As empresas de planos de saúde pretendem levar à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) uma proposta de alteração no rol de cobertura para o tratamento de pacientes com TEA (transtorno do espectro autista) e outros TGDs (transtornos globais do desenvolvimento). Para a Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), os planos de saúde não devem cobrir a totalidade do tratamento estipulado por lei. Mães de crianças autistas, no entanto, se queixam da falta de atendimento na saúde suplementar, que engloba ações e serviços privados prestados por meio dos planos.

A Associação das Mães em Movimento pelo Autismo de Goiás (MMA) que luta pela Defesa dos Direitos das Pessoas Autistas condenou a postura da Abramge. “Apenas o médico assistente, responsável pelo paciente pode indicar qual o tratamento adequado” e carga horária terapêutica.

Para ela, a justificativa de sugerir uma diretriz para o tratamento do TEA com a finalidade de evitar fraudes não faz o menor sentido, pois cada operadora de saúde já deve contar com seu próprio mecanismo de auditoria interna preventiva, se existem fraudes é porque existe falha na administração e auditoria das Operadoras.

“A preocupação da ANS por sua vez, deveria ser a fiscalização da gritante falha na prestação de serviços do setor às pessoas autistas, pois a própria agência divulgou recentemente os lucros bilionários do Setor em 2023, o que faz cair por terra qualquer discurso de prejuízos financeiros”, explicou a advogada Letícia Amaral, presidente da associação.

Ela explicou que foi uma das debatedoras no Senado em defesa da aprovação do PL2033, que se converteu na Lei 14.454/ 22 que estabeleceu o Rol da ANS como Exemplificativo, com alguns critérios. A Lei tornou obrigatória a cobertura de qualquer técnica ou método indicado pelo médico assistente desde que o método tenha evidência científica de evolução clínica nos pacientes. As entidades privadas, porém, se queixam da falta de recursos financeiros para custear o tratamento.

“Muitas Crianças autistas beneficiárias da Operadora Hapvida estão lutando por acesso a tratamento há dois anos”, denunciou Letícia Amaral. No fim do ano passado, uma das coordenadoras do plano de saúde HapVida foi presa na unidade do Setor Bueno, em Goiânia, por suspeita de não fornecer atendimento a uma criança autista que há seis meses tenta dar prosseguimento ao tratamento fonoaudiólogo. “A coordenadora confirmou que não tinha vaga e nem profissionais para atender a criança. Ela falou que não é culpa dela, que era o plano de saúde, mas ela está à frente da chefia. Já foram identificadas 70 crianças autistas que não conseguiram dar continuidade ao tratamento”, afirmou na época ao Jornal Opção.

Thaynara Garcia é mãe de uma criança autista e relatou dificuldades no atendimento pelo antigo plano de saúde. “Eu tirei ele do HapVida porque eu tava ficando doente. Você marcava a consulta, chegava lá e ela não tava liberada porque eles não tinham liberado a guia. Eu saía de Trindade para ir até a T-9 , em Goiânia, e tinha viagem perdida”.

Ela é mãe solteira, não tem veículo para se transportar e entrou com medidas judiciais contra o plano de saúde. Segundo ela, apesar da justiça ter concecido todas as liminares favoráveis, o filho de 4 anos continuou sem atendimento. A iniciativa da Abramge preocupa representantes de pacientes e ocorre no momento em que também crescem as queixas sobre a assistência prestada pelos planos.

Além da falta de atendimento aos pacientes e escassez de profissionais especializados, profissionais das entidades privadas de saúde também se queixam de falta de pagamento, assédio moral, não cumprimento do piso salarial estabelecido por lei.

Procurada pelo Jornal Opção, a HapVida ainda não se manifestou sobre o assunto.

O Ministério Público de Goiás (MPGO), por intermédio do Núcleo Permanente de Incentivo à Autocomposição (Nupia), tem mediado as demandas das mães de crianças com TEA.

Mães reunidas no MPGO com a camiseta da associação, com a presidente (Letícia) à direita. | Foto: Arquivo

Ministério Público Federal

O Ministério Público Federal (MPF) enviou à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) recomendação que visa assegurar o tratamento integral aos beneficiários de planos de saúde diagnosticados com Transtorno do Espectro Autista (TEA). O documento fixa prazo de dez dias para que o órgão regulador providencie ampla divulgação e esclareça as operadoras de saúde quanto à obrigação de arcar com número ilimitado de sessões com psicólogos, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos ou fisioterapeutas, conforme a indicação médica.

Ainda segundo a recomendação, o comunicado da ANS deve frisar que a cobertura obrigatória inclui as terapias aplicadas no ABA (Applied Behavior Analysis). Também conhecido como Análise do Comportamento Aplicada, o tratamento consiste no ensino intensivo das habilidades necessárias para que o indivíduo diagnosticado com autismo e outros transtornos globais do desenvolvimento se torne independente. O documento foi expedido nessa segunda-feira (20).

O MPF ressalta que a inaplicabilidade de limitações do número de sessões com profissionais especialistas no tratamento do autismo já foi regulamentada pela própria ANS, por meio da Resolução Normativa 469/2021 e do Comunicado no 92, ambos de julho do ano passado. Pontua, ainda, que o Código de Defesa do Consumidor garante o direito à informação clara, cristalina e adequada sobre os serviços contratados, sendo dever dos planos de saúde esclarecer os usuários sobre os tratamentos garantidos ao paciente autista.

A atuação da Câmara de Consumidor e Ordem Econômica do MPF (3CCR) tem como pano de fundo recente decisão da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que definiu pela taxatividade do rol de procedimentos e eventos em saúde da ANS. Segundo esse entendimento, os planos de saúde não precisam cobrir tratamentos e serviços médicos que não estiverem na lista obrigatória da agência. Na avaliação do MPF, o contexto de desinformação coletiva promovida pela divulgação de interpretação errônea do sentido e da abrangência do julgamento demanda providências da agência reguladora.

Histórico da reivindicação

Em 2016, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) do Ministério da Saúde (MS) aprovou o protocolo clínico e diretrizes terapêuticas do comportamento agressivo no Transtorno do Espectro do Autismo que prevê, entre outras intervenções, a terapia ABA.

O MPF acompanha a questão desde 2019, quando foi proposta a primeira ação civil pública contra a limitação do número de sessões de terapias para tratamento de autismo, em Goiás. Em seguida, foram ajuizadas ações semelhantes nos estados do Acre, Alagoas, Bahia, Ceará, Pará, Pernambuco e São Paulo, com inúmeras decisões favoráveis.

Em abril do ano passado, os Grupos de Trabalho Planos de Saúde e Consumidor, ambos da 3CCR, expediram recomendação à ANS cobrando a unificação do entendimento. Como resposta, a agência editou a Resolução Normativa 469/2021, ampliando o tratamento de pessoas portadoras do Transtorno do Espectro Autista em todo o território nacional.

Projeto de Lei n° 2033

Altera a Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, que dispõe sobre os planos privados de assistência à saúde, para estabelecer hipóteses de cobertura de exames ou tratamentos de saúde que não estão incluídos no rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar.

Chamada de Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, a lista especifica consultas, exames, terapias e cirurgias que constituem a cobertura obrigatória dos planos de saúde regulamentados, ou seja, contratados após 2 de janeiro de 1999 ou adaptados à lei 9.656/98. Segundo a ANS, o rol tem atualmente cerca de 3.000 procedimentos.

Na época da sanção do PL, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) reiterou  sua preocupação com a segurança dos usuários da saúde suplementar.

“A cobertura de procedimentos e eventos em saúde que não tiverem passado pela ampla e criteriosa análise da reguladora constitui risco aos pacientes, pois deixa de levar em consideração diversos critérios avaliados durante o processo de incorporação de tecnologias em saúde, tais como: segurança, eficácia, acurácia, efetividade, custo-efetividade e impacto orçamentário, além da disponibilidade de rede prestadora e da aprovação pelos conselhos profissionais quanto ao seu uso”, explicou a Agência.

Embora a judicialização por necessidade de medicamentos de alto custo seja comum, as operadoras de planos de saúde discutem como arcar com os fármacos. A de Planos de Saúde avalia a possibilidade de criar um fundo para organizar recursos e dividir os riscos e impactos orçamentários.

O próprio Ministério da Saúde analisa gerir um fundo para contribuir com recursos. Já a União Nacional das Instituições de Autogestão em Saúde (Unidas) também estuda a opção de resseguro, onde operadoras contratariam uma seguradora para cobrir tais custos.

Planos de saúde têm lucros bilionários

Os planos de saúde no Brasil encerraram o terceiro trimestre de 2023 registrando um lucro líquido de R$ 2,2 bilhões, de acordo com dados divulgados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

O resultado atingido no período entre julho e setembro deste ano representa uma recuperação dos planos de saúde em relação ao desempenho do terceiro trimestre de 2022. Na ocasião, o resultado líquido foi negativo em R$ 3,4 bilhões.

As operadoras médico-hospitalares, no entanto, tiveram um resultado operacional negativo acumulado de R$ 6,3 bilhões até setembro, confirmando uma tendência verificada desde o fim de 2021.

Ainda assim, o prejuízo operacional foi compensado pelo resultado financeiro recorde de R$ 8,37 bilhões, gerado, principalmente, pela remuneração das aplicações financeiras, que chegaram a R$ 107 bilhões.

Segundo o levantamento da ANS, os resultados líquidos no acumulado dos três primeiros trimestres de 2023 foram positivos em todos os segmentos.

As administradoras de benefícios tiveram um lucro de R$ 388,4 milhões. As operadoras odontológicas obtiveram um resultado positivo de R$ 471,6 milhões.

“A recuperação do desempenho econômico-financeiro do setor pode ser observada em diversos indicadores desde o 4º trimestre de 2022, especialmente nas séries de 12 meses do Painel Econômico-Financeiro, com o aumento dos resultados líquido e operacional e a redução da sinistralidade”, afirma o diretor de normas e habilitação das operadoras da ANS, Jorge Aquino.

“Além disso, o agregado da margem de lucro líquido das operadoras médico-hospitalares ficou positivo, apresentando o melhor resultado desde o segundo trimestre de 2021”, explica.

Transtorno global do desenvolvimento

O transtorno global do desenvolvimento é caracterizado por um conjunto de condições que geram dificuldades de comunicação e de comportamento, prejudicando a interação dos pacientes com outras pessoas, bem como o enfrentamento de situações cotidianas.

De acordo com a Classificação Internacional de Doenças (CID10), são considerados transtornos globais do desenvolvimento:

  • Autismo infantil (CID10-F84.0)
  • Autismo atípico (CID10-F84.1)
  • Síndrome de Rett (CID10-F84.2)
  • Outro transtorno desintegrativo da infância (CID10-F84.3)
  • Transtorno com hipercinesia associada a retardo mental e a movimentos estereotipados (CID10-F84.4)
  • Síndrome de Asperger (CID10-F84.5)
  • Outros transtornos globais do desenvolvimento (CID10-F84.8)
  • Transtornos globais não especificados do desenvolvimento (CID10-F84.9)

De acordo com a ANS, existem diversas formas de tratar esses transtornos, e a escolha do método mais adequado deve ser feita pela equipe assistente com a família do paciente.

Entre as técnicas estão a ABA (do inglês “applied behavior analysis”), o modelo Denver de intervenção precoce (Denver ou ESDM), a integração sensorial, a comunicação alternativa e suplementar —ou picture exchange communication system (PECS)—, entre outras.