Povos do Cerrado: os guardiões do bioma mais ameaçado do Brasil

10 setembro 2025 às 17h44

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*Jornalista Thais Souza
Celebrado em 11 de setembro, o Dia Nacional do Cerrado nos convida a refletir sobre um paradoxo brasileiro. A savana mais biodiversa do mundo é também um dos biomas mais ameaçados do planeta. Mas, enquanto os alertas sobre o desmatamento se multiplicam, uma verdade incontestável emerge dos dados e dos territórios: onde há povos e comunidades tradicionais, o Cerrado resiste. Esse reconhecimento mostra que a conservação da nossa sociobiodiversidade passa, fundamentalmente, por valorizar e proteger os modos de vida de quem sempre cuidou dessa terra.
São muitos povos, com histórias e culturas diversas, todos com uma profunda conexão com seu território. Indígenas, quilombolas, geraizeiros, vazanteiros, ribeirinhos e tantos outros formam, juntos, a identidade viva do Cerrado.
Para eles, o bioma não é apenas um conjunto de recursos a serem explorados, mas uma entidade sagrada — a “casa-mãe” que provê sustento, cura, cultura e identidade. A coletora de sementes e geraizeira Edianilha Pereira Ribas expressa esse sentimento:
“Quando comecei a conhecer histórias dos meus antepassados, entendi que o Cerrado não é só meu bioma, mas um órgão vital para o planeta. Para além disso, não o considero apenas minha mãe, mas também minha avó, aquela que, nas nossas angústias, é refúgio e acalento. Poder fazer parte de um bioma tão rico e lindo é muito gratificante, pois com ele, por ele e através dele, me tornei sucessão de agricultores e coletores de sementes nativas.”
A narrativa de que os povos tradicionais são os verdadeiros protetores do Cerrado é comprovada por dados. Relatórios anuais do MapBiomas mostram que Terras Indígenas e territórios quilombolas são as áreas mais preservadas, funcionando como barreiras contra o avanço do desmatamento. Essa proteção é fruto direto de modos de vida que se baseiam no uso sustentável e no conhecimento profundo dos ciclos naturais.
Um exemplo emblemático é o Povo Kalunga, em Goiás. Enquanto o estado preserva apenas 30% de sua vegetação nativa, o território Kalunga mantém 83% de sua área intacta — resultado de um modo de vida que depende do Cerrado em pé. Essa conservação, construída ao longo de 300 anos de ocupação, foi reconhecida internacionalmente quando a ONU declarou o território como o primeiro “Território e Área Conservada por Comunidades” (Ticca) do Brasil. Ainda assim, a comunidade enfrenta o desafio da insegurança jurídica, já que luta pela regularização fundiária completa de seu território ancestral.
Além de proteger o que ainda está de pé, essas comunidades também são protagonistas na recuperação do bioma. Mulheres, jovens e anciãos guardam o conhecimento ancestral sobre sementes, plantas medicinais e práticas agroextrativistas que mantêm o Cerrado vivo e produtivo.
Sementes do Cerrado
Um exemplo prático é o projeto “Sementes do Cerrado: caminhos para o fortalecimento da cadeia de restauração ecológica inclusiva nos corredores de biodiversidade”, executado pela Rede de Sementes do Cerrado (RSC). A iniciativa, com apoio de coletores e restauradores locais, prevê a restauração de 200 hectares do bioma.
Partindo da ideia de que não existe restauração ecológica sem inclusão social, Natanna Hostmann, vice-presidente da RSC e coordenadora do projeto, destaca o protagonismo das comunidades:
“São homens e mulheres que, há gerações, conhecem os ciclos da natureza, os períodos de frutificação e a forma correta de colher cada espécie sem comprometer sua regeneração. Essa sabedoria, combinada com o apoio técnico da RSC, garante que a restauração aconteça de maneira eficaz e respeitosa com os ecossistemas.”
Ela explica que o projeto vai além da recuperação ambiental:
“Por meio da iniciativa, oferecemos formações em coleta, restauração e gestão. A ideia é construir com essas comunidades uma atuação como agentes de transformação, para que possam dialogar com os setores público e privado, destravando políticas e parcerias fundamentais para a continuidade do trabalho”, acrescenta.
