A história de Oswaldo Aranha, político que foi decisivo para a criação de Israel

16 outubro 2023 às 16h11

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Salatiel Soares Correia
Houve um tempo, no Brasil, em que a vida pública era repleta de “gente do bigode”. Como “gente do bigode” se entende homens públicos de qualidades visíveis que primavam em ser fiéis à palavra dada. A lealdade aos companheiros se tornava uma reserva de valor. Quando dotados de nobreza, chegavam a ser, esses homens, extremamente tolerantes com seus adversários. O sentido de honra, aliado ao patriotismo, solidificava-se na coragem tão necessária para construir novos caminhos. A esperteza não era sinônimo de mera sobrevivência política, mas sim uma qualidade para se construir algo em torno de uma causa na qual se acreditava.
O sentido de honra e o elevado amor à pátria se constituíam no combustível maior dos homens públicos daquela época. A atividade política para políticos desse jaez tão raro não era algo deste mundo. O paraíso se construía em vida para que as gerações futuras, assim, pudessem desfrutar de um Brasil melhor.
Nesse patamar da história brasileira, existem líderes e liderados. Citemos alguns nomes. No Brasil Império, vê-se Dom Pedro II na condição de líder, e destacam-se Duque de Caxias e o General Osório ─ heróis da Guerra do Paraguai ─ na condição de liderados; já no Brasil Republicano, Getúlio Vargas na condição de líder, e Afrânio de Melo Franco, José Américo de Almeida e o General Góes Monteiro, liderados; e, ainda, no Brasil mais contemporâneo, neste, sobressaiu-se a liderança carismática de Juscelino Kubistchek, e de ilustres liderados como foram Celso Furtado e Roberto Campos para não citar outros. O fato que une a história desses personagens se confunde com o sentido de nação que se construiu através do espírito público, assim, pensando sempre nas próximas gerações, e não naquilo que dá sentido à política de hoje: as próximas eleições. Eleições nas quais o bem próprio, geralmente, prepondera sobre o bem comum.
Dos escritos acima, omiti propositadamente o nome de um personagem que vivenciou o esplendor de sua vida política na era getulista. Esse, vindo dos pampas como Getúlio, foi seu seguidor sem jamais ser vassalo do “pai do trabalhismo brasileiro”. Era um liderado que tinha brilho próprio e sonho de ser Presidente da República. O porquê de não ter ido mais adiante procurarei responder na continuidade. O personagem do qual se tratará tinha todas as qualidades que possuem os homens da “época do bigode”, ou seja: lealdade, coragem, personalidade, patriotismo adicionado da nobre generosidade com os adversários e algo que o tornava diferente de seus pares ─ era um homem repleto de emoções as quais se transpuseram para sua vida política. Emoções inerentes à formação de seu caráter com as quais “a velha raposa” Getúlio sabia, como ninguém, lidar. Como se todas essas qualidades não bastassem, era ele um homem de aguçada inteligência e dotado de um enorme poder de sedução.
Embaixador nos Estados Unidos, ministro da Justiça, da Fazenda e das Relações Exteriores até chegar aos píncaros da glória no momento em que presidiu o mais alto cargo que nenhum outro brasileiro jamais chegou a ocupar em nível internacional: o de presidente da histórica Assembleia das Nações Unidas que criou o Estado de Israel, resultante da partilha da Palestina.
Convenhamos que para se chegar a esse patamar é preciso ter reconhecidas qualidades. Qualidades evidenciadas nas inúmeras provas que a vida colocou no seu caminho. Creio que nenhum brasileiro, sem ser Presidente da República, teve mais prestígio nacional e internacionalmente que o gaúcho Oswaldo Aranha. É dele que tratam os escritos resultantes de uma pesquisa de invejável fôlego intelectual, implementada pelo pesquisador norte-americano Stanley Hilton, este um conhecido brasilianista com inúmeros trabalhos de grande valor a respeito da vida política e econômica do Brasil. Falemos, em seguida, de sua seminal obra que ajuda a preencher uma lacuna histórica no tocante à estrela da Revolução de 1930 que inegavelmente foi Oswaldo Aranha.
GETÚLIO VARGAS E O LADO EMOTIVO DE OSWALDO ARANHA
Emoção + lealdade + generosidade + sedução + inteligência + coragem = Oswaldo Aranha. Talvez seja esta a fórmula que melhor defina o homem público que esses escritos procuram descrever. Nascido em uma família de ricos estancieiros em um município próximo à fronteira do Uruguai, Alegrete, Oswaldo Aranha estudou no Colégio Militar em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. De lá, seguiu para o Rio de Janeiro, onde brilhantemente concluiu o curso de Direito. Foi ele o primeiro aluno de sua turma. Do Rio, escrevia longas cartas de afeto para a família. “Mamãe, não imaginas quanto prazer tenho eu de receber uma carta sua ou de qualquer outra pessoa que dê-me notícias de minha boa família a quem devo toda minha vida.” assim relata seu biógrafo. Era seu lado afetivo repleto de emoção que se transporia para sua vida política e que o ligaria por toda sua vida ao político que mais tempo exerceu o poder na vida do Brasil Republicano: Getúlio Vargas.
A amigos, o filho de dona Luiza confessava sua devoção a Vargas: “No dia em que perder a confiança nele, creio que não me sobrará uma tábua sequer neste naufrágio das minhas ilusões patrióticas”. Nesse sentido, Stanley Hilton ainda aponta, em seus escritos, a maneira astuta com que a raposa dos pampas lidava com o lado emotivo de Oswaldo Aranha. Em inúmeras ocasiões, o lado sentimental do moço de Alegrete, permeado de elevado sentido de lealdade, transpusera-se para sua vida pública. Inúmeras vezes, pediu demissão ao chefe por não concordar com o rumo de certos acontecimentos. O sentido de honra, de empenho da palavra dada, era vital para Oswaldo Aranha. Mas Vargas ─ ah! Aquela velha raposa! ─ conhecia bem o temperamento afetivo de Aranha e fazia uso desse conhecimento para convencê-lo a retroceder em suas decisões.
