faz uma analogia ao descrever a venda ilegal dessas canetas. “É como se fosse quase que um tráfico de droga. Não é muito diferente do tráfico de drogas. Você está vendendo e comprando um medicamento de maneira ilegal”.
As canetas falsificadas representam uma dupla ameaça. “Você tem os dois riscos. O risco de não ter o efeito benéfico da medicação e o risco de ter o efeito colateral de um produto que, na verdade, não é aquele que você está querendo”. O médico adverte que, nesse cenário, “o barato fica caro”, unindo prejuízo financeiro a danos potencialmente severos à saúde.
Mas quem busca essas vias alternativas? “São pacientes que, na maioria das vezes, não tem nem indicação do uso do medicamento. São pacientes que, já que têm um peso normal e querem emagrecer mais do que precisam, com função puramente estética, sem qualquer indicação médica”, relata Rassi. A motivação é a previsível dificuldade de obter uma prescrição ética. “Eles sabem que, se eles forem no consultório de um médico, de um profissional ético, eles não vão receber o medicamento. Então, eles vão para essas vias”.
A preocupação do médico, no entanto, transcende o indivíduo. “Nós temos que zelar pelas pessoas que nos procuram individualmente, mas nós temos que pensar também na coletividade”. Para ele, o combate a essa prática requer um esforço multifacetado.
“O ideal, como nós estamos fazendo agora, é alertar. Fazer um alerta através das mídias e utilizar as entidades, as sociedades… alertar o Ministério da Saúde, as Secretarias de Saúde, dessas irregularidades e do perigo que esses medicamentos colocam para a saúde pública”. Ele conclui que a situação “acaba sendo até um caso de polícia ao invés de ser um caso de saúde. Ou os dois, saúde e crime”.
Como se proteger?
Diante de um cenário repleto de armadilhas, como o paciente pode se garantir? O endocrinologista oferece um guia prático para navegar com segurança:
– Fontes idôneas: “Comprar nas empresas idôneas, nas farmácias… Evitar comprar canetas pelo WhatsApp, pelo Instagram, por Facebook, ou por outras maneiras. Sempre comprar de entidades, de empresas conhecidas que têm registro na Anvisa”.
– Desconfiar de preços anômalos: “Desconfie do barato ou do muito caro. O muito caro muitas vezes é desonesto… O barato é no sentido de volume, vender muito para ganhar muito dinheiro através de um medicamento falsificado a preços baixos”.
– Acesso legítimo: “Não tem nenhum motivo de você não comprar o remédio na farmácia. Ele está disponível nas farmácias, praticamente em toda a cidade. E por que você vai comprar de uma fonte que você não conhece?”.
– Questione a procedência: O doutor alerta sobre os riscos de produtos trazidos de forma irregular do exterior: “Alguém que veio lá do exterior cheio de canetas na mala que você nem sabe de onde ela chegou, como é que ela veio conservada. Não compre dessa forma, é um risco”.
“Em resumo, as canetas emagrecedoras representadas pelo [Mounjaro], pelo [Ozempic], pelo [Wegovy], eles indubitavelmente trouxeram um avanço muito importante na medicina… Mas como todo medicamento, ele tem que ser manipulado, ele tem que ser prescrito por pessoas competentes, pessoas especializadas na área”, ressalta o Nelson Rassi.
A “má fama” que por vezes ronda esses medicamentos, em sua avaliação, é um reflexo distorcido de sua má utilização. “Caso contrário, você não terá efeitos benéficos e poderá ter, sim, os efeitos maléficos. Mas isso, o mau uso do medicamento, muitas vezes faz com que ele receba uma má fama, que ele não merece. E, na verdade, quem merece a má fama é quem prescreveu o medicamento de maneira errada”.
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