Eleito deputado federal em 2022, Gustavo Gayer, do Partido Liberal, obteve 200,5 mil votos, sendo o segundo parlamentar mais votado do pleito — atrás apenas de Silvye Alves, do União Brasil, que obteve quase 255 mil votos. Amigo e aliado político do parlamentar, Fred Rodrigues, do PL, teve, no mesmo ano, 42,7 mil votos, sendo eleito deputado estadual em Goiás. Wilder Morais, do PL, foi eleito senador na mesma eleição, com 799 mil votos. Apesar de expressiva, a quantidade de votos de Gayer representa menos de 3% dos 7,2 milhões de habitantes de Goiás, assim como os 42,7 mil equivalem a 0,61% e os quase 800 mil votos de Wilder são iguais a menos de 12% da população goiana.

No entanto, o deputado federal, o estadual e o senador (que clamam para si o título de “bolsonarista”), cada um em sua arena parlamentar, parecem se comportar e legislar como se vivessem em um país composto pela quantidade exata não só de seu eleitorado, mas para uma parte dele aficionada pela posição ideológica dos parlamentares, e não para um universo de mais de 7 milhões de cidadãos que, apesar de nem todos terem votado neles, são afetados diretamente pela postura adotada no Congresso.

Projetos de Gustavo Gayer

Dos 13 projetos de lei nos quais Gustavo Gayer aparece como autor principal (excluindo-se as matérias em que o deputado é o coautor), ao menos metade é pautada em posturas ideológicas que ajudaram o então youtuber a viralizar conteúdo nas bolhas da extrema-direita do WhatsApp afora. Destaca-se: o problema não está em se adotar uma posição ideológica alinhada à de seus eleitores e ser fiel a ela, mas sim em transformar o processo legislativo e a tribuna de uma Casa de Leis em uma caixa de comentários de postagem de rede social, negligenciando questões relevantes para a sociedade.

Em agosto do ano passado, o Ministério Público de Goiás, em parceria com a Secretaria de Estado da Saúde (SES), lançava, em Piracanjuba, o projeto-piloto Integra Escola-Saúde para profissionais da educação e da saúde com foco na saúde mental de estudantes, uma iniciativa voltada para entender e aprender a identificar alunos em situação de sofrimento, como depressão e ansiedade, e organizar um fluxo de cuidado para o atendimento adequado. A ideia do projeto, inclusive, veio após ataques registrados em escolas do estado em 2022, em que três alunos ficaram feridos no colégio estadual de Santa Tereza de Goiás. O suspeito de cometer o ataque era um aluno de 13 anos (nos primeiros meses daquele mesmo ano, a polícia interceptou, pelo menos, 20 ameaças a escolas).

Diante dos números referentes à saúde mental de estudantes da rede pública, o projeto, claro, foi recebido com entusiasmo e até alívio por parte da comunidade escolar: uma pesquisa realizada pelo Datafolha, a pedido do Itaú Social, Fundação Lemann e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), divulgada em 2022, em que foram entrevistados 1.308 responsáveis e 1.869 alunos de instituições públicas de todo o Brasil, mostrou que cerca de 34% dos estudantes têm dificuldades para controlar as suas emoções, 24% dos jovens se sentem sobrecarregados e 18% estão tristes ou deprimidos.

Os dados ajudam a explicar e a propor soluções para problemas que vão desde baixo rendimento do estudante até evasão escolar e casos de violência, fenômenos que impactam diretamente no funcionamento não só no ensino das escolas, mas no desenvolvimento da sociedade como um todo. Mas no mesmo mês do lançamento do Integra Escola-Saúde, Gustavo Gayer, deputado federal com recursos nas mãos e poder de legislar, mesmo diante de uma gama de possibilidades para fortalecer o projeto, apresentou um projeto de lei para criar… o Dia Nacional de Conscientização sobre a Doutrinação nas Escolas.

O parlamentar, na intenção de agradar a claque convencida por ele mesmo do conto da carochinha da “doutrinação nas escolas” – delírio que entra no rol de outros como os do chip e HIV na vacina, fraude nas urnas e golpe comunista -, parece legislar em uma realidade paralela composta por professores que entram nas salas para conclamar os estudantes a entoarem o hino da Internacional Socialista, e não por profissionais sobrecarregados e alunos estafados, sem suporte psicológico adequado para suas funções, em estruturas muitas vezes precárias e ainda tendo que lidar com delírios de quem deveria combater essa realidade.

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Dois meses antes da proposta de criação do Dia Nacional de Conscientização sobre a Doutrinação nas Escolas, Gayer, inclusive, propôs uma modificação da Lei de Diretrizes e Bases – Lei 9.394/96 para “não considerar infração administrativa o professor que não lecionar matéria que seja contrária às suas convicções morais ou religiosas”. O nobre parlamentar parece não entender que o indivíduo que se propõe a adquirir formação e treinamento para educar em sala de aula, o verdadeiro professor, não se recusa a dar o conteúdo proposto por ir “contra suas convicções morais ou religiosas”, uma vez que é sabido que um profissional que se preze, ético, não permite que uma crença pessoal interfira em seu dever.