Foi assim no momento em que ele se desentendeu com o então Ministro da Justiça Francisco Campos: “[…] Hoje, após estes fatos e a tua exigência de ir humilhar-me ao Campos, só tenho razões para considerar-te entre meus perigosos inimigos”, desabafou Aranha a Vargas. E ainda acrescentou ao desabafo assim expressos nos escritos de seu biógrafo: “a atitude que me impões, quer a de permanecer no ministério com Campos, quer de escrever-lhe cartas de amor, é uma exigência que o Washington Luís [antecessor de Getúlio Vargas e por ele derrubado na Revolução de 1930] não me faria em caso similar”.
E aí vinha a velha raposa apertando os cordéis das emoções de Oswaldo Aranha: “[como] poderia[eu] pretender desgastar exatamente quem fora até então um de meus melhores amigos, o mais antigo, o que mais assinalados serviços prestara e que nenhum outro excedera em dedicação e afeto? Por que, para quê? Não achas absurdo, inexplicável? Assim me parece”.
E assim o filho da dona Júlia voltava atrás em sua decisão de abandonar o governo. Aliás, como na grande maioria das vezes, em diferentes episódios, Oswaldo Aranha retrocedia ante o tocar da velha raposa no seu lado afetivo repleto de generosidade e lealdade, mas nunca de submissão!
O ARQUITETO DA REVOLUÇÃO DE 1930
A figura de Getúlio Vargas diretamente se atrela ao mais importante movimento político que construiu o Brasil moderno: a Revolução de 1930. Este é um fato histórico do conhecimento de todos. Mas o que é do conhecimento de poucos é que essa revolução teve um arquiteto e este se tornou a verdadeira alma do movimento revolucionário. Falo de Oswaldo Aranha. Sua determinação, liderança e coragem, características aliadas a seu enorme poder de sedução, chegaram a fazer sombra e despertar certo ciúme na velha raposa. Contribuía para isso a diferença de estilo entre ambos.
Getúlio era um mestre da ambiguidade que estendia as situações de conflito até o limite, ao momento em que a situação estivesse definida. Oswaldo Aranha tinha uma personalidade completamente diferente. Era decidido. Enfrentava com firmeza os momentos de conflito. E era realmente um homem de ação. Sua história revolucionária vinha das lutas das quais diretamente participou no Rio Grande do Sul, no período de 1923-1926. Nessa época, aconteceram quatro grandes rebeliões no estado. E, em uma dessas rebeliões, instaurada contra a quarta reeleição do líder gaúcho Borges de Medeiros, o filho da dona Luíza comandou as tropas provisórias em defesa da legalidade. Foi, então, ferido no tórax.
No tocante à Revolução de 1930, conforme depoimentos daqueles que dela participaram, relata-se algo comum: sem Oswaldo Aranha o movimento revolucionário simplesmente não teria acontecido. A esse respeito Stanley Hilton relata que “a revolução de 1930, que nasceu da campanha da Aliança Liberal e fez Oswaldo Aranha uma figura nacional, em certo sentido pertenceu a ele, era obra dele, realizou-se por causa de sua firmeza de vontade, de sua determinação invulgar e sua capacidade de persuasão e organização. Getúlio Vargas, o grande beneficiário histórico do movimento, é da mesma opinião. Anos mais tarde, confessou ser o rapaz de Alegrete o ‘grande animador da revolução’”. Igual opinião tinha o líder gaúcho Flores Da Cunha. Disse ele certa vez a Oswaldo: “Foste o maior de todos na animação e na organização do extraordinário movimento”. Este, com a vitória do movimento, seguiu com Getúlio para a, então, capital Federal do Rio de Janeiro. Iniciava-se assim o caminho de construção de fato de uma vida pública que teria lugar de destaque na história política do país e do mundo.
O REVOLUCIONÁRIO E O PODER
Se há uma qualidade que impulsionou a vida pública desse notável gaúcho essa se centrava na maneira incomum dele fazer política. Lealdade com os correligionários, generosidade com adversários e empenho na palavra dada faziam parte do seu modo de ser, como anteriormente já se delineou. Nele tudo soava naturalmente porque ele era assim e agia assim. No poder, era o tipo de político que conquistava a todos pelas suas atitudes. Foi para o Rio de Janeiro com o pensamento de voltar para consolidar suas bases e fazer política no Rio Grande do Sul. Os fatos, porém, impediram-no de retornar para terra natal. “Não poderia prever que, durante os próximos quatro anos, estaria no centro de uma tempestade de contracorrentes, rivalidades político-militares, alianças e lealdades desintegrantes e até insurreições”, relatam os escritos de Stanley Hilton. Vargas necessitava de Oswaldo Aranha na capital federal, e este, sempre fiel ao líder, não poderia faltar com esse compromisso com o homem ao qual se sentia profundamente atrelado. Eram aqueles os tempos em que o filho da dona Luíza assumiria uma função executiva de maior expressão do que aquelas outrora assumidas no Rio Grande do Sul: o Ministério da Justiça do primeiro governo Vargas.
No exercício do cargo, Oswaldo Aranha imprimiu seu modo próprio de ser. Quanto à maneira própria de ele fazer política, Stanley Hilton relata, em seus escritos, algumas passagens desse período que creio serem valiosas no sentido de evidenciar o estilo do arquiteto da Revolução de 1930.
“Era característico de Aranha tentar resolver divergências por meio do diálogo franco e direto […] Talentoso, com extraordinária capacidade de apreensão e aprimorada sensibilidade, era, ao mesmo tempo, fácil de recuar e de modificar sua deliberação ou sua atitude ante as razões do bom senso ou de coração”. No combate à corrupção, seu lado dócil e negociador mostrava a outra face de sua personalidade: a de incansável guerreiro. Durante sua gestão no Ministério da Justiça, foram apurados desfalques no Banco do Brasil e créditos concedidos de modo irregular a políticos de governos passados. Estes sentiram os rigores da lei. Vários funcionários graduados do banco tiveram o fim que mereciam: a demissão. No tocante à compra ilegal de terras em Goiás, Aranha foi incisivo no sentido de que “as terras deveriam voltar imediatamente ao domínio do Estado”. Com o mesmo rigor, fez uso de sua pasta para punir deputados e senadores envolvidos em atos de corrupção.
O arquiteto da Revolução de 30 era um homem de hábitos simples quando comparado aos sisudos ocupantes de cargos públicos da República Velha. Era comum vê-lo andando a pé pelas ruas da capital federal. Assim descreve o autor ao se referir ao dia a dia do Ministro da Justiça: “Os jornalistas, acostumados ao regime anterior, ficavam impressionados com o fato de Aranha descer de sua residência na Ladeira do Ascurra, pelo bonde do Corcovado, para tomar um táxi na estação do Cosme velho”.
O capital político de Oswaldo Aranha se elevou de forma decisiva no movimento em que sua capacidade de negociação fora constantemente testada: a Revolução Constitucionalista de 1932. Nesta, o brio dos paulistas se voltou com veemência contra o Governo Federal. Entre outras ações de relevância, foi ele quem convenceu o relutante interventor, sem sangue paulista nas veias, a deixar o cargo. Para isso, fez uso de seu enorme poder de convencimento. A respeito desse episódio, assim relatam os escritos de Stanley Hilton: “há algum tempo vinha [Oswaldo Aranha] cautelosamente tentando persuadir João Alberto [o interventor] a deixar seu cargo para que pudesse ser entregue a um civil paulista. No início de julho, seu esforço deu resultado”.
Enormes desafios a enfrentar esperavam pelo arquiteto da Revolução de 1930, numa nova e importante pasta do governo Vargas: a da Fazenda. Eram aqueles os tempos da crise econômica que arrasou economias pelo mundo afora. Falo da crise de 1929 nos Estados Unidos que arrasou as finanças de milhões de pessoas. Oswaldo Aranha assumiu o Mistério da Fazenda com uma missão previamente delineada pela velha raposa Getúlio Vargas: estabilizar a situação, manter a credibilidade do país, controlar o câmbio e melhorar os serviços do Ministério da Fazenda. Esta nova missão se constituiu em mais um sucesso na sua carreira política. Com uma administração claramente direcionada para a ortodoxia econômica, implementou o filho de dona Luiza um rígido controle orçamentário no sentido de eliminar e conseguir zerar o déficit público que afligia a débil economia brasileira dos anos de 1930.
A clareza de seu pensamento econômico liberal foi decisiva na maneira como o governo Vargas mudou de rumo no tocante à compra dos excedentes de café dos empresários para depois queimá-los. Procurava, assim, via Estado, o governo Vargas regularizar a atividade econômica. Aranha foi contra esse tipo de política e disse claramente a Getúlio e à imprensa da época: “sou contrário à intervenção do governo para gerenciar o programa de destruição dos excedentes.”. O pensamento econômico dele se confrontava com a entrada do Estado empresário. E em relação a essa questão, referia ser contrário “à intervenção do governo na vida comercial do país para valorizar produtos e manter indústrias artificiais”.
Pagar dívidas era fundamental para o Ministro da Fazenda. Sem o equacionamento do déficit a credibilidade do país estaria comprometida. Vale ressaltar que, nos anos de 1930, a revolução tinha herdado da Velha República o monstruoso endividamento que girava em torno de 1,24 bilhão de dólares. A boa vontade e os esforços de Oswaldo Aranha no equacionamento da dívida externa melhoraram consideravelmente a imagem do país ao ponto de poderosos banqueiros internacionais da época tecerem consideráveis elogios à atuação do ministro. Este foi o caso do poderoso Barão de Rothschild da Inglaterra. Numa carta endereçada ao então Ministro da Fazenda, elogiou-lhe a “política sábia que está sendo seguida sob a direção de um Estadista como Vossa Senhoria”. Ao deixar o Ministério da Fazenda, não restou uma só conta para pagar. O combate ao déficit público foi de fato um sucesso durante os anos em que esse gaúcho de Alegrete comandou a economia brasileira.
No pensamento econômico de Oswaldo Aranha, existiam três tipos de nações:
1- Aquelas que não podem pagar; 2- aquelas que podem pagar e não querem pagar ou estão pagando com redução; 3- aquelas que fazem um supremo esforço para pagar tudo quanto lhes é possível pagar. Nesta última condição, o Brasil se inscrevia no sentido de cumprir rigorosamente com seus compromissos internacionais. Seguidor, mas não vassalo de Getúlio Vargas, Oswaldo Aranha mais uma vez discordou de suas manobras que levaram o filho do General Manuel Vargas à condução de uma ditadura, mais conhecida, na história do país, como “Estado Novo”.
Por pensar que o Estado Novo ia de encontro aos ideais da Revolução de 30, o homem de caráter, de Alegrete, não teve outra atitude senão a de pedir demissão. A emoção incrustada no seu ser mais uma vez se evidenciava nos seus escritos destinados a Vargas.
“Entre nós, os fatos e os homens, no decurso da ação governamental, criaram divergências profundas e algumas radicais. Cedi sempre, em meio da insânia política, às razões de ordem pública e às afetivas, acompanhando-te e ao teu Governo até o termo do período ditatorial […] Mas só eu sei a amargura e desencanto com que suportei estas provações finais […]
Relembro essas passagens da nossa vida, neste desabafo final, para despedir-me de ti, sem ressentimentos e reservas, na hora de deixar de todo teu governo. Não sei o rumo que vais dar à tua ação. Há muito apercebi-me que havia perdido o sentido da tua direção e o penhor da tua confiança e da amizade. Não procurei retomá-los porque seria tarefa contrária à minha desambição e aos meus escrúpulos”.
Foi com essa carga de emoções que o arquiteto da Revolução de 30 se despediu do amigo a quem se sentia umbilicalmente ligado. Certamente, uma ligação nem sempre correspondida por Getúlio, que sabia, como ninguém, a hora de apertar ou desapertar os cordéis da emoção do arquiteto da Revolução de 30, como já salientado. Um novo posto afastaria Oswaldo Aranha do país: o de embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Lá, o filho da dona Luíza mostraria sua imensa capacidade de se reinventar e tornar-se um estadista reconhecido internacionalmente.
REINVENÇÃO DE ARANHA: A CARREIRA DIPLOMÁTICA NOS ESTADOS UNIDOS
Sem intenção de seguir a carreira diplomática, Oswaldo Aranha rumou para os Estados Unidos com o intuito de dar um tempo na mágoa que sentia por Getúlio, mágoa essa motivada pela insistência de Vargas em continuar no poder. O poder para a velha raposa dos pampas era de fato fascinante.
