Um candidato diante de seus conflitos
10 maio 2014 às 12h52
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Empresa dos familiares de Júnior Friboi, e que era comandada por ele, estaria devendo R$ 1,3 bilhão de ICMS para Goiás
Afonso Lopes
A notícia, publicada pelo jornal “O Popular”, explodiu como uma bomba no meio político: a J&F, holding controladora das empresas da família Batista, mais conhecida como JBS/Friboi, deve, segundo cálculos do fisco estadual, cerca de 1 bilhão e 300 milhões de reais ao Estado de Goiás, fruto de ICMS declarado e não recolhido. A informação não deveria ter implicações políticas, mas tem. A J&F foi dirigida durante mais de uma década por ninguém menos que José Batista Júnior, o Júnior Friboi, candidato ao governo de Goiás, e continua pertencendo ao núcleo familiar dele. A ligação política, portanto, é natural e direta, desde o berço.
A publicação do imbróglio com o fisco estadual incomodou Júnior Friboi. Tanto é que, no mesmo dia, através das redes sociais, ele divulgou nota oficial a respeito do assunto. Friboi não desmentiu a informação de “O Popular”, mas desconfiou das intenções não declaradas que o jornal teria. Ele disse que havia deixado as empresas do grupo Friboi para preservar a sua família do “jogo sujo que muita gente usa como estratégia política”. Na sequência, ele escreveu que “de maneira estranha e suspeita, três dias depois que o PMDB” o escolheu como candidato ao governo de Goiás, “vazam na imprensa dados sobre supostos débitos fiscais do grupo JBS com o ICMS”. E completou: “Dados que deveriam ser sigilosos”.
Pelo menos nesse trecho da nota oficial, Friboi levanta mais dúvidas do que as esclarece. Ele disse, por exemplo, que deixou a empresa por causa do jogo sujo da política. Como estava se referindo diretamente à notícia veiculada pelo jornal “O Popular”, não fica claro se a acusação dele, sobre o tal “jogo sujo” envolve também aquele veículo de comunicação, que seria, em última análise, porta-voz da tal manobra suja.
Logo depois, Friboi fala que essa informação vazou para a imprensa. Nesse ponto, não há dúvida: Friboi generalizou sem nenhuma razão. Se houve vazamento ou competência, o crédito em ambos os casos é exclusivo de “O Popular”, único veículo que publicou a notícia, em primeira mão (primeira vez) sobre a dívida bilionária de ICMS, imposto estadual, do grupo Friboi.
No entanto, o fato ainda mais grave é quando ele afirma que, de acordo com a legislação, a dívida, que está sob demanda no campo administrativo e também judicialmente, deveria ser mantida sob sigilo, longe dos olhares e da opinião pública. Na nota, Friboi não explicou por quê essa informação deveria ser negada à população do Estado diante do fato de que ele quer governar Goiás e os goianos.
É até compreensível, embora ainda assim polêmico, que as demandas fiscais de empresas “normais” sejam resguardadas, mas o grupo empresarial que era comandado até recentemente por um candidato ao governo do Estado, e que permanece sob controle de seus familiares, não é uma empresa “normal”. É uma empresa que até no nome se rivaliza com o candidato.
Mesmo estranhando, Friboi confirmou que a empresa que ele comandava tem realmente uma pendência fiscal com o Estado que ele gostaria de governar. Sobre esse aspecto, sua nota oficial é esclarecedora: “… parte importante dos supostos débitos se referem a dívidas pela incorporação do frigorífico Bertin”. Em nenhum outro ponto, a nota oficial desmente a informação de que a empresa tem o que ele considera “supostos débitos”. Ou seja, é verdade. E é verdade também que a prática de contestar débitos fiscais é recorrente na empresa. Pelo menos, é o que se pode deduzir do que o próprio Júnior Friboi disse em sua nota oficial: “(A JBS) em muitos casos, discorda de alguma cobrança” e contesta pelos meios legais disponíveis: primeiro administrativamente e, depois, judicialmente. Só depois, disse ele, a JBS “cumpre o que foi determinado”.
É legal esse tipo de procedimento empresarial? É, garante a legislação em vigor. Já o aspecto moral e o que diz respeito à responsabilidade social escapam da alçada jurídica, e geram dúvidas. Sabe-se que grandes empresas mantêm imensos e competentes departamentos jurídicos, com inúmeros advogados especialistas na área tributária. Não é apenas a Friboi que mantém demandas fiscais com o Estado de Goiás.
