Após interdição do Niso Prego, Prefeitura de Goiânia destina 188 mil para abrigo de igreja evangélica
10 maio 2024 às 17h52
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Após interdição do Residencial Professor Niso Prego, único abrigo público da Capital, a Prefeitura de Goiânia está destinando verba pública para o abrigo Eunice Weaver, da igreja evangélica Videira. A reportagem questionou a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Humano e Social (Sedhs) qual o valor mensal do repasse. A pasta informou que, conforme a Ação Civil Pública de Obrigação de Fazer com Tutela Provisória de Urgência ajuizada pelo Ministério Público de Goiás (MP-GO), o valor pago por criança é de R$ 4.703,48.
O vereador Fabrício Rosa (PT) visitou os dois abrigos e acompanhou o processo de transição. “Eu não tenho nada contra as igrejas, eu acho que elas podem colaborar, mas não é possível que uma cidade do tamanho de Goiânia não tenha um abrigo do poder público. O prefeito precariza o Niso Prego, não tem recursos para o Niso Prego e, de repente, ele paga 188 mil reais por mês para a igreja”, denuncia Fabrício Rosa.
Em resposta ao Jornal Opção, o Ministério Público informou que a escolha do local do abrigo provisório se deu por ordem judicial, expedida pelo juízo da Infância e Juventude. Na ação, o MP requereu que o Município promova a reforma e adequação da entidade, conforme laudo elaborado pela equipe técnica do Juizado. O abrigo Eunice Weaver existe desde 1941, mas foi reformado e inaugurado pela Igreja Videira em 2022.
Atualmente, o espaço é administrado pelo pastor Luiz Rigonato. A reportagem entrou em contato com o pastor, mas não obteve retorno. Procurado, o pastor Guilherme Rigonato respondeu às mensagens e se mostrou aberto a mostrar os serviços sociais da Igreja Videira, mas informou que são muitos pastores e diferentes frentes de atuação na Casa de Acolhimento. Por isso, pediu um tempo maior para não dar “nenhuma informação cruzada”.
A Ação Civil Pública foi proposta pelo Ministério Público de Goiás e aceita pela juíza Maria Socorro de Sousa Afonso da Silva, do Juizado da Infância e Juventude da comarca de Goiânia do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJ-GO). O pedido inicial de interdição e transferência das crianças é pelo período de quatro meses, que de acordo com a decisão, é o tempo necessário para que a Sedhs possa reestruturar a equipe responsável pelo cuidado das crianças e proceder com a adequação da sua infraestrutura.
Leda da Silva, coordenadora do Residencial Professor Niso Prego, explicou que o local está sendo reestruturado e deve voltar ao funcionamento no fim de junho. “Como o período estipulado era de quatro meses e já se passaram dois, temos até o fim de junho para concluir a reforma”, afirma Leda. O abrigo foi interditado no início de março e, desde então, as crianças estão no abrigo da igreja.
Fabrício Rosa esteve no abrigo da Igreja Videira e disse que o local está em boas condições, mas questionou a falta de profissionais capacitados. “Fiz vários questionamentos e mandei alguns ofícios, mas não tive respostas ainda. Os pastores não estavam, mas fui muito bem atendido pelos trabalhadores que estavam lá. Percebi que é um lugar lindo e higiênico. Mas a gente quer saber se lá tem médicos, psicólogos, educadores físicos e se, de fato, existe um tratamento digno para as crianças e não somente uma igreja que vai cristianizá-las”, questiona.
A reportagem ouviu servidores do Niso Prego e pessoas envolvidas na transição sob a condição de anonimato. “Violência institucional”, foi como uma servidora do abrigo descreveu a transição das crianças para o abrigo particular.
Como foi a transferência das crianças
“As mudanças foram extremamente difíceis para nós. A transferência das crianças foi anunciada de forma abrupta, sem aviso prévio adequado, deixando-nos apenas cinco dias para organizar toda a documentação necessária. Foi um momento doloroso, especialmente para as crianças mais velhas, que já tinham fortes vínculos e não compreendiam o que estava acontecendo. Houve muitas lágrimas e confusão”, disse uma servidora que acompanhou todo o processo.
Para ela, a transferência das crianças foi uma forma de “violência institucional” por parte da Infância e Juventude e do Ministério Público. Segundo relato de todos os envolvidos, a mudança foi drástica e não teve o devido preparo. A situação do abrigo Niso Prego era complicada devido à falta de funcionários, o que se agravou com a transferência das crianças para uma instituição religiosa.
“Estranhamente, a instituição religiosa já tinha contratado funcionários e estava preparada para receber as crianças, mas a mudança nos pegou de surpresa”, relatou uma servidora. Pela forma como as coisas correram, ela acredita que a decisão foi articulada entre diversas partes, incluindo a Prefeitura e a Infância e Juventude. “Durante uma audiência pública, a Infância e Juventude tentou desqualificar o debate dos trabalhadores, argumentando que todos estavam devidamente documentados”, denuncia.