O arquiteto da Revolução de 30 não era um diplomata de carreira, mas era um diplomata na sua maneira de ser. É bem verdade que às vezes Aranha se deixava tomar pela emoção um tanto quanto estranha à frieza diplomática, mas essa maneira de agir acabou contando a seu favor. Um episódio que ilustra seu lado sentimental foi quando quase atropelou uma criança, ao trafegar de automóvel pelas ruas de Washington. De imediato, desprezou a imunidade diplomática a que tinha direito e prestou ele mesmo toda a assistência à pequena vítima. “Imagina, Getúlio, o que seria para minha vida o esmagar eu uma criança de 3 anos”, escreveu ele a Vargas relatando o episódio. Mais adiante, acrescentou a respeito do estado de saúde da criança: “A menina está no hospital e com febre, mas os médicos asseguraram-me que não há fraturas nem derrames interiores, declarando que o estado febril é natural após esses choques. Eu, porém, não terei paz de espírito antes de ver esta pobre criança completamente restabelecida”.
A maneira incomum de proceder de Aranha, tão diferente de outros diplomatas envolvidos em episódios semelhantes, não passou despercebida do governo americano, o qual lhe demonstrou apreço afirmando que sua conduta, repleta de nobreza, fizera com que o embaixador ganhasse “muitos amigos novos” nos Estados Unidos.
O embaixador não confundia “alhos com bugalhos”. Não levava desavenças públicas para o lado pessoal. Mostrou nobreza na constante correspondência que mantinha com o presidente. Na verdade, Oswaldo Aranha era mais que um embaixador, pois tinha seus vínculos diretos com o maior mandatário do país, vínculos esses sem necessidade de passar pelas instâncias burocráticas do Itamaraty. A amizade e o passado revolucionário de ambos falavam mais alto.
À medida que conhecia os Estados Unidos, o embaixador relatava a Getúlio o impressionante desenvolvimento daquele país nos anos de 1930. “Washington é uma cidade de jardins, sem muros entre casas e com parques maravilhosos […] Todo mundo tem, aqui, seu automóvel […] não tens uma idéia da organização moral, política e social deste povo! […] Todo mundo é educado, amável, jovial”. Ao amigo Valetim Bouças, relatava que se sentia um homem revigorado em terras norte-americanas: “Esta missão foi, para mim, um presente dos céus […] não imaginas, Bouças, como me sinto bem e com disposição de aprender e trabalhar”.
Conforme seu inglês se tornava mais fluente, o arquiteto da Revolução de 1930 tecia uma densa rede de influências nos círculos mais íntimos da sociedade norte-americana. Assim, passou a ser convidado para ministrar palestras nos círculos mais exclusivos da sociedade daquele país. Relata seu biógrafo: “Aos poucos, Aranha, cuja popularidade em Washington atingia proporções inauditas para um enviado brasileiro, ia conhecendo as regiões restantes [dos Estados Unidos] por causa dos numerosos convites que recebia para títulos ou graus honoríficos”. Alçou a intimidade e simpatia do apogeu do poder do grande irmão do norte ao se tornar próximo da face mais visível do governo daquela época: o presidente Franklin Delano Roosevelt. Desfrutou, então, da simpatia e da amizade nos inúmeros encontros que teve com o grande estadista. Nutria pelo presidente Roosevelt um misto de simpatia, respeito e profunda admiração, muitas vezes, expresso nas extensas correspondências que manteve com Getúlio na época em que foi embaixador: “[…] Tive uma ótima impressão do Presidente, que foi muito amável conosco [ele e a esposa], assegurando-me de que iríamos trabalhar juntos e bastante como dois amigos”.
Mais adiante, revelou a Getúlio sua admiração pelo presidente norte-americano ante a paralisia que o mantinha imobilizado numa cadeira de rodas devido a uma poliomielite que teve quando jovem. “Ele foi estupendo [ao modo respondeu a uma crítica]. Faz pena vê-lo de pé, mas ele fala de pé, apoiado em uma cadeira apropriada. Sua energia excede os limites de nossa imaginação. É um Hércules de vontade. A sua paralisia inferior parece que revigorou seus órgãos superiores […] o esforço desse homem não cabe na nossa compreensão. Ele não caminha, não anda. É arrastado e arrasta consigo este país. Confesso-te a minha admiração por esse homem. A sua energia e seu esforço ao serviço do seu país são inexcedíveis”.
O estreitamento das relações pessoais entre o embaixador brasileiro e o presidente norte-americano se constituiu no elo fundamental para a decisão que viria a tomar o governo Vargas no sentido de se alinhar com os Estados Unidos. Vale ressaltar que estávamos no clímax dos anos de 1930, em cujo contexto fervilhava uma guerra ideológica, tendo os norte-americanos de um lado; e o nazismo de Hitler aliado ao fascismo de Mussolini, de outro.
Nesse ambiente de turbulências, foi decisiva a habilidade do embaixador no sentido de dirimir as desconfianças que tinham os Estados Unidos com o regime ditatorial que acabara de ser implantado no Brasil: o Estado Novo, o qual era visto, por Roosevelt e seus comandados, como uma espécie de sinalização do governo Vargas em direção ao nazismo. Stanley Hilton relata, em seus escritos, que “o grande medo dos Estados Unidos ─ governo e opinião pública ─ em relação ao Estado Novo era de que fosse inspirado pelo eixo [Alemanha-Itália]”. Outra ação decisiva do embaixador em tempos de guerra ideológica se deu na sua sincera preocupação com a deportação dos judeus no Brasil. Aranha empenhou todo seu prestígio no sentido de resolver de modo humanitário a questão.
Certamente, atitudes como essa e outras, já evidenciadas, foram decisivas para que o arquiteto da Revolução de 30 viesse a ocupar, anos mais tarde, o cargo mais importante já ocupado por um brasileiro em nível internacional: o de presidente da histórica Assembléia das Nações Unidas que criou o Estado de Israel. Mas este é assunto que, posteriormente, focalizaremos. Antes, porém, avaliaremos a atuação não mais do embaixador, mas do chanceler Oswaldo Aranha nos momentos em que o mundo se tornou uma terra em transe: o da Segunda Guerra Mundial.
O CHANCELER NOS TEMPOS IMINENTES DA GUERRA
Os anos de 1939 a 1941 foram períodos de bastante turbulência na vida política do país por uma importante decisão que teve de tomar o governo Vargas em relação a quem deveria apoiar no conflito que se evidenciava: a Segunda Guerra Mundial.
