Na atual eleição municipal, marcada por um cenário preocupante, notícias falsas se espalham em telejornais de credibilidade, acompanhadas de áudios que revelam supostas confissões de crimes e vídeos de padrinhos políticos que, supostamente, ressuscitaram para declarar seu voto — tudo isso é fabricado.

As eleições deste ano, as primeiras após a popularização da inteligência artificial generativa, têm visto essas ferramentas alimentando desinformação em todo o Brasil, incluindo municípios de pequeno e médio porte.

Esses conteúdos, frequentemente disseminados por contas anônimas, utilizam vozes e imagens geradas artificialmente tanto para impulsionar candidaturas quanto para atacar adversários. Essa situação alarmante é destacada em um levantamento exclusivo realizado pelo Aos Fatos em parceria com o ICL Notícias e o Clip (Centro Latino-Americano de Investigação Jornalística), com base em decisões da Justiça Eleitoral.

Desde o início do ano até o primeiro turno, realizado no último dia 6, a Justiça Eleitoral publicou decisões sobre pelo menos 159 casos relacionados ao uso de inteligência artificial (IA) na propaganda eleitoral. As principais conclusões do levantamento são:

  • Os vídeos publicados no Instagram foram os mais questionados, resultando em 132 ações que pediam a remoção de vídeos, sendo 79 deles compartilhados na plataforma da Meta.
  • Em seguida, estão o WhatsApp, com 52 vídeos, e o Facebook, com 18 — ambas também pertencentes à Meta.
  • TikTok (3) e Telegram (1) completam a lista. É importante ressaltar que um conteúdo pode ter sido publicado em mais de uma plataforma simultaneamente, o que explica o fato de a soma ser maior do que o total de casos.
  • Nenhuma ação foi registrada contra posts no Kwai.

O levantamento foi realizado no Diário da Justiça Eletrônico de todos os Tribunais Regionais Eleitorais do país, utilizando palavras-chave. Os dados analisam os pedidos apresentados nas petições iniciais, sem considerar se o uso da inteligência artificial foi reconhecido pela Justiça.

A maior parte das ações (30) alega que a inteligência artificial foi utilizada para alterar o áudio dos vídeos, criando, por exemplo, uma narração sintética não sinalizada.

Além disso, foram identificados 20 processos relacionados a fotos que supostamente foram geradas artificialmente, além de oito processos envolvendo áudios. No caso dos áudios sintéticos, a principal plataforma de difusão foi o WhatsApp.

Região Nordeste sai na frente

A pesquisa revela que a região Nordeste abriga mais da metade dos processos judiciais (81), embora represente menos de um terço dos municípios do país. O Ceará é o estado com o maior número de casos, totalizando 19 ações, seguido de perto por Pernambuco e Bahia, com 18 cada.

O procurador de Justiça Emmanuel Girão, coordenador do Centro de Apoio Operacional Eleitoral do Ministério Público do Ceará (MPCE), atribui a alta quantidade de casos à tradição do estado em matéria de direito eleitoral, o que pode levar a uma maior judicialização.

Ao examinar os casos identificados na pesquisa, Girão classificou a situação como de baixa gravidade. “Aqui, o nível de inteligência artificial [mais avançada] ainda não chegou”, observa o procurador.

Essa avaliação é baseada na constatação de que a maior parte das ações no estado questiona o uso da inteligência artificial na criação de paródias ou na omissão de informações sobre a utilização da tecnologia — uma exigência da resolução 23.732/2024 do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

A única exceção foi uma deepfake registrada em São Gonçalo do Amarante, um município com cerca de 123 mil habitantes. Um vídeo que circulou no WhatsApp simulou um telejornal local da TV Verdes Mares, afiliada da Globo, com o intuito de associar o prefeito da cidade a um crime cometido contra um vereador.

A montagem utilizou imagens reais, mas alterou o diálogo entre uma âncora e um repórter para noticiar a invasão à residência do candidato a vereador Ednaldo Martins (PDT), insinuando que o assalto teria motivação política. As postagens falsas acusavam o atual prefeito e candidato à reeleição, Marcelo Teles (PT), de estar envolvido no caso.

