Pesquisa de universidade em Anápolis avança em transplante com órgãos de animais

21 novembro 2023 às 10h12

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Na Universidade Evangélica de Goiás (UniEVANGÉLICA), em Anápolis, um estudo inovador testa a viabilidade de transplantar um órgão de origem animal em seres humanos. O avanço dos estudos reacende uma chama de esperança para as mais de 1.500 pessoas que aguardam na fila para o transplante de órgãos em Goiás. Em entrevista ao Jornal Opção, o coordenador da pesquisa, Luis Vicente Franco de Oliveira, falou dos avanços, conquistas e entraves para os xenotransplantes (procedimento de transplantar tecidos e órgãos entre espécies diferentes).
“A Bioengenharia de tecidos é uma ferramenta terapêutica em potencial na obtenção de órgãos funcionais para transplante em pacientes com doenças avançadas e terminais crônicas. Embora a Bioengenharia apresente uma abordagem médica regenerativa para os diversos órgãos, ela necessita ser melhor desenvolvida para a obtenção de protocolos mais eficientes, tendo poucos relatos de estudos voltados para essa técnica”, explica o Professor Doutor Luis Vicente Franco de Oliveira, coordenador do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Movimento Humano e Reabilitação da UniEVANGÉLICA.
Uma das etapas para que isso possa ocorrer é a chamada descelularização, que consiste na remoção das células de um tecido ou órgão animais, permanecendo apenas a estrutura que os envolve. As pesquisas feitas na universidade são feitas com o objetivo de testar a viabilidade desse produto descelularizado em seres humanos.
Luis Vicente conta que a pesquisa surgiu há cerca de 5 anos. “A ideia partiu de um apelo social de saúde no mundo inteiro, a falta de doadores. Na UniEVANGÉLICA, começamos nosso trabalho com pulmões, especificamente com pulmões de ratos e camundongos”. Ele explicou que a preparação dos órgãos para o transplante é feita em três etapas.
Na primeira fase, é realizada a limpeza dos órgãos, utilizando detergentes biológicos para remover todas as células do tecido, deixando apenas o esqueleto, uma estrutura de colágeno que oferece sustentação para o novo órgão. Em seguida, é feita a esterilização, sendo que pesquisas estão em andamento para aprimorar esse processo. Na terceira fase, as células-tronco são inseridas, retiradas do mesmo animal ou de outro, com a expectativa de gerar um novo órgão funcional.
“Quando a gente fala funcional, o órgão que apresente as características normais, biológicas, fisiológicas e funcionantes para a posterior serem plantadas num paciente. Atualmente nós começamos a trabalhar com pulmão e rin de porco, que já se assemelha mais ao ser humano”, explicou. A partir do próximo ano, a terceira fase será iniciada, consistindo na recelularização desses órgãos e estruturas para gerar novos tecidos ou órgãos. Essa é a etapa final do processo. Uma vez que o novo órgão é gerado, o próximo passo é implantá-lo inicialmente em um animal.
A partir dessa etapa, o ‘esqueleto do órgão’, também chamado de scaffold, permanece intacto e é esterilizado. A recelularização com células-tronco pode, então, ser realizada e, com isso, as possibilidades para aproveitamento do material em um ser humano podem se tornar uma realidade no futuro, conforme detalhou o Professor Doutor Luis Vicente.
Segunda pessoa a receber o transplante