No Brasil todo, as grandes corporações pagam milhões de reais aos advogados para que encontrem falhas na legislação fiscal de modo a não pagar ou adiar ao máximo o pagamento de impostos. A Friboi, pelo menos nesse exemplo goiano, não é diferente de tantas outras grandes empresas. Inicialmente, não paga o imposto devido. Se descoberta pelos fiscais, evita o pagamento e entra com recurso administrativo. Se ainda assim a cobrança for mantida, leva o caso para o Poder Judiciário. E aí se justifica o grande aparato jurídico mantido por esse tipo de conglomerado empresarial: Se a Justiça leva até dez anos para sentenciar até assassinos confessos, imagina-se o que acontece com querelas fiscais entre Estados e empresas.
Diretamente envolvido
Fora esse aspecto jurídico-fiscal, Friboi contou em sua nota oficial que “parte importante” da dívida de ICMS, que ele chama de “suposto débito”, é proveniente da incorporação pela JBS/Friboi do grupo Bertin. Isso, longe se isentar a empresa, acaba por comprometer o próprio Júnior Friboi.
O grupo Bertin foi adquirido/incorporado pela JBS/Friboi em 2009. A dívida total do grupo chegava a 6 bilhões de reais, incluindo a tal “importante de ICMS”. Júnior Friboi sabia disso porque ele era, nessa época, presidente do conselho administrativo do grupo JBS, e seu irmão Joesley era o presidente da diretoria executiva. Por sinal, foi o próprio Júnior quem noticiou, a um grupo de mil pecuaristas goianos, que a Bertin tinha sido comprada.
Além disso, o grupo Bertin não foi adquirido/incorporado a troco de nada. O BNDES emprestou dinheiro para a JBS/Friboi para que o negócio fosse feito, e com o objetivo de equacionar o problema das dívidas incorporadas. Na nota, Friboi disse que se o grupo da família dele não comprasse o Bertin, a empresa teria quebrado e “milhares de goianos teriam perdido o emprego”. Sim, é verdade quanto ao fato de que o grupo Bertin estava à beira da falência, e que o mercado considerava que era questão de tempo para entrar em concordata, mas o que motivou a compra/incorporação não foram os empregos dos goianos. Essa aquisição foi vital para os planos de expansão do grupo JBS/Friboi. Foi a partir dela, que o grupo se tornou o maior frigorífico do Brasil. Foi, portanto, um negócio que motivou a compra/incorporação do grupo Bertin, e jamais uma preocupação social no campo da manutenção de empregos.
Júnior Friboi disse ainda em sua nota oficial que deixou o grupo JBS quando decidiu entrar no mundo da política. Ele realmente vendeu a maioria de sua participação na empresa para os seus irmãos, que hoje comandam o complexo empresarial que ele comandava. Isso aconteceu apenas em 2013. A entrada de Friboi na política não bate com essa data: antes disso, ele foi filiado a partido político.
Sem ligação com a JBS?
Além disso, Friboi, pelo menos em dezembro de 2013, não se desvinculou completamente do grupo JBS, que tem a tal demanda fiscal calculada em 1 bilhão e 300 milhões de reais. Na época, ele admitiu textualmente à “Folha de S. Paulo” que passava a ser “acionista investidor (no grupo JBS) e não mais acionista controlador”.
Essa relação com a empresa remete novamente, e politicamente, ao fato de que a JBS/Friboi tem uma querela fiscal com o Estado de Goiás na casa de 1 bilhão e 300 milhões de reais. Se Júnior tem ações da empresa, e ele diz, na nota oficial, que o grupo do qual é acionista aciona os canais devidos quando discorda de alguma cobrança, ele estaria ou não sendo beneficiado, através das ações que detém, caso a cobrança deixasse de existir?
Por fim, e aí reside o maior conflito de interesses e também político, qual seria a atitude de um governador diante do fato de que a empresa que ele dirigia, e que pertence ao seu núcleo familiar, e na qual ele ainda mantém interesses representados em ações, demanda contra o Estado que ele governa? Indo além desse fato, a atitude da JBS/Friboi de contestar o fisco goiano quando ele, Júnior Friboi, era presidente do conselho de administração, não desautorizaria as atitudes do fisco contra outras empresas se ele fosse na época o governador de Goiás? E qual seria a atitude que essas outras empresas teriam diante de um governo comandado por alguém que antes de ser eleito, quando ainda estava no comando do conselho de uma empresa, questionou a legitimidade das interpretações de cobranças de ICMS do seu próprio fisco? Indo um pouco além, qual poderia ser, se fosse o caso, o formato de um programa especial de recuperação de impostos em um hipotético governo de Friboi: beneficiaria a JBS/Friboi, empresa na qual ele mantém interesses diretos através de ações ou, caso as tenha vendido depois de dezembro de 2013, interesses familiares, o que inclui seu pai e seus irmãos e irmãs?
Os conflitos nesse caso, portanto, são evidentes e inegáveis. A questão é se Júnior Friboi vai responder a eles ou se vai confrontar os fatos e as dúvidas naturais geradas por esses fatos. O resto, sim, é política. l