Já outro servidor ouvido informou que a transferência foi por motivação política. “Quais critérios foram utilizados para a escolha da Igreja Videira? Por que a igreja foi contratada? Os profissionais possuem a capacitação e qualificação que é cobrada dos conselheiros tutelares? Se o Niso Prego estava com a estrutura ruim, a solução é terceirizar?”, questionou.
Segundo ele, a transferência foi feita de forma truculenta e não houve uma transição. “As crianças que já vão pra lá [Niso Prego] abandonadas foram abandonadas novamente, sofreram uma nova vulnerabilidade pela forma com que isso aconteceu”, afirmou o servidor. Ele explica que visitou as crianças e a maioria delas pede para voltar ao abrigo onde estavam antes.
Apesar do espaço apresentar algumas deficiências físicas, os servidores que trabalhavam no Niso Prego relataram a prestação de um serviço de excelência. Após a interdição, os servidores do Residencial Professor Niso Prego começaram a ser remanejados para outras unidades da Sedhs.
“O que precisava era somente readequar a instituição em relação ao quadro de servidores e algumas questões estruturais que estávamos precisando. O mais interessante é que o prefeito não tinha dinheiro para investir no Niso Prego, porque ele sobrevivia de doação. O único investimento dele era em RH, internet, água e luz, mas agora está destinando verba para a igreja. Eu te pergunto por que isso não foi investido antes no abrigo público?”, questionou a funcionária.
Para a decisão, a juíza Maria Socorro apontou que as medidas implementadas pela pasta — contratação de empresa para serviços de limpeza, higienização, conservação, manutenção, asseio, cozinha, reparos e de motorista — são “demoradas e insuficientes para sanar toas as carências materiais, estruturais e de recurso humano no Residencial Niso Prego, onde carecem há tempos, até mesmo os serviços básicos de higiene e de alimentação por falta de profissionais para tanto.”
As obras de reforma estrutural e manutenção na instituição já estão em processo de finalização, de acordo com a Prefeitura de Goiânia. “Toda a ação faz parte de um projeto de reestruturação da unidade a fim de promover o bem-estar e segurança das crianças assistidas, dentro do prazo de quatro meses estipulado, conforme decisão judicial”, explicou a Sedhs. A pasta informou que os servidores que atuam na unidade participam de cursos de capacitação e formação com o intuito de reorganizar e aprimorar o serviço prestado.
“O ponto crítico que atingiu um extremo ali foi a ausência de servidores. Os educadores que estavam lá, sob contrato, foram dispensados quando o contrato expirou e não foi renovado, sem que houvesse um chamamento equivalente para repor o número de funcionários que saíram. Isso desencadeou a crise”, explicou uma servidora do abrigo. O cerne da questão não era tanto a estrutura física, como pode ser visto pelas paredes bem conservadas, pinturas recentes e áreas externas bem cuidadas, mas sim a falta de uma equipe suficiente para atender todas as crianças.
Em relação às famílias e crianças envolvidas, muitas têm pais, mas que estão em situações de vulnerabilidade devido à pobreza, alcoolismo ou uso de drogas, o que leva à negligência no cuidado com os pequenos. Quando as crianças vão para o abrigo, os servidores relatam que fazem o possível para que elas permaneçam com os pais, mas muitas acabam retornando para o Conselho Tutelar. No caso dos bebês, muitos são entregues espontaneamente, orientadas pelo Juizado da Infância e Juventude, ou pelo Conselho Tutelar. A equipe de referência acompanhava de perto e orientava o Juizado por meio de relatórios, informando sobre o progresso das famílias e das crianças.
Antes da interdição da unidade, a secretaria realizou a contratação de uma empresa terceirizada para atividades de apoio em diversas áreas (serviços gerais, motoristas, cozinheiras, manutenção geral e outros), além da rotina já estabelecida de entrega de alimentos balanceados, leite em fórmula e fraldas. A Sedhs também tem viabilizado esforços junto às pastas responsáveis para a nomeação de novos servidores para atender a necessidade da instituição. Veja abaixo algumas fotos do Niso Prego.
O Residencial Professor Niso Prego é uma instituição que acolhe crianças e pré-adolescentes, com idades entre 0 e 12 anos, que são vítimas de abandono, maus-tratos e violência. Operando 24 horas por dia, o local tem capacidade para abrigar cerca de 20 crianças, mas já chegou a acolher quase 50, segundo relato dos funcionários. As crianças são encaminhadas à unidade através do Conselho Tutelar e do Juizado da Infância e Juventude. Uma equipe técnica formada por assistentes sociais, psicólogos, enfermeiras e pedagogos oferece acolhimento e cuidado às crianças, com o objetivo de reinseri-las na família ou em um lar adotivo.
