“Como não tem leão por aqui, você tem que matar um jacaré por dia para sobreviver da música”

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Compositor, cantor e instrumentista, Genésio Sampaio Filho

Gilson Cavalcante

Compositor, cantor e instrumentista, Genésio Sampaio Filho, cujo nome artístico adotado é Genésio Tocantins, é natural de Goiatins. Aprendeu a tocar violão de forma autodidata. Seu pai era lavrador, trovador e cordelista. Com ele, aprendeu a cantar versos em feiras de sua região de nascimento. Com a mãe, frequentou rodas de folias, quando aprendeu cantos do Divino. Ainda criança mudou-se com a família para a cidade de Araguaína, Norte do Tocantins, e posteriormente para a cidade de Ceres, em Goiás.

Iniciou sua carreira participando de festivais regionais e em seguida por todo o Brasil. Seu primeiro LP, “Rela bucho”, foi lançado pela RGE em 1988. No ano seguinte ganhou com este disco o 2º Prêmio Sharp de Música, recebendo, o Troféu Ano Dorival Caymmi na categoria Revelação da Música Regional Brasileira. Gravou com artistas como Fagner, Pena Branca e Xavantinho, Rolando Boldrin, entre outros. Entre seus parceiros estão Juraíldes da Cruz, Braguinha Barroso, Wanda d’Almeida, Hamilton Carneiro, João Gomes, Beirão, Salgado Maranhão e Telma Tavares.

Em 1990, recebeu o prêmio Fiat. Lançou em 1996, o CD “U cantante”, pelo selo Mercantante. Dois anos depois, lançou pelo selo Brasis o CD “Brasis – As canções e o povo”.

Em 2000, foi classificado para as eliminatórias do Festival da Música Brasileira, promovido pela TV Globo, oportunidade em que concorreu com sua composição em parceria com Beirão, “Baião internauta”. Naquele ano, participou do Festival Novos Talentos defendendo a música “Nóis é jeca mas é jóia”, de sua autoria e Juraildes da Cruz, que se tornou rapidamente um clássico da música regional. Em abril de 2006, participou do Projeto Pixinguinha, em caravana que passou por Cachoeiro de Itapemirim (ES), circulando por Campinas (SP), Tubarão (SC) e Guaratinguetá (SP), junto com a cantora paulista Cris Aflalo, o piauiense Gilvan Santos e a Banda de Pífanos de Caruaru. O artista mistura ritmos e cria um sotaque na música que classifica como Sertanejo Tropical.

O Tocantins completa 26 anos de criação. O Estado já tem uma identidade musical própria, um sotaque que o diferencie de outras regiões?
É muito difícil relacionar que há, especificamente, uma música tocantinense ou que há uma identidade, porque isso é um processo de construção de toda uma coletividade. Dentro de um processo histórico de uma região, de hábitos, costumes, gastronomia, saberes e vários outros aspectos culturais que se confundem com a história de Goiás, Maranhão, Pará e parte da Amazônia, temos uma história e uma cultura muito rica. Temos influência musical de toda essa região. Desde o ponto de vista da biodiversidade – aqui no Tocantins comporta um ecótono – o bioma Cerrado, floresta e zona de Pantanal, e essa geografia reflete diretamente na questão cultural também. Temos influência também da região Sudeste (São Paulo e Minas), da Bahia, Estado com que temos uma ligação direta desde o ciclo do ouro, dos animais curraleiros. Então, existe esse Tocantins baiano. O Bico do Papagaio, que considero a Mesopotâmia brasileira pela confluência de dois rios (Araguaia e Tocantins) importantes da bacia hidrográfica brasileira já tem influência do Maranhão, com os seus ritmos, com seus bumbas-meu-boi, seus cacuriás, influência também do Pará, com seu carimbó-siriá, a música da Amazônia também não deixa de penetrar no universo musical das composições tocantinenses. Tudo isso são elementos que precisam ser desenvolvidos, compartilhados dentro da música tocantinense, da música que é produzida hoje no nosso Estado.

E a influência de Goiás na musicalidade tocantinense?
Tem muita influência por conta das músicas, por conta de ser aquela coisa interiorana. Influência nas artes e na cultura em si. Em termos religiosos, temos as mesmas folias, procissões e romarias, como tem em Goiás e em Minas Gerais. A Romaria do Bonfim é tradicional aqui no Tocantins e atrais milhares de pessoas. A festa do Divino em Goiás, a catira, tudo está contido no DNA da música feita por essas bandas tocantinenses. Do ponto de vista social, antropológico e étnico-musical a nossa musicalidade tem uma identidade definida sim, a ponto de a catira praticada aqui no Tocantins ter uma diferença da catira feita em Goiás e Minas Gerais, diferença de sotaque. A catira daqui é feita de pandeiro, diferente da feita em São Paulo, por exemplo. Não são palmas, são sapateados e pandeiros. Há instrumentos percussivos colocados à disposição da praticada nos locais de origem, segundo os estudiosos, mas aqui tem essa diferenciação na levada das cantigas, cantilenas e bordões. Existe muito dessa manifestação histórico-cultural nas cidades da região Sudeste do Estado, principalmente, em Natividade, Monte do Carmo, Silvanópolis, Santa Rosa e Porto Nacional. São 12 pandeiros, com violas e o pau comendo. É uma mistura do sagrado com o profano, em determinados momentos dos rituais e das festas. Enfim, a catira de cá difere das de lá. Mas temos influência da musicalidade de várias regiões do Brasil. Tudo isso são matrizes de uma música que tem uma identidade étnico-musical .

E a cultura indígena, como entra nesse processo de criação musical tocantinense?
Exerce também grande influência, a ligação é grande. Temos uma levada que envolve cânticos e mantras indígenas, do coco, da embolada, do xote, do xaxado, do baião e, por que não, do samba. Todo esse movimento musical feito aqui tem essas nuances. Obviamente que o poder de agregar todos esses elementos perfaz a um mergulho na cultura musical. As bandas e os regionais não deixam também de carimbar o nosso fazer musical. São as lembranças quando adolescente pelo interior do Estado, dessa região que hoje é o Tocantins.

Os compositores e músicos do Tocantins necessitam de um movimento para projetar a nossa música em outras regiões do Brasil?
Com certeza. Eu acredito que só através desses movimentos que a coisa acontece como uma cena. Os movimentos acontecem com mostras, com festivais e com o intercâmbio do artista urbano com os mestres, porque não pode haver essa desconexão do Tocantins moderno, como se fala, com as nossas raízes. Palmas, nossa capital, precisa ter essa conexão e essa interlocução.

"A catira do tocantins é feita de pandeiro, diferente da feita em São Paulo, por exemplo. Não são palmas, são sapateados e pandeiros. É uma mistura do sagrado com o profano”
“A catira do tocantins é feita de pandeiro, diferente da feita em São Paulo, por exemplo. Não são palmas, são sapateados e pandeiros. É uma mistura do sagrado com o profano”

Palmas abriga gente de praticamente todas as regiões do Brasil. Isso forma um verdadeiro caldeirão cultural. Essa mistura não define um traço, um sotaque desse Tocantins moderno?
Esse sotaque vai sendo adquirido através da culinária e do conhecimento da própria cultura daqui, que existe há muito tempo, aquilo que já existia como manifestação cultural desde há muito tempo e não pode ser esquecida nem relegada ou descartada. É possível você conversar com as pessoas que estão em Palmas ou em outra cidade do Estado e que já se consideram tocantinenses.

É possível misturar forró com vanerão, samba e coco, por exemplo? Essa miscelânea dá liga?
Eu acho que tudo isso faz parte. Por exemplo, nós temos manifestações na área da música mais tradicional como a catira e a rodas de viola, a dança de roda mais especificamente, uma modalidade que é praticada aqui no Estado, a súcia, a curraleira por conta de todo um sotaque em que a música é abordada na nossa região. Com a vinda da tecnologia utilizada na música e o acesso à internet, com certeza que surgiram outras criações e concepções para o processo de criação musical. Esse intercâmbio eu acho ainda que falta para se dizer que temos uma identidade tocantinense em termos musicais, ou se dizer que toda música produzida no local é do local.

A música sertaneja, não a genuinamente caipira de tempos idos, não abafou um pouco essa música dita de raiz?
Com certeza. A música sertaneja da forma como é praticada hoje, tratada em nível de mercado, impõe um gosto na grande maioria da população através da mídia, que a massifica com uma superexposição. É a temática do hedonismo, que é uma dedicação ao prazer como estilo de vida e reflete os anseios de consumo e ostentação, as carências, os desencontros amorosos. A música sertaneja que é produzida hoje reflete tudo isso. Mas existe outra música sertaneja sendo produzida por compositores que pesquisam e buscam traduzir um pouco desse Brasil brejeiro, caipira, desse Brasil musical, que não é só o samba, vanerão, baião, mas que aqui adquire um novo sotaque.

O sr. sempre alimentou a ideia de realizar um movimento que repercutisse a música tocantinense além-fronteiras. O que falta para a iniciativa frutificar?
Olha, a gente sempre conversou com outros compositores como Braguinha, Dorivan, Juraíldes, com a preocupação de trabalhar um movimento nesse sentido, porque sabemos que, só através da coletividade, é possível a gente romper fronteiras e cair no gosto popular.

Como o compositor tocantinense sobrevive?
É a arte de sobreviver sem dinheiro (risos). Como não tem leão por aqui, você tem que matar um jacaré por dia.

No seu caso, que não gosta de tocar em barzinhos, é mais dificil?
Verdade. Mas é porque não é um mercado que condiz com aquilo que faço, que é música autoral. No bar, você tem que atender toda uma clientela com pedidos de músicas que não estão no seu repertório. A música é apenas um tira-gosto (ironias), o principal é a bebida, a falação, a conversa, etc. Para o artista que tem um trabalho autoral, que é compositor, resta procurar os espaços, para adquirir uma clientela, um público que goste do nosso repertório. Há certa diferença entre esse mercado comercial da música e o mercado alternativo. A prova disso são os mais de 300 festivais realizado pelo Brasil durante o ano, existem sites especializados para a música alternativa independente. Há cidades que atraem muitos turistas através de seus festivais de música, que é uma forma de se mostrar a produção cultural e artística alternativa. A música daqui não vai acontecer isolada da produção de audiovisual daqui, do teatro, da literatura, da dança…

Quando a cultura do Tocantins vai despontar em nível nacional?
Acho que vai depender muito da prática do encontro entre os mais variados setores da cultura e das artes. Todos os movimentos artísticos do mundo não são diferentes e aqui no Brasil não pode ser diferente, porque há uma conexão com todos os tempos e histórias.

A MPB estagnou em termos de criação e qualidade? Há uma crise de identidade na produção musical?
Não, não. Têm surgido bons nomes. Só que o seguinte: a mídia tradicional trabalha apenas um mercado. Hoje, quem quer ouvir uma boa música tem que buscar alternativas, entre elas a internet. Não tem como. Lá você encontra muitos trabalhos de pessoas que produzem, que são independentes, que produzem e lançam seus trabalhos nessa rede global. São boas músicas. Os trabalhos autorais lançados anualmente por bons artistas atestam isso, são trabalhos de qualidade.

Mas a indústria fonográfica tem investido muito no sertanejo dito universitário.
De 30 músicas executadas pelas rádios, 25 são do estilo sertanejo. Mas, na verdade, tentam passar a ideia de que é Música Popular Brasileira. Tudo no mesmo bojo.

O sr. tem falado em um tal Sertanejo Tropical. Isso contrapõe o Sertanejo Universitário? O que seria esse estilo?
O Sertanejo Tropical valoriza muito mais a poesia. A tropicalidade da nossa musicalidade. Um sotaque nosso de falar, os nossos ritmos e os argumentos utilizados, a poética mesmo. Não é uma forma de combater o Sertanejo Universitário, é apenas uma forma de mostrar o sotaque do sertanejo genuíno.