Sócrates não foi um craque que era boêmio: foi um boêmio que virou craque
09 janeiro 2016 às 12h30

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O ídolo corintiano não foi o primeiro nem o último jogador a priorizar os prazeres em vez da forma atlética, mas sua história é única e interessantíssima. Livro do jornalista Tom Cardoso tem passagens que só um personagem como ele poderia produzir
Elder Dias

Foi um pequeno teste feito cinco vezes: abrir o livro aleatoriamente e procurar as palavras “futebol” ou “cerveja”, a que primeiro saltasse aos olhos. Ambas com três sílabas e sete letras, coisa bem justa e democrática, então. O placar da busca: 4 a 1 para a bebida, com um “gol de honra” do rival no último lance da partida.

A obra em questão é “Sócrates – A História e as Histórias do Jogador Mais Original do Futebol Brasileiro” (Editora Objetiva, 262 páginas), do jornalista Tom Cardoso. Um subtítulo perfeito ao biografado: afinal, o que dizer de alguém que conseguiria ser jogador e fumante inveterado, craque de uma das maiores seleções brasileiras de todos os tempos e um dos maiores antiatletas da história do esporte, entusiasta das Diretas e fã de Fidel Castro, médico e vítima do alcoolismo?
Sócrates era isso, um acampamento da dicotomia. Em sua curta vida — morreu em dezembro de 2011, aos 57 anos —, o futebol foi o maior rival da cerveja, não o contrário. Na saborosa biografia do ex-jogador, esse ponto fica evidente em cada um dos 23 capítulos. Obviamente, o ídolo corintiano não foi o primeiro nem seria o último jogador a priorizar seus prazeres em detrimento da forma atlética, mas sua trajetória é de uma complexidade que faz toda a diferença.
Bastaria sua alcunha para que isso pudesse ser notado. No meio que tornou popular apelidos como Pelé, Zico, Garrincha, Vavá e Didi, de repente surge um Sócrates. Grande na estatura de 1,93 metro — altura rara para um jogador de meio de campo, ainda mais no futebol dos anos 70 e 80 — e grande também na extensão do nome.
Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira foi o primogênito na linha de fabricação de seu Raimundo e de dona Guiomar, que teria mais cinco filhos (além de quatro abortos espontâneos): Sóstenes, Sófocles — ambos igualmente herdeiros da obsessão do pai por nomes gregos —, Raimundo, Raimar e Raí. O caçula e segundo craque da família por pouco não se chamou Xenofonte. Como foi avisado de que a insistência com nomes helênicos implicaria o fim do casamento, seu Raimundo prudentemente optou por preservar o matrimônio.
Essa é a família de Sócrates apresentada no capítulo 2, intitulado, não por acaso, “O filósofo de Messejana”. Não pelo filho, mas pelo pai — Messejana é um bairro de Fortaleza em que Raimundo deu os primeiros passos. Muito do que seria o boêmio-craque se deveu ao ambiente em que cresceu. Seu pai, como relata o livro, além de apaixonado por futebol, era um ávido leitor de obras clássicas, a ponto de ter um excerto de Kant como lema de vida: “Um homem não é nada além daquilo que a educação faz dele”. E foi com muito esforço, estudo e leitura que passou em um concurso para a Receita Federal e teve como prover Guiomar e seus seis rapazes com certa tranquilidade.