De um lado, encontravam-se as potências do eixo, lideradas pelo nazismo alemão e o fascismo italiano. Tinham elas a simpatia da alta cúpula do exército brasileiro, cujas faces mais visíveis eram os generais Eurico Gaspar Dutra e Góes Monteiro; de outro, estavam os Estados Unidos e seu aliado de primeira hora ─ o chanceler Oswaldo Aranha.
Questões muito delicadas na época, como foi o caso da imigração de judeus para o Brasil, colocavam a alta cúpula do exército de um lado, e o arquiteto da Revolução de 1930, de outro. Francisco Campos, então Ministro da Fazenda, era outra pedra no caminho que o chanceler tinha de frequentemente lidar. Outra questão delicada a enfrentar era o temido chefe de polícia Filinto Muller. Este, como o próprio sobrenome indica, era pró Alemanha desde criancinha.
Como se isso não bastasse, Vargas gostava, como de costume, de estender conflitos de toda natureza a situações extremadas. Mesmo que nessas decisões estivesse envolvido o velho companheiro de épocas anteriores à Revolução de 1930. Resultado: além de não manifestar com frequência apoio a Oswaldo Aranha, muitas vezes, até o preteria de decisões importantes. Quanto ao estilo varguista de governar, os escritos de Stanley Hilton relatam que “o chefe do executivo não raramente discordava de seu chanceler […] era capaz de excluí-lo de démarches significativas quando sabia que o senso de moralidade e preferências político-ideológicas de Aranha o levariam a se opor”. Este era o preço que pagava o homem que não foi a sombra de Getúlio.
Outro assunto que marcou a passagem do arquiteto da Revolução de 1930 pelo Itamaraty foi, sem dúvida, sua atuação direta no sentido de que o governo Vargas viesse a negociar uma importante condição para o apoio iminente do Brasil à causa aliada na Segunda Guerra Mundial: o financiamento para a construção da Companhia Siderúrgica Nacional ─ CSN ─ esta se transformou no símbolo maior de nossa incipiente industrialização.
A pressão junto aos norte-americanos exercida pelo chanceler foi decisiva para a edificação deste símbolo da modernização da economia brasileira. E assim, como na vitória do movimento revolucionário de 1930, a história mais uma vez se repetia: os louros da decisão política pró aliados e a construção da CSN couberam a Getúlio. O que pouca gente sabe que a ação do arquiteto de 1930, mais uma vez, fora decisiva para que isso se tornasse uma realidade. Éramos pró Estados Unidos em plena Segunda Guerra Mundial. Estávamos do lado do vencedor. Muito disso se deve ao prestígio que tinha o rapaz de Alegrete na terra do tio Sam. Estávamos, assim, a um passo de romper relações e aliarmo-nos de vez aos norte-americanos na guerra. “Não foi o Getúlio, nem fui eu, nem foi ninguém que nos forçou a romper relações […] foi a nossa posição geográfica, a nossa economia, a nossa história, a nossa cultura, enfim, a condição nossa de vida e a necessidade de procurar sobreviver”, disse o chanceler a respeito da decisão histórica que direcionaria de vez o sistema político brasileiro em tempos de muita turbulência.
O CHANCELER NOS TEMPOS DA GUERRA
O ataque à base norte-americana de Pearl Habour (7 de dezembro de 1941) foi o estopim que faltava para transformar uma iminente guerra em guerra de fato. A direção do sistema político brasileiro já tinha, naquele momento, um rumo claro e definido a favor dos aliados. Oswaldo Aranha estava com seu prestígio nas alturas com os norte-americanos que, nele, reconheciam, de acordo com os escritos de seu biógrafo, “a notável contribuição ao espírito de unidade das Américas”.
Na véspera da reunião dos Ministros das Relações Exteriores que romperia relações formais com o eixo, Roosevelt assim expressou a respeito do arquiteto da Revolução de 1930, reconhecendo, nele, uma história de grandeza: “a presidência da Reunião estará nas mãos de um estadista que tem tão ampla e compreensiva visão do significado da solidariedade hemisférica […] Acompanhei durante os últimos anos, com grande interesse e a maior admiração, sua direção da política exterior do Brasil […] desejo expressar-lhe pessoalmente minha profunda gratidão por tudo o que tem feito e por tudo o que está fazendo para tornar a solidariedade do hemisfério uma realidade.”.
A grandeza e a honestidade de propósitos de um estadista se revelam exatamente em situações em que se tem prestígio e poder. Aranha teve isso e não se contaminou. Mostrou sua personalidade no momento em que discordou dos norte-americanos em nome do interesse nacional. E feria o interesse nacional o fato de os Estados Unidos terem colocado empresas brasileiras em uma lista negra que muito estava prejudicando a economia brasileira. A respeito desse assunto, o chanceler foi taxativo com os norte-americanos. Stanley Hilton assim retrata a posição firme do filho de dona Luíza: “Persistia, por exemplo, a querela em torno da Lista Negra. Caffery [embaixador dos Estados Unidos no Brasil], logo após Pearl Harbor, avisara ao Departamento de Estado que o chanceler estava abordando o assunto quase todos os dias, fazendo ‘ataques violentos’ à política de Washington. Uma semana depois, o embaixador informou que Aranha mandara dizer que o Departamento não deveria esperar uma cooperação irrestrita enquanto estivesse agindo de maneira ditatorial a respeito da Lista Negra”.
Mais adiante, o embaixador norte-americano tornou mais clara ainda a posição de Oswaldo Aranha: “o Brasil não era uma ‘república bananeira’ e eles mesmos podiam cuidar do problema das atividades econômicas de firmas inimigas. O país, afinal, rompera relações com o Eixo e estava caminhando a passos largos no sentido da beligerância”. Concluiu o chanceler de forma taxativa: “Agora, creio, vocês vão nos deixar em paz com relação a esse negócio de Lista Negra”. Era o interesse nacional defendido por quem tinha estatura para não se calar quando era necessário.