Em realidade, o parlamentar deveria ouvir, de fato, os professores para descobrir que os problemas reais estão na falta de valorização, na necessidade de maior suporte em sala de aula, de maior atenção do Legislativo para com a saúde mental de profissionais e alunos.

Fred Rodrigues e debate ideólogico

Fred Rodrigues, por sua vez, que hoje se aventura na disputa pelo governo de uma cidade que perece com uma gestão que se mostrou ineficaz e inexperiente, parece ter replicado e demonstrado, na Assembleia Legislativa, tanto a falta de experiência e de trato com problemas concretos da sociedade, como a tendência incontrolável de transformar o parlamento em fórum de debate ideológico. Das cerca de 20 propostas de lei ordinárias que levam a assinatura do ex-deputado (Fred foi cassado no passado pela Justiça Eleitoral, por falha na prestação de contas da campanha), a maioria absoluta é baseada em discursos ideológicos usados, sobretudo, como engajadores de redes sociais.

Em um ano de mandato, Fred elegeu como prioridade em seus projetos de lei temas como “Goiás contra os perigos do fascismo, nazismo e comunismo”, “reconhecimento da leitura de trecho da bíblia antes das sessões legislativas como patrimônio imaterial”, “criação do Dia da Conscientização contra o Aborto”, e, nos requerimentos, “moções de repúdio contra o Hamas”.

Agindo como se eleito para um discurso na ONU, Fred, durante seu curto mandato, parece ter submergido na realidade paralela das redes sociais em que as necessidade do cidadão goiano não passam por investimentos na geração de emprego e renda, valorização de projetos sociais para a juventude e para pessoas em situação de vulnerabilidade, requalificação de unidades de saúde e educação, cessão de equipamentos de qualidade para instituições públicas, mas sim por combate ao comunismo, ao aborto e a leitura da bíblia na Assembleia Legislativa.

Wilder Morais: pragmatismo pessoal

Do mesmo modo, Wilder Morais, do alto do Senado Federal, chama a atenção nem tanto pelo conteúdo da produção legislativa, mas da tímida existência dela. O senador da República está em seu segundo mandato (o primeiro foi exercido entre 2012 e 2019), e desde que apresentou seu primeiro projeto de lei, em 2012, até 2024, só teve duas propostas (entre mais de PL e quase 70 PLS) de autoria própria aprovados. Incluindo os projetos de lei em que Wilder foi coautor, o número de propostas sancionadas sobe para três.

Um desses projetos convertidos em lei, inclusive, versa sobre o regime jurídico da multipropriedade (que, conforme sancionado pelo então presidente Michel Temer, se define como “regime de condomínio em que cada um dos proprietários de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde a faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a ser exercida pelos proprietários de forma alternada”). A proposta em vigor tem sua relevância social, mas também um impacto em seus negócios particulares – com bens declarados em torno de R$ 41 milhões (conforme último registro no Tribunal Superior Eleitoral), o senador goiano tem participações societárias em ao menos 10 empresas que vão de construção, incorporações e investimentos.

É válido destacar que um parlamentar não pode ser culpabilizado pela não aprovação de matérias – cujo trâmite envolve fatores diversos – mas chama atenção a discrepância na quantidade de projetos apresentados quando se comparado a um colega de bancada – enquanto Wilder Morais apresentou 67 PLSs e 22 PLs entre 2012 e 2024, Jorge Kajuru (eleito em 2018), apresentou 217 PLs entre 2019 e 2024. Ao mesmo tempo em que o número de requerimentos de Wilder para tirar licenças foi de 13 em 2 anos.

Os últimos quatro anos da gestão de Goiânia evidenciaram o que a falta de preparo e comprometimento com problemas reais do cotidiano da população pode provocar. O cenário se agrava quando essa mesma falta de preparo é maquiada com discursos ideológicos que geram propostas que inflamam a bolha de aficionados, mas não levam soluções práticas para a população.

E aqui, desenha-se o perfil político que mais assombra o contribuinte: aquele que discorre com maestria sobre o porquê de o comunismo ser um sistema falho e como o Hamas representa uma ameaça à civilização do Oriente Médio, mas não consegue – e nem ao menos tem dados para tal – alocar recursos e propor saídas inteligentes e viáveis para problemas como o do colapso da infraestrutura urbana de Goiânia – agravado pela (ainda) coleta de lixo irregular, ruas esburacadas e frequência de alagamentos -, da hipossuficiência das maternidades municipais ou do trânsito e transporte público estrangulados na capital goiana.