O que diz a Prefeitura
O Jornal Opção ouviu Leda da Silva, coordenadora do Residencial Professor Niso Prego. Confira a entrevista abaixo na íntegra.
O fechamento foi muito questionado, especialmente pelos servidores que trabalhavam no local, que alegaram boa estrutura física e atendimento de excelência. Qual foi o motivo real da interdição?
As demandas estruturais eram no sentido de manutenção. Uma unidade que acolhe crianças necessita de manutenção quase que diariamente. Essas manutenções vinham sendo realizadas e esse não era um problema. A grande problemática é realmente o déficit de servidores, principalmente os cuidadores e educadores. O que culminou tudo é a questão do déficit dos servidores. A prefeitura terceirizou alguns serviços e, quando houve a interdição, já havia chegado pra nós uma quantidade de boa de servidores, o que contribuiu muito para o bom atendimento.
Ainda há necessidade de cuidadores e educadores, mas até onde eu tenho informações da Sedhs é que foi realizada uma solicitação com as outras pastas para estar encaminhando servidores para suprir esse déficit ainda atual na unidade.
Como que ficaram os profissionais? A Prefeitura disse ter remanejado todos, mas alguns relatam que não foram.
Praticamente todos os servidores, que até então estavam lotados aqui [Niso], foram remanejados. Foram remanejados pela Sedhs para outras unidades da secretaria até que a situação seja reorganizada, seja reestruturada para que eles possam retornar. Então eles foram colocados em outras unidades provisoriamente para depois haver o retorno. Em relação a servidores de outras pastas, que estavam lotados aqui também, informaram que há a solicitação junto às outras pastas para que as mesmas contribuam suprindo o déficit da instituição.
A Prefeitura teve participação na escolha do nome do abrigo provisório?
Até onde eu sei houve uma decisão judicial do Ministério Público que determinou a transferência das crianças e, junto com a decisão, também veio a indicação do local onde as crianças estão agora. A Prefeitura não teve escolha para onde mandar, inclusive a Prefeitura está com recurso justamente por isso, porque não foi a Prefeitura que decidiu, mas sim a determinação judicial.
Você visitou o novo abrigo? Sabe como essa equipe seria composta? Há uma equipe multiprofissional para cuidar das crianças?
O certo é estar operando dentro das diretrizes do SUAS (Sistema Único de Assistência Social),tendo uma equipe multiprofissional, uma equipe de referência que comporte assistente social, psicólogo, pedagogo e cuidador.
Quando o abrigo Niso Prego vai voltar à atividade?
O local está sendo reestruturado e deve voltar ao funcionamento no fim de junho. Como o período estipulado era de quatro meses e já se passaram dois, temos até o fim de junho para o fim da reforma.
O que diz o Ministério Público
Membros do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) acompanharam, no dia 27 de setembro de 2022, o trabalho de duas instituições de acolhimento de crianças e adolescentes em Goiânia, dentre elas o Serviço de Acolhimento Institucional Niso Prego, localizado no Setor Goiânia 2. Esse tipo vistoria acontece a cada seis meses nas 84 instituições de acolhimento existentes no Estado, como recomenda o próprio CNMP. São averiguadas tanto a estrutura física das unidades quanto a parte de documentação e os métodos de acolhimento.
“A organização e limpeza da casa continuam comprometidas, com desordem e sujeira espalhadas principalmente nos banheiros, quando questionada, a coordenadora argumentou que continua com deficits de servidores de limpeza, tendo apenas uma por dia responsável pela limpeza de todos os ambientes da instituição” disse um trecho da denúncia fornecida pelo MP. Posteriormente, a prefeitura contratou uma empresa terceirizada para agregar na equipe. “A disponibilização de servidores de outras unidades, a título de voluntariado e trocas por folgas, mostra-se prejudicial às crianças, uma vez que não possibilita a criação de vínculos com elas”, continuou o Ministério Público.
A unidade, que tinha capacidade para abrigar 20 crianças, comportava 28 no dia da visita. Com idades entre 0 e 12 anos, os pequenos ficam divididos em três alas. Numa delas, funcionava o berçário e, nas outras duas, crianças de 5 a 12 anos ficavam separadas por sexo. De acordo com a decisão do MP, os trabalhadores do Niso “não possuem experiência com crianças e alguns permanecem apenas metade do período de expediente”. Leia trecho da decisão abaixo.
Posteriormente, o TJO determina que a transferência das crianças acolhidas na instituição interditada deverá ser realizadas no prazo de cinco cinco dias, para a instituição Abrigo Eunice Weaver, com a intermediação da Equipe Técnica SEAI, “para que as coordenadoras de ambas as instituições de acolhimento possam compartilhar informações quanto a organização e o trato pedagógico dos atos”.
Posteriormente, a juiza Maria do Socorro indica o local do novo abrigo e a conta bancária na qual a Prefeitura deverá depositar os R$ 188.138,57 mensalmente.
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