No dia 25 de setembro, uma cirurgia inédita ocorreu no centro médico Langone Health, da Universidade de Nova York. Pela primeira vez, um rim de porco foi transplantado para um corpo humano com sucesso. Lawrence Faucette, de 58 anos, com uma doença cardíaca em estágio terminal, foi considerado inelegível para um transplante tradicional e recebeu um coração de um porco. Lawrence morreu seis semanas após ser submetido ao processo, segundo o Centro Médico da Universidade de Maryland.
Após o procedimento experimental, os médicos relataram que o homem estava fazendo progressos significativos, inclusive participando de fisioterapia e passando tempo com a família. Um mês após a cirurgia, a equipe médica afirmou que a função cardíaca de Faucette estava excelente e ele deixou de tomar qualquer tipo de medicamentos. O homem recebeu um tratamento experimental, com anticorpos, para suprimir ainda mais o sistema imunológico e prevenir a rejeição. Seis semanas após o transplante, no entanto, o órgão começou a se comportar de maneira diferente.
David Bennett, de 57 anos, primeiro paciente a receber um coração de porco, sobreviveu cerca de de dois meses, fato que foi muito comemorado pela comunidade científica mundial. O primeiro humano a passar por um transplante de coração convencional (entre humanos), em 1967, viveu apenas mais 18 dias.
Desde os anos 1960, os profissionais têm explorado a viabilidade de transplantes entre diferentes espécies. Na década de 1980, surgiu a compreensão de que os porcos são a melhor opção devido à sua fácil manipulação e semelhanças fisiológicas e anatômicas com os humanos.
Entretanto, transplantes de porcos comuns levam a uma rejeição hiperaguda, uma resposta intensa do sistema imunológico humano, exigindo a retirada imediata do órgão. Até cerca de 2005, os cientistas concentraram seus esforços na modificação genética desses animais. Embora a rejeição também seja um problema nos transplantes entre humanos, não atinge a mesma escala.
A edição genética envolve knockouts (bloqueios) e knock-ins (adições) de genes. Os cientistas coletam células de porcos recém-nascidos, bloqueiam os genes responsáveis pela produção dos açúcares que desencadeiam a rejeição e inserem genes humanos para modular a resposta imune do paciente. As células modificadas são introduzidas em um óvulo sem núcleo, usando uma técnica aprendida com a ovelha Dolly, embora não seja um processo de clonagem.
Entraves para avanço dos xenotransplantes
“Os estudos que nós estamos conduzindo aqui são todos dentro de um padrão de ética, todos estudos aprovados pelo Comitê de Ética da Instituição, que é registrado no Ministério da Saúde, e nós temos tido bastante avanços nesse sentido. Agora, por exemplo, vamos começar a trabalhar com o que a gente chama de pó de órgão”, explicou o professor Luis Vicente.
Trata-se de uma das técnicas mais avançadas no mundo. O processo envolve a obtenção de um órgão animal e a aplicação de uma técnica semelhante à liofilização, com o objetivo de extrair todas as células e tecidos da estrutura, conhecida como liofilização. O resultado é transformado em pó e incorporado a uma matriz de biogel para criar uma nova estrutura. Nesse ponto, não se trata mais do órgão completo. Como mencionado anteriormente, são gerados tecidos que podem ser enxertados em situações específicas de pacientes.
No Brasil e no mundo, porém, os xenotransplantes enfrentam algumas resistências. “Um dos grandes problemas das filas de espera são devido a questões religiosas, por isso que a gente tem um reduzido número de doadores”, observou Luis.
Um total de cem pacientes dentre submetidos e candidatos ao transplante hepático – 50 na lista de espera e 50 que já haviam passado pela cirurgia – respondeu objetivamente (sim ou não) a um questionário da Associação Brasileira de Editores Científicos. A pesquisa abrangeu aspectos como a autoestima, relações sociais e práticas religiosas dos pacientes e a influência desses fatores na opinião formada pelo entrevistado em relação ao xenotransplante.
Foi constatado que a maioria dos pacientes da amostra, englobando ambos os grupos, aceitaria o xenotransplante. Os resultados indicam que a estranheza e a rejeição causada pelo uso de órgãos e de tecidos oriundos de outros animais provêm da falta de informação e compreensão do xenotransplante, e do medo da rejeição fisiológica do órgão.
A influência religiosa destacou-se como uma divergência significativa entre os dois grupos de pacientes, sendo maior entre os que se encontram na lista de espera, e aparecendo como uma contribuição positiva para a aceitação do procedimento. Os entrevistados foram ainda questionados sobre um possível receio de apresentarem mudanças de personalidade ou comportamento após receberem o xeno-órgão, ao que a maioria respondeu negativamente.