Com alta no número de novos casos de Covid-19, em meio à linhagens mutantes do vírus e próximo da lotação dos leitos de UTI, resistência à Lei Seca é preocupante

Médico em atendimento a paciente com Covid-19 | Foto: Tatiana Fortes

O Brasil atravessa a anunciada segunda onda da pandemia de Covid-19. Em outubro de 2020, quando o número de novos casos diários era apenas metade dos 51,5 mil que registramos atualmente (média móvel desta semana epidemiológica), cientistas já registravam a reversão de tendência de queda na taxa de infecção do vírus. Embora grandes eventos como a campanha eleitoral e as festas de fim de ano sem dúvidas tenham auxiliado o vírus a se propagar, a razão por trás da alta no número de casos tem diversos outros fatores.

Agrava o cenário o fato de que diversos estados tiveram redução no número de leitos após fechamento de hospitais de campanha – Goiás incluído, com a perda de 74 leitos de UTI após fechamento do Hospital de Campanha de Águas Lindas por decisão do governo federal. Atualmente, a taxa de ocupação dos leitos de UTI para adultos está em 83% e dos leitos de UTI destinados exclusivamente à Covid-19 em 86%.

Houve também, no início deste mês, o surgimento de uma nova linhagem do Sars-CoV-2 no estado do Amazonas. Um estudo brasileiro fez a análise genômica de amostras de coronavírus da nova cepa (conhecida como P.1), e a relacionou com a variante B.1.1.7, detectada no Reino Unido. Diversos estudos sugeriram que estas linhagens do vírus são mais transmissíveis e podem agravar a pandemia de Covid-19 devido ao seu potencial superior de se espalhar pela população.

Combate à pandemia

professora titular de imunologia da Universidade Federal de Goiás, Ana Paula Junqueira Kipnis

Nesta terça-feira, 26, o governador Ronaldo Caiado (DEM) assinou decreto que restringe o comércio e o consumo de bebidas alcoólicas em locais de uso público ou coletivo, entre 22h e 6h em todo território goiano. A professora titular de imunologia da Universidade Federal de Goiás, Ana Paula Junqueira Kipnis, classificou a medida (que tem sido chamada de Lei Seca) como tímida, mas afirmou que pode ajudar na contenção da doença.

Ana Paula Junqueira Kipnis afirmou: “Qualquer medida adotada, mesmo que não seja totalmente efetiva, é bem-vinda. Se a partir das 22h as pessoas pararem de se aglomer, já é algo. Imagina se Caiado sugerisse um lockdown?! Seria linchado. Então é preciso começar de algum lugar e essa medida já é um começo.”

Entretanto, as medidas de combate à pandemia não foram tão prontamente aceitas pela população quanto a cientista gostaria. Em entrevista ao Jornal Opção, Newton Pereira, presidente do Sindicato dos Bares e Restaurantes do Município de Goiânia (SindiBares) falou em “não cumprimento” da lei seca. 

“Bares e restaurantes não são causadores do agravamento da pandemia de Covid-19”, afirmou Newton Pereira | Foto: Reprodução / SindiBares Goiânia

É compreensível. Pesquisas revelam o esgotamento físico e mental da população em geral, de forma que é difícil avaliar quanto as medidas para a contenção da Covid-19 continuam em vigor. A realidade socioeconômica também mudou desde a primeira onda da pandemia, quando o auxílio emergencial garantia aos trabalhadores do ramo alguma segurança financeira e a possibilidade da suspensão de contratos garantia aos empresários do setor condições de passar meses com as portas fechadas. 

Porém, é necessário pontuar que a justificativa oferecida por Newton Pereira para o funcionamento de bares, restaurantes e eventos não está cientificamente correta. “Bares e restaurantes não são causadores do agravamento da pandemia de Covid-19”, afirmou Newton Pereira nesta segunda-feira, 25. “No dia 19 de julho o setor foi aberto e este momento coincide com a queda da curva de contaminação. 

Vitor Mori, doutor em engenharia biomédica que atua no Observatório Covid-19 BR, afirma que, ao contrário do que se pensou no começo da pandemia, o caminho mais prevalente da transmissão da Covid-19 não se dá por meio de superfícies contaminadas. Ao invés disso, o cientista reforça a necessidade do uso de máscara e da ventilação adequada de ambientes para evitar ‘eventos de super espalhamento’ – que são ocasiões em que uma pessoa contaminada infecta diversas outras. “Esses eventos estão muito ligados à transmissão por aerossóis”, afirma. 

Vitor Mori faz a analogia entre os aerossóis emitidos quando um infectado pela Sars-CoV-2 fala e a fumaça do cigarro. “Em ambientes fechados, a fumaça do cigarro se concentra e fica impregnada no cabelo e roupas das pessoas. Mas em locais ventilados ou ao ar livre, é mais difícil sentir o cheiro da fumaça de cigarro”, afirmou Vitor Mori em webinar promovido pelo Fórum de Reportagem sobre a Crise Global de Saúde, uma iniciativa do Centro Internacional para Jornalistas (ICFJ). Podemos afirmar, portanto, que bares e restaurantes são exatamente o ambiente onde pode ocorrer a transmissão do Sars-CoV-2.

Cepas mutantes

“Variantes mutantes são preocupantes o suficiente para fazer com que outros países fechem suas portas para nós”, afirma cientista Eduardo Flores | Foto: Reprodução / Acervo Pessoal

Eduardo Furtado Flores é doutor em Virologia pela Universidade de Nebraska, Estados Unidos, e professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul. O pesquisador afirma que não se sabe se a variante de Manaus é responsável pelo aumento no número de casos de Covid-19 em todo o Brasil. A cepa P.1 já foi detectada em 6 estados, mas possivelmente existe em todo o país, inclusive Goiás, afirma Eduardo Flores. Entretanto, o sistema de vigilância brasileiro é precário, e o monitoramento da dispersão das cepas do vírus é feito em sua maior parte por pesquisadores autônomos.

Profissionais que atuam na linha de frente contra a COVID-19 em Manaus relataram sua percepção de que, além de ser mais transmissível, essa variante também parece ser mais letal, especialmente em pessoas jovens. Embora esta seja uma possibilidade, Eduardo Furtado Flores ressalta que não há estudos científicos publicados que comprovem essa impressão empírica. 

Sobre as medidas de contenção às novas linhagens do coronavírus, Furtado Flores afirma: “Variantes mutantes são preocupantes o suficiente para fazer com que outros países fechem suas portas para nós. O Reino Unido e Portugal atualmente não aceitam brasileiros. A restrição da movimentação de pessoas é uma medida cautelosa e adequada para limitar a entrada de uma doença potencialmente mais grave em locais onde o sistema de saúde já colapsou. É muito difícil impedir completamente que o vírus circule, mas podemos limitar”. 

Outra preocupação é descobrir se essas mutações têm o potencial para driblar a imunização gerada pelas vacinas ou por infecções anteriores. Todas as mutações citadas modificam a forma como o vírus expressa a proteína da espícula (proteína S, ou Spike). Este é o alvo dos anticorpos produzidos pela vacina, então há o temor de que os anticorpos da pessoa vacinada possam não reconhecer o vírus. “Mas até o momento, não há nenhuma indicação de que as vacinas não serão efetivas contra as variantes – é possível, mas até o presente momento não existem evidências”, conclui Eduardo Flores.