Outro impacto do projeto é o fortalecimento da economia local. A coleta de sementes, organizada em rede, garante renda às famílias, amplia oportunidades de trabalho no campo e valoriza o conhecimento tradicional. Dessa forma, a iniciativa demonstra que é possível unir conservação da biodiversidade e justiça social, construindo um modelo de restauração que beneficia tanto o meio ambiente quanto as pessoas.
Ciência
Essa expertise também move a ciência. A parceria entre pesquisadores e comunidades tradicionais tem gerado inovações valiosas.
Jamily Pereira, coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento da RSC, ressalta:
“É importante salientar que a RSC nasceu dentro da Universidade de Brasília (UnB) e, desde então, essa colaboração garante que o conhecimento científico dialogue com a prática das comunidades coletoras, transformando a forma como a própria academia faz pesquisa.”
Um marco dessa parceria foi a mudança na origem das sementes usadas nos estudos. Antes, os pesquisadores coletavam sementes por conta própria, em caráter experimental. Hoje, graças à parceria com a RSC, os laboratórios recebem sementes de base comunitária, oriundas do trabalho de coletores locais. Essa transformação impactou diretamente os testes de pureza, germinação, armazenamento e qualidade, que deixaram de ser apenas exercícios teóricos e passaram a responder a demandas reais da cadeia produtiva da restauração.
Para Jamily, o impacto vai além da técnica:
“Estudantes e professores, ao lidarem com sementes comunitárias, passam a conhecer as histórias, os territórios e os modos de vida por trás de cada lote. Já os coletores, ao visitarem os laboratórios, podem ver suas sementes sob a lupa, entender os testes e discutir os resultados. Esse intercâmbio amplia horizontes, fortalece a valorização mútua e inspira novas perguntas de pesquisa.”
Ela destaca ainda que o retorno do conhecimento às comunidades é constante, seja em reuniões, formações, conversas no campo ou no contato direto entre pesquisadores e coletoras. Muitas vezes, os próprios comunitários enviam dúvidas e sugestões, alimentando novamente a roda do conhecimento. Essa experiência mostra que ciência e saber tradicional não competem: se complementam.
Povos tradicionais
Morador da Aldeia Vargem Grande, em Itacarambi (MG), e membro da Cooperativa dos Agricultores Familiares e Extrativistas do Vale do Peruaçu (Cooperuaçu), Valdomiro da Mota Brito, conhecido como Buda, afirma que o extrativismo sustentável é um caminho de afirmação e autonomia:
“Quando a gente comercializa as sementes e produtos do baru, da cagaita, do pequi, estamos mostrando para o Brasil que é possível gerar riqueza mantendo o Cerrado em pé. Nosso trabalho fortalece a comunidade e prova que o Cerrado vale muito mais vivo.”
Para ele, o grande desafio é conscientizar a sociedade sobre a importância vital do bioma. Além do desconhecimento sobre seu valor, a crise climática já impõe uma ameaça direta e crescente.
“Os desafios são imensos. Como pequenos produtores, já não conseguimos produzir como antes. Vemos frutos nativos, como o pequi, o araticum e o coquinho-azedo, simplesmente morrerem. Ficamos muito tristes, pois o Cerrado ainda é visto por muitos como o patinho feio, quando na realidade ele é o socorro do mundo. É uma pena que governantes e a maioria das pessoas não percebam isso a tempo de conter a devastação que avança por todo o Brasil”, lamenta.
Por fim, Buda faz um apelo por reconhecimento, denunciando a desconexão entre campo e cidade:
“É fundamental que todos entendam que a nossa sobrevivência e a da biodiversidade dependem de um trabalho em conjunto. Precisamos que valorizem quem planta, que se atentem a quem cuida da terra, pois nós somos o pilar que sustenta a sociedade.”
No Dia do Cerrado, a mensagem que ecoa dos territórios é clara: para salvar o bioma, é preciso ouvir, respeitar e fortalecer seus guardiões. Apoiar as comunidades tradicionais significa demarcar e titular seus territórios, investir em cadeias produtivas da sociobiodiversidade e garantir que suas vozes estejam no centro de todas as decisões que afetam o Cerrado.
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