Durante os anos de guerra, Getúlio Vargas evidenciou toda sua astúcia política no sentido de definir, na hora certa, qual seria o rumo que o Brasil deveria seguir. Todavia ele não teria conseguido tomar uma decisão de tanta importância estratégia para o país se não tivesse o apoio da história e confiança que os norte-americanos depositavam em Oswaldo Aranha. Ao retornar ao Brasil, Aranha se tornou chanceler e destacou-se na luta em torno da causa dos judeus. Além disso, direcionou sua gestão numa visão maior de integração da América. Aranha se tornou um líder continental. Fatos dessa natureza consolidaram de vez a confiança que o presidente Roosevelt tinha no chanceler brasileiro. “Ele tem sido não só um defensor constante de nossa causa”, informou ao embaixador dos Estados Unidos no país a respeito da importância do Chanceler Aranha. Em seguida, reconheceu sua importância não só no Brasil, mas nesta parte do continente. “Em muitas ocasiões, tem sido nosso porta-estandarte em toda a América, travando e ganhando muitas batalhas para nós”.
Não tenho dúvidas em afirmar que, sem ser a sombra de Getúlio Vargas, Oswaldo Aranha foi, como em 1930, o grande arquiteto das benesses que viria a ter o Brasil nos turbulentos anos da Segunda Guerra Mundial. A entrada do país na era desenvolvimentista de JK muito se beneficiou das negociações travadas entre o chanceler e os Estados Unidos. Naquele momento de euforia desenvolvimentista, a mão invisível de Oswaldo Aranha pairava sobre o Brasil, mesmo depois de sua morte, seus feitos na vida pública foram fundamentais para o país alçar a condição da potência econômica que hoje é. Os resultados de sua atuação diplomática, durante os anos turbulentos da Segunda Guerra Mundial, estavam mais vivos que nunca.
A estrela do chanceler o gabaritava para ser aquilo que Getúlio sabia: seu sucessor. Ciente disso, ele tratou de podar as asas do amigo que lhe fora sempre fiel, fidelidade essa nem sempre correspondida pela velha raposa. Em inúmeras passagens de seus escritos, Stanley Hilton evidencia a mão sorrateira de Getúlio como empecilho a vôos maiores do arquiteto da Revolução de 1930. Vejamos ações e reações desses dois companheiros revolucionários. Getúlio mandou fechar uma entidade da qual Oswaldo Aranha era dirigente. Este confessou a Góes Monteiro sentir “haver notado então que o Getúlio ou era autor ou queria assumir a responsabilidade pela autoria desse desacato ao seu amigo e ministro”. Mais: o presidente boicotou a ida de Aranha aos Estados Unidos a convite de Roosevelt. Aranha sentiu o golpe e assim externou seu descontentamento ao embaixador dos Estados Unidos, então, seu amigo: “o que mais ressentia era sua recusa [de Getúlio] de deixá-lo aceitar o convite do Secretário [de Estado] Hull para visitar os Estados Unidos”, disse ele. Mais ainda: outro fato que profundamente o desgostou se centrava na postura de Getúlio na luta interna que travava com o grupo do General Dutra. Vargas se mostrava favorável ao grupo do general.
As decepções com o velho amigo fizeram ressurgir inúmeras vezes uma atitude costumeira na relação desses dois companheiros: o de Aranha colocar o cargo à disposição. Desta vez, contudo, não adiantava Getúlio apelar pelo seu lado emocional. A decisão estava tomada. Aranha redigiu uma lacônica carta de demissão do Ministério das Relações Exteriores com os seguintes dizeres:
“Há dez dias aguardo a minha demissão. Não mereci, nesses longos dias, qualquer decisão tua ou do Governo. Essa demora só posso interpretar como mais uma falta de consideração do amigo ao Ministro. Nada mais me resta, pois, do que deixar o Ministério por ato próprio, do que te dou comunicação e darei às nossas missões”.
O pedido de demissão de Oswaldo Aranha o levou a um breve período de ostracismo, no qual se voltou para suas atividades particulares focadas na profissão de advogado. A vida pública, porém, voltaria a falar mais alto. Quem o reabilitou para a mais importante missão foi um velho adversário agora no poder: Eurico Gaspar Dutra, então, Presidente da República. E assim o arquiteto da Revolução de 1930 rumou novamente para os Estados Unidos e para sua inserção total no lugar que o levaria ao patamar dos grandes estadistas do mundo moderno: à Organização das Nações Unidas ─ ONU. Inseria-se o ex-chanceler do Brasil não mais em interesses nacionais e continentais. Seu vôo era bem mais amplo. Este se centrava nos ares do mundo!
A ONU, O ESTADISTA E A HISTÓRIA
A missão que o governo do Marechal Eurico Gaspar Dutra incumbiu Oswaldo Aranha de cumprir o levaria ao cume das discussões internacionais das quais um brasileiro jamais ativamente, como ele, participou. Na condição de representante do Brasil no Conselho das Nações Unidas, o cargo mostraria ser menor do que o prestígio de seu ocupante.
A prova mais evidente desse prestígio se fez notar na sua eleição para presidir a primeira sessão da ONU. Endossaram sua candidatura membros permanentes do Conselho de Segurança. Além desses, contribuiu para sua vitória o apoio maciço dos delegados latino-americanos. Resultado: dos 50 votos possíveis, o representante brasileiro recebeu 45.
Estava assim o arquiteto da Revolução de 1930 credenciado para liderar assuntos que não diziam mais respeito à província que representava, mas a toda humanidade. Assuntos como o desarmamento, especialmente de armas atômicas; assuntos relativos à administração de ilhas no pacífico que o Japão controlava; assuntos envolvendo a Albânia, Grécia ─ enfim: assuntos que diretamente interessavam às inúmeras nações que emergiam de um mundo Pós-Segunda Guerra.
O palco era de fato mundial e, nesse, Oswaldo Aranha era dos mais expressivos atores. Saiu-se muito bem no trato de questões dessa natureza. Mas foi em outra questão muito delicada que, mais uma vez, seu prestígio falou mais alto: foi eleito para presidir a histórica segunda sessão da ONU que criaria o Estado de Israel.
Oswaldo Aranha chegou lá, apesar do Brasil! Sim, do Brasil e de gente pequena do Itamaraty que não desejavam sua eleição. Entre estas, o próprio chanceler Raul Fernandez que certamente não se sentia confortável com a projeção internacional do embaixador. “O Brasil não estava ‘solicitando’ a eleição de Aranha”, assim se posicionou o Itamaraty na época. A resistência da paróquia foi, no entanto, menor que o prestígio que o estadista desfrutava pelo mundo afora. Depoimentos de inúmeros de seus colegas evidenciavam sua qualidade de liderança. “Conversar com Aranha, escutá-lo falar sobre o futuro do mundo, especialmente dos Estados Unidos e da América Latina, era um regalo de inteligência”, disse a respeito dele o Embaixador chileno Hernán Santa Cruz.