A defesa de Teles protocolou uma ação contra o vídeo, buscando identificar o autor da produção, mas o processo foi indeferido por questões processuais, sem que o mérito fosse analisado.

Ao avaliar os casos no Ceará, Girão observa que muitas ações relacionadas à inteligência artificial enfrentaram dificuldades de tramitação, devido à dificuldade dos advogados de cidades menores em coletar e preservar provas.

O procurador também considera que, no primeiro turno das eleições, “não houve tantas fake news” no Ceará como em pleitos anteriores. As principais preocupações do MPCE e do TSE no estado neste ano estão relacionadas à ameaça de interferência do crime organizado nas eleições.

Anônimo

A utilização de perfis anônimos para propagar ataques e desinformação gerada por inteligência artificial tem sido uma constante nos processos analisados. Embora a Justiça possua mecanismos para tentar identificar os responsáveis por essas páginas, essa situação aumenta a dificuldade de responsabilizar os autores das publicações ilegais.

Em Boca da Mata (AL), um município com pouco mais de 20 mil habitantes e localizado a cerca de uma hora de Maceió, a defesa do prefeito Bruno Feijó (PP) conseguiu derrubar um perfil anônimo que divulgou deepfakes no Instagram, mas ainda não conseguiu identificar quem está por trás da campanha.

Uma das produções manipulava a imagem e a voz do prefeito e de seu tio, o ex-prefeito Gustavo Feijó, simulando falsas confissões de crimes. Outra montagem alterava os diálogos de um filme de faroeste.

O advogado menciona que, embora a qualidade dos vídeos seja limitada, as montagens apresentam “algum grau de sofisticação”, podendo confundir eleitores menos familiarizados com tecnologia.

Em julho, a Justiça concedeu uma liminar que ordenava à Meta a suspensão do perfil no Instagram e a entrega dos dados cadastrais do responsável pela conta. A decisão considerou que, além da proibição de deepfakes pela legislação eleitoral, os vídeos foram publicados em um perfil anônimo, o que afastaria o direito à liberdade de expressão.

De acordo com Veloso, a plataforma forneceu o telefone utilizado para registrar a conta, mas a defesa ainda não conseguiu identificar o administrador do perfil. “Estamos avaliando a melhor estratégia. Possivelmente, vamos entrar com uma ação criminal por calúnia para que o juiz notifique a operadora de celular a fornecer os dados cadastrais.”

Veloso acredita que a Justiça eleitoral dispõe de mecanismos eficazes para lidar com casos como esse, mas considera que o sistema de combate à desinformação poderia ser aprimorado com mais transparência e controle por parte das grandes empresas de tecnologia, a fim de evitar a proliferação de perfis falsos utilizados em práticas ilícitas.

Ajuda do ‘Além

Em pelo menos duas cidades, candidatos utilizaram a inteligência artificial para “ressuscitar” padrinhos políticos falecidos, o que gerou questionamentos de seus concorrentes junto à Justiça Eleitoral.

“Foi algo realmente inédito para mim como advogada. Nunca imaginei que a candidata traria à tona a memória de seu pai por meio do uso de deepfake”, relata Iracema Souza, advogada especializada em direito público e responsável por uma ação sobre o tema na Bahia.

O caso ocorreu em Andorinha (BA), uma cidade com aproximadamente 15 mil habitantes. Em um evento no dia 4 de agosto, a então pré-candidata à prefeitura, Lurdineia Almeida Guimarães (PT), exibiu em um telão um áudio que simulava a voz de seu pai, o ex-prefeito José Rodrigues Guimarães Filho, que faleceu em janeiro de 2022.

“Que cada cidadão andorinhense possa te abraçar fortemente, minha querida filha, e quem sabe assim você sinta meu abraço. Aos meus outros filhos, continuem apoiando sua irmã. Todos vocês enchem meu coração de orgulho”, diz a voz gerada pela IA em apoio à candidatura da petista, que não conseguiu se eleger. A cena também foi transmitida pelo Instagram.

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