A ‘magia’ do Chapter 11, que permite a sobrevivência das empresas aéreas
09 dezembro 2024 às 16h09
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Ycarim Melgaço*
A sobrevivência das companhias aéreas é uma montanha-russa insana. Combustível em alta, crises econômicas em cadeia, oscilações cambiais, demandas judiciais – e, para piorar, o inesperado sempre aparece. Na pandemia, por exemplo, a receita evaporou enquanto as despesas continuaram. O que era difícil virou desespero.
É aí que entra o Chapter 11 do Código de Falências dos EUA, um verdadeiro salva-vidas para grandes corporações. Curiosamente, o capitalismo norte-americano, que prega o livre mercado, não hesita em abraçar um protecionismo estratégico — mas apenas para quem está no topo da cadeia econômica.
O Chapter 11 permite que grandes empresas em crise se reestruturem, reorganizem suas dívidas e retornem ao mercado fortalecidas. No setor aéreo, empresas dos EUA, como American Airlines, United Airlines e Delta Airlines, usaram essa ferramenta para enfrentar crises profundas. Em 2011, por exemplo, a American Airlines estava afundada em dívidas de aproximadamente 30 bilhões de dólares. Após entrar no Chapter 11, reorganizou suas finanças e, em 2013, ressurgiu como o maior grupo aéreo do mundo, após sua fusão com a US Airways.
Além dessas gigantes, outras empresas de perfis diferentes também recorreram ao Chapter 11. A norte-americana Spirit Airlines, classificada como ultra-low-cost, entrou com o pedido em 2024, ilustrando que essa ferramenta não é exclusiva das companhias tradicionais. Já o Grupo Latam, de origem chilena, recorreu ao Chapter 11 em 2020, reduzindo sua dívida em 3,6 bilhões de dólares e saindo do processo em 2022 com liquidez de 2,2 bilhões. A brasileira Gol, em 2024, seguiu o exemplo, buscando quase 1 bilhão de dólares para garantir sua sobrevivência. Outras empresas latino-americanas, como a mexicana Aeroméxico e a colombiana Avianca, também recorreram ao Chapter 11 em anos recentes, reforçando o impacto dessa legislação fora dos Estados Unidos.
Na realidade, o grande segredo do Chapter 11 está no Debtor-in-Possession (DIP), um tipo de financiamento que garante operações durante a reestruturação. Credores DIP têm prioridade absoluta nos pagamentos e podem usar ativos da empresa como garantia, impedindo o arresto de bens essenciais, como aeronaves, e garantindo tempo para a recuperação.
No Brasil, a ausência de um mecanismo semelhante na Lei nº 11.101/2005, que rege a recuperação judicial, limita severamente as empresas nacionais. Por isso, muitas delas optam por recorrer ao Chapter 11 nos EUA, onde encontram uma proteção maior para seus ativos e operações.
No entanto, o Chapter 11 não opera em um vácuo: ele revela a íntima relação entre direito e mercado, em que o direito está a serviço das necessidades econômicas. Esse mecanismo beneficia principalmente as grandes corporações, que contam com escritórios jurídicos especializados e modernos, contratados para elaborar planos detalhados de reestruturação a serem apresentados à Justiça norte-americana.
Essas empresas têm recursos e expertise para navegar pelo complexo processo do Chapter 11. Por outro lado, pequenas e médias empresas, que não dispõem dos mesmos recursos, acabam excluídas desse benefício, perdendo a oportunidade de usar essa ferramenta para sua sobrevivência.
Essa relação entre direito e mercado, favorecendo os grandes, reforça o capitalismo ultraliberal dos Estados Unidos, onde a prioridade é salvar grandes corporações e estabilizar o mercado. A proteção dos empregos é um efeito colateral positivo, mas a legislação não tem um perfil social direto. O objetivo central é preservar os interesses econômicos e os grandes players do mercado.
No entanto, essa solução tem um preço. Credores precisam aceitar menos do que têm direito, contratos são renegociados à força e, como resultado, há o que chamaria de “mais-valia empresarial”: uma transferência de recursos dos credores para os devedores, forçada pelo sistema legal. No final, o Chapter 11 mantém o jogo funcionando, tanto para empresas americanas quanto para as que optam por se proteger sob esse modelo, como a Latam e a Gol.
Ainda assim, fica a pergunta: estamos apenas adiando um colapso maior? Ou esse é o preço a pagar para manter o sistema em movimento?
*Ycarim Melgaço é doutor em Ciências Humanas, pós-Doutor em Economia e Gestão de Organizações. É colaborador do Jornal Opção.