Vale ainda ressaltar que o arquiteto da revolução de 1930 chegou em tão alto patamar sem o apoio dos Estados Unidos, que ele tão sinceramente defendeu na sua vida pública. E o motivo era um só: os norte-americanos viviam não mais a era do dileto amigo de Oswaldo Aranha ─ Franklin Roosevelt ─ mas sim a era Trumann. Mais uma vez, contou a estatura de seu nome para vencer o “tio Sam” em sua própria terra.
Posto isso, creio ser oportuno acrescentar o relato de Stanley Hilton ao descrever o emocionante ambiente que pairava em torno da histórica segunda Sessão presidida pelo arquiteto da Revolução de 1930 e que selou definitivamente seu lugar no apogeu dos grandes estadistas mundiais:
“A sessão decisiva, histórica, ocorreu no sábado, 29 de novembro, em atmosfera carregadíssima. Não havia mais espaço para espectadores no longo salão onde a Assembléia realizava suas sessões nem corredores; cerca de 10.000 pessoas em vão haviam solicitado passes por telefone e, na esperança de conseguir ingresso, uma multidão calculada em mil pessoas se concentrou diante do único portão por onde entrava o público. As cabines de vidro nos lados do salão, usadas pela mídia, regurgitavam de jornalistas e comentaristas de rádio. Em média, 125 jornalistas acreditados perante a ONU cobriam diariamente as sessões, além de setenta correspondentes de rádio, representando quase vinte países ─ e todos pareciam estar em seus lugares […] Externando um nervosíssimo nascido da consciência do momento histórico e uma firmeza nascida de um senso de justiça, Aranha, após ler o projeto, sempre em inglês, anunciou que se tratava não de um pedido para adiar o debate, e sim de um assunto novo; portanto, a Assembléia prosseguiria primeiro com o voto sobre o relatório do comitê ad hoc […] declarou que se procedesse a votação.”. Os que são a favor, dirão sim; os que são contra dirão não ─ e os que se abstenham, sempre sabem o que dizer”. Afirmou, provocando risadas.
Um por um, então, os representantes dos Estados-Membros atenderam à chamada. Quando a França votou a favor, houve aplausos do público porque essa hora o governo francês se mostrava hesitante. Aranha energicamente deu sete marteladas para silenciá-los e declarou, em voz severa, que não toleraria qualquer interferência com a votação. Feita a contagem, Aranha anunciou o resultado. “A resolução do comitê ad doc para a Palestina foi adotada por 33 votos, 13 contra, 10 abstenções”.
E assim nasceu a partição da Palestina e corporificou-se o Estado de Israel e a consequente gratidão dos judeus ao arquiteto da Revolução de 1930. O arquiteto da Revolução de 1930 era, naquele fim de Segunda Guerra Mundial, a face mais visível de quem fez história e por ela é registrada.
O filho de dona Luíza voltou para o Brasil internacionalmente consagrado. Por muito pouco não ganhou ele o prêmio Nobel da Paz. Na sua chegada, no Aeroporto Santos Dumond, uma pequena multidão o aguardava entusiasticamente, todos estavam lá, menos um grande ausente: não compareceu o representante do Itamaraty. Coisas da Província. Vale ainda ressaltar uma ironia do destino: o homem que recebeu o reconhecimento do mundo desde os tempos em que foi embaixador do Brasil nos Estados Unidos na era Roosevelt, culminando com sua atuação direta na criação do Estado de Israel; o homem que lidou com delicadas questões diplomáticas inerentes a inúmeros países não conseguiria, em seu próprio país, acalentar aquele que foi o maior sonho do seu ser: o de ser Presidente da República. Coisas do velho Vargas? Certamente, a fome de poder da raposa dos pampas não admitia sombras. Política e amizade pessoal eram duas coisas que não se misturavam entre líder e liderado. Como explicitamos nestes escritos, as inúmeras situações em que Oswaldo Aranha se indispôs com Getúlio Vargas deram-se no campo político; no campo pessoal, sempre, prevaleceu uma amizade sincera entre eles. O arquiteto da Revolução de 1930 foi fiel até o túmulo e depois deste à velha raposa, a quem sempre venerou como a um pai.
SEGUNDO SÓ DE GETÚLIO
Getúlio Vargas voltou ao poder nas eleições de 1950, agora, pelos braços do povo. A vitória começou mesmo antes da eleição, no momento em que ele não apoiou a candidatura de Oswaldo Aranha. O fascínio pelo poder falava sempre mais alto no sangue do velho Vargas. Quanto a isso, observa Stanley Hilton que “mais uma vez as esperanças de Aranha foram frustradas. Vargas estava manobrando para lançar sua própria candidatura por isso não lhe interessava a de Aranha”.
Nos próximos dois anos e meio do líder da revolução de 1930 no poder, Oswaldo Aranha permaneceria fora do governo, mas continuava a ser o que sempre foi da família Vargas: uma pessoa da mais alta intimidade. Era ele uma espécie de conselheiro informal do presidente. Não demorou muito para que a velha cena entre Vargas e Aranha voltasse a se repetir: Getúlio lançar o convite para Oswaldo participar diretamente do governo, e este relutar para, enfim, ante a insistência do amigo, retornar à cena política. O cargo era novamente o Ministério da Fazenda. O sentimento que ligava os dois homens públicos era de dívida. “Esta dívida […] é a razão íntima de me haver decidido a renunciar à vida particular, tranquila, próspera e feliz, e à profissional, rendosa e agradável, para assumir a direção do setor mais exposto, trabalhoso e responsável do governo”, assim se expressou o arquiteto da Revolução de 1930 em seu discurso de posse. Oswaldo Aranha serviu a Getúlio até aquele dia trágico que levou Vargas, ante a enormes pressões políticas que vinha sofrendo, a explicitar o ato que, em outros momentos em sua vida, já havia manifestado desejo: a vontade de por fim na própria vida. O líder da Revolução de 1930 carregava consigo tendências suicidas. Deu um tiro no coração às 8h:30min, daquele dia 24 de agosto de 1954.
Aranha ainda estava acordado quando o telefone tocou. Era Benjamim Vargas, irmão do presidente, comunicando o suicídio do amigo. Ao tomar conhecimento do fato, parecia que o mundo tinha caído repentinamente nas costas do filho de dona Luíza. Foi um choque!
Um choque que Stanley Hilton consegue expressar num momento narrativo, que é o elo inquebrantável que unia Oswaldo Aranha a Getúlio Vargas: “Chocado [Aranha] como nunca estivera, partiu para o Catete; pelo rádio do carro, soube que Vargas se suicidara e chegou ao Palácio em estado de desespero. A cena no quarto de Vargas era comovente. Vendo o corpo do homem que não somente fora seu companheiro desde o início de sua vida pública, mas a quem queria como a um irmão, Aranha não podia conter as lágrimas. Iniclinou-se sobre ele alguns segundos, então, levantou e abraçou Benjamim. ‘Ele morreu para não nos sacrificar’, disse, chorando, ‘Foi um homem extraordinário. Sabia que nós dois teríamos morrido por ele’”. Nisso, o genro de Getúlio Amaral Peixoto entregou a famosa carta testamento a Oswaldo Aranha para que ele, ainda em lágrimas, comunicasse para o povo brasileiro, com a voz repleta de emoção, o suicídio de seu grande amigo.
O suicídio de Getúlio reforçou a vontade do arquiteto da Revolução de 1930 de abandonar de vez a vida pública. Não teria mais ânimo para servir a outro presidente como servira a Getúlio Vargas (ainda mais a Café Filho, a quem ele e o grupo palaciano não confiavam). Mas Oswaldo Aranha era a história viva de tudo aquilo que o legado getulista representava. Aos poucos, foi percebendo que cabia a ele “contribuir na medida do possível para proteger seu legado [o de Getúlio]”.
Ciente disso, articulou com sucesso a candidatura de João Goulart na chapa vitoriosa de Juscelino Kubistchek. JK reconheceu que a aliança com o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) foi articulada graças à liderança de Oswaldo Aranha. Sem essa aliança o então Governador de Minas Gerais não se tornaria Presidente.
Com JK na presidência, Aranha se tornou uma espécie de conselheiro informal dele.Quiseram lançar seu nome a vice na chapa encabeçada pelo Marechal Lott para sucessão do mineiro de Diamantina. O arquiteto da Revolução de 1930, todavia, recusou porque tinha algo claro na cabeça e naquele coração cheio de emoção; e só conseguiria ser de um homem só: Getúlio Vargas. Oswaldo Aranha foi fiel à memória do legado getulista mesmo depois de sua morte.
A MORTE DO ESTADISTA E O LUGAR NA HISTÓRIA
“Doutor a dor está voltando”, disse ele ao médico com os punhos fechados e batendo intensamente no peito. Foi assim que o arquiteto da Revolução de 1930 se despediu dessa vida para entrar na história. O médico tentou inutilmente ressuscitá-lo. Foi um esforço em vão do especialista. O enfarte fulminante acabara de matar uma das mais importantes figuras da vida pública brasileira.
A notícia logo se espalhou e com ela veio o sentimento da importância da perda. De imediato, os mais relevantes nomes da República rumaram para a casa de Oswaldo Aranha. João Goulart, o Marechal Lott, Tancredo Neves, Amaral Peixoto, o Brigadeiro Eduardo Gomes. Estavam todos lá para prestar suas últimas homenagens ao arquiteto da Revolução de 1930. A repercussão foi imediata; a dor, sincera.
“Foi um dos golpes mais profundos que recebi em minha vida” disse João Goulart. “Oswaldo Aranha foi sem dúvida a figura exponencial de sua geração”, declarou Tancredo Neves. “É uma página da história do Brasil que se volta”, assim se expressou Jânio Quadros. De Salvador, falou, com sentimento expresso no timbre de voz, o governador Juraci Magalhães: “é uma perda irreparável. Estou com a alma dilacerada pela perda do meu melhor amigo na política brasileira”.
Do mundo inteiro chegaram condolências pela morte do chanceler. Dos Estados Unidos, da Europa, de Israel ─ enfim ─ de todas as partes se fazia notar a dimensão do estadista que se foi. “Oswaldo Aranha é um nome que ficará para sempre gravado na memória de Israel”, declarou o porta-voz do governo daquele país. Com Oswaldo Aranha, foi-se o tempo dos “homens de bigode”, cuja honra valia mais que o culto à esperteza que há muito tempo permeia a vida pública brasileira. Poucos homens públicos conseguiram como ele entender o Brasil econômica e socialmente. Poucos homens como ele conquistavam a admiração de aliados e adversários pelas atitudes.
Ao encerar estas avaliações a respeito dos escritos de Stanley Hilton, creio ser oportuno citar a seguinte indagação conclusiva: que tipo de país teríamos senão tivesse passado pela vida pública brasileira uma personalidade da estatura de Oswaldo Aranha? Creio que diferente do que hoje somos. A começar pelo movimento do qual o filho de dona Luíza foi o grande arquiteto: a Revolução de 1930. Teria esse movimento, que conduziu o Brasil à modernização conservadora, sido vitorioso? Tenho minhas dúvidas.
Tanto Vargas como Aranha são filhos do mesmo pai: o positivismo que pregava o progresso dentro da ordem. Sendo um conservador, o grande chanceler revolucionário vivenciou e direcionou a economia do país rumo a uma nova direção do sistema político comandado por Getúlio Vargas. No âmbito internacional, a presença e prestígio de Oswaldo Aranha foram fundamentais para a grande decisão política que tomou o governo Vargas nos tempos de guerra: se aliar aos Estados Unidos e colher os frutos dessa decisão com resultados concretos no pós-guerra. Ainda no âmbito internacional, a figura de Oswaldo Aranha se tornou equivalente ─ e em muitas ocasiões até superior ─ a de Vargas. E isso muito pode ser atribuído à liderança do chanceler em assuntos fundamentais para a humanidade.
Enfim, sem Oswaldo Aranha os alicerces do Brasil moderno não teriam se edificado como foram na era Vargas, que, certamente, constituiu-se no período fundamental para a construção do Brasil Republicano. Sem lugar a dúvidas, o arquiteto da Revolução de 1930 foi um grande homem público! E, nesse sentido, os escritos de Stanley Hilton ajudam a colocar no devido lugar a grandeza de sua personalidade pública.
*Salatiel Soares Correia é Engenheiro, bacharel em Administração de Empresas, mestre em Planejamento pela Unicamp