Especial para o Jornal Opção – Desembargador José Carlos de Oliveira

No exercício da judicatura, que já se aproxima de quatro décadas, presidi milhares de processos e deitei milhares de decisões, como ato final da resolução dos conflitos.

Conflitos gerados por uma pretensão resistida, consistentes em regra, na disputa de uma vantagem de natureza patrimonial. Porém, outras vezes, a lesão sofrida não dizia respeito a bens materiais, mas repousavam na vontade e necessidade de preservação da autonomia e no direito de ser reconhecido como igual a todas pessoas.

Assim, correto afirmar que toda causa veicula uma pretensão revestida de um determinado valor.

O Código de Processo Civil oferece parâmetros para a fixação do valor da causa, traduzido em expressão pecuniária, e a partir dessa ideia, geralmente, valora-se a importância da causa. A partir dessas assertivas, faço a narrativa de uma experiência vivida no início da minha carreira como juiz de direito.

Parece que foi ontem, mas o ano era 1986. Oportunidade em que exercia a magistratura na comarca de primeira entrância de Mozarlândia, interior do Estado de Goiás. Eis que, certa feita, o porteiro dos auditórios indagou-me se poderia receber uma senhora, que desejava falar-me pessoalmente.

Com meu assentimento, o porteiro, saudoso senhor Bernardo, fez adentrar meu gabinete uma pessoa que se identificou como Maria de Jesus, dizendo-se procedente do distrito de Aruanã, que ficava a uma distância de 100 km. Vinha à procura de Justiça, esperando ser ouvida e obter uma solução para o seu caso.

Reparei naquela criatura decidida, rosto esquálido, olhos esbugalhados, semblante sofrido de pessoa flagelada, magra, alta, recurvada, cabelos desgrenhados e presos a um lenço, vestes puídas, calçava uma sandália já carcomida pelo uso, deixando- lhe desabrigados os calcanhares, refletindo a nítida imagem de uma dessas personagens de Graciliano Ramos, que, no caso, seria uma das retirantes da Justiça.

Acenei para que ela se assentasse e, dispondo-me a ouvi-la, perguntei-lhe qual o motivo de ter vindo de tão longe para tratar com o juiz; respondeu-me, ela, com singeleza e convicção, que queria explicar que tinha três filhos pequenos, tinha ficado viúva, morava num rancho de sua propriedade, num pequeno lote, afastado do centro da
cidade de Aruanã, e que lutava, com dificuldade, para criar seus filhos e dar a eles o pão de cada dia; em seu terreiro, criava uma galinha, que lhe proporcionava, a cada dia, um ovo, com o qual preparava algum lanche ou alguma mistura para alimentar os meninos, que, além do mais, eram afeiçoados àquela criazinha doméstica.

O fato que a trazia à presença do juiz, para queixar-se, foi que um vizinho, irritado com a galinha que invadira seu terreiro, dera-lhe uma vassourada, deixando-a “descadeirada” e imprestável, para sempre. Desse dia em diante, recolhida a um canto, aquela galinha não mais botou um ovo sequer, para atender às suas necessidades alimentares diárias. O pior é que o vizinho negou-se a reparar o prejuízo que lhe havia causado, mesmo sabendo que ela era uma pessoa desemparada e sem recursos para dar a necessária assistência aos seus filhos.

Ao ouvir esse relato, confesso que me senti perplexo diante da situação inusitada e de aparente insignificância para uma demanda judicial, fazendo com que uma pessoa se deslocasse, de tão distante lugar, a fim de tentar o ressarcimento de um mínimo dano, representado pelo valor de uma reles galinha. Ao mesmo tempo, ocorreu-me
lembrar que para solucionar aquele conflito, já existia, em nível federal a Lei nº 7.244/84, que autorizava os Estados a criarem os Juizados de Pequenas Causas, infelizmente, ainda não existente no Estado de Goiás, naquela oportunidade, um dos retardatários na adoção de tal medida. No entanto, condoído com aquela situação de penúria da pobre viúva,
prometi-lhe que daria uma solução para o caso, numa próxima visita que deveria fazer ao distrito judiciário de sua cidade, quando providenciaria do meirinho, que viesse à minha presença o seu vizinho e desafeto, devendo também ela comparecer na ocasião, para que eu os ouvisse a fim de encontrar a justa solução para o caso.

O vizinho de dona Maria de Jesus, senhor Salustiano, não negou, na minha presença, que havia aleijado, com um golpe de vassoura, a incômoda galinha de dona Maria (a qual não arredava de seu terreiro, nem era retirada pela sua dona), para que não incomodasse a vizinhança. Expliquei a ele que, por sua vez, deveria ter o seu quintal cercado, mas que, estando em comum, não poderia exigir o isolamento daquele bípede, nem tão pouco dar prejuízo à sua vizinha, principalmente em se tratando de pessoa pobre necessitada. Conclui que, por isso, deveria reparar o dano, quer adquirindo outra galinha em condição de postura para substituir aquela inutilizada, quer pagando à dona Maria o
equivalente em dinheiro, como era de direito.

Sem oferecer resistência, e indagando o valor da galinha, o senhor Salustiano prontamente retirou do bolso duas cédulas de um cruzado e passou às mãos da reclamante, perguntando-me se poderia retirar-se, resolvida a pendência. Antes, porém, que o senhor Salustiano se levantasse, já atravessava à minha frente, o vulto enérgico de dona Maria de Jesus postando-se à frente de seu desafeto e levando-lhe ao nariz o dedo em riste, exclamou em desabafo:

– Eu não lhe disse que havia Justiça?

Daquela ocasião em diante, entendi que o magistrado não deve ficar adstrito ao seu gabinete, esperando que as demandas lhe cheguem apenas na forma ritualística do processo. Se assim fosse, o caso focalizado, nas circunstâncias judiciárias de então, não encontraria estrutura formada, nem resposta adequada para a prestação jurisdicional.

Observei à ocasião que, em comunidades interioranas como aquela a que pertencia dona Maria de Jesus, havia uma prática de assistência religiosa denominada desobriga, pela qual o vigário ou um padre da paróquia percorria a sua freguesia, ministrando sacramentos aos seus fiéis e desobrigando-os de irem à sede da paróquia para cumprirem suas obrigações religiosas. Entendi que o judiciário deveria ser também itinerante, tal como a desobriga paroquial, levando o beneplácito da Justiça aos menos favorecidos, que não podem buscar o centro e os meios de acesso à Justiça.

Iniciei, então, a partir de 1986, na comarca de Mozarlândia, Estado de Goiás, a prática da justiça itinerante, que foi reconhecida como inovadora e até mesmo recomendada pela Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de Goiás, naquela época, tendo como Corregedor-Geral da Justiça o saudoso Desembargador Fenelon Teodoro Reis. Esta prática, mais tarde, foi institucionalizada pelo mesmo Tribunal.

Hoje, depois de ter trilhado quase quatro décadas como magistrado e ter vivido inúmeras experiências como julgador, a única certeza que tenho é a de que a causa de dona de Maria de Jesus foi a mais importante que tive a oportunidade de resolver; haja vista que a relevância de uma causa não está assentada na sua expressão econômica, mas sim na repercussão do asseguramento a todas as pessoas do pleno exercício da dignidade, conforme entalhado na Constituição Federal.