Só de uma mistura assim, com prioridade aos livros e devoção ao futebol, que poderia surgir uma figura como Doutor Sócrates, um médico formado em meio aos treinos nas categorias de base do Botafogo paulista. Algo raríssimo, senão único — Tostão e Afonsinho, também craques, se tornaram médicos, mas depois de abandonarem os campos. Foi entre os bancos da academia da Universidade de São Paulo (USP) e os gramados de Ribeirão Preto (SP) que se construiu esse personagem singular, literalmente regado a muita cerveja, nunca é demais ressaltar.
A questão era tão peculiar, como conta Tom, que sua ida para o Corinthians só pôde se concretizar com o diploma debaixo do braço. Era a condição de Raimundo para que o filho seguisse como jogador. Já no time do Parque São Jorge, depois de se destacar no Botafogo de 1977, uma nova frente de batalha daria suporte definitivo a seu perfil: Sócrates peitou o então todo-poderoso Vicente Matheus para renegociar seu contrato, que tinha salário de 30 mil cruzeiros, bem inferior a outros astros da época. Para ter ideia, Zico ganhava 450 mil cruzeiros, 15 vezes mais. Acabou dobrando o cartola. Eram os tempos da abertura do regime militar. Poucos anos depois, Sócrates se tornaria um arauto da democracia no movimento das Diretas, mas já fazia a lição de casa no clube.
Quando se sentia acuado pelo mundo cruel do futebol, o Doutor tinha uma reação típica: falar que largaria o esporte para se dedicar à medicina. Várias vezes fez isso, até que o discurso entrasse em descrédito. Com a Fiel, foi um caso estranho: Sócrates não tinha nada a ver com a voluntariedade característica dos que se tornavam ídolos da torcida corintiana, como Idário, ainda nos anos 50, Zé Maria e Rivelino, já nos anos 70. Era um jogador frio em campo e que comemorava seus gols como quem carrega as compras da feira. Junte-se isso às polêmicas em relação a questões salariais e não deu outra: foi tratado várias vezes como “mercenário”. A ponto de levar um “corre” da torcida depois de uma derrota para o Juventus. Nem o fato de ter marcado um dos gols do time o livrou de ter seu Fiat 147 cercado. O meia Palhinha, que o acompanhava, gritou: “Pô, Magrão! Quantas vezes eu falei para você vibrar nos gols? Não custa nada! Vai lá no alambrado, grita, esperneia!”. O pior: o carro era verde — a cor do rival Palmeiras.

A torcida ainda se dobraria ao ídolo, entenderia aquele ser difícil, que tentava ser de tudo um pouco — até ator e cantor —, como se uma vida só não fosse o bastante. O fato é que Sócrates tratou o futebol com um espírito romântico, até amadorístico.
Para ser mais exato, a única oportunidade real que ele se deu para ser um atleta na acepção da palavra foi em 1982. O ano da Copa do Mundo da Espanha, que todos os brasileiros já contavam como “nossa”. A seleção brasileira de Telê Santana era uma máquina. Sócrates, então, se propôs a algo inédito: parar de fumar e reduzir drasticamente o consumo de cerveja.
Deu resultado: apesar da eliminação trágica para a Itália, ele “voou” no torneio, ficando acima da média em um grupo de talento inquestionável. Mas perdeu a Copa, no que considerou, em artigo escrito para a revista “Placar” (ele foi convidado, e aceitou, a ser colunista durante a Copa), “o momento mais triste da minha vida”.
Desilusão comparável foi a derrota da emenda Dante de Oliveira, a das Diretas, em 1984. Sócrates tinha passado pela experiência da Democracia Corintiana: ele, juntamente com o lateral Wladimir (um dos mais politizados jogadores da história brasileira) e Casagrande (então garoto ainda e cheio de rebeldia e irreverência), mais o diretor de futebol Adilson Monteiro Alves, inovaram o futebol. Todas as decisões, até mesmo folgas ou contratações, eram discutidas e resolvidas por meio de votação, que incluía até funcionários do clube.
A derrocada da Democracia, agravada pela decepção com a política brasileira, o fez ir para a Europa, jogar pela Fiorentina. Rebelde, não se adaptou à rigidez de métodos nem à família que controlava o clube. Nunca mais Sócrates reencontraria seu melhor futebol. E nunca mais abandonaria o vício da cerveja. Acabou seu casamento com Regina, depois outro, com a tenista Silvana Campos, até chegar ao terceiro e último, com a empresária Kátia Bagnarelli. Em meio a tudo isso, foi secretário de Esportes de Ribeirão Preto, a convite do então prefeito Antonio Palocci, dono de uma clínica em Ribeirão Preto e um negligente comentarista esportivo de TV — seu costume de se atrasar (e de descaradamente torcer para o Corinthians) o fez ter uma experiência bem curta na área. Tom Cardoso conta outras passagens inigualáveis do já ex-jogador, como quando, no Rio, depois de desistir de jogar pelo Flamengo, foi fazer sua residência médica no Hospital Universitário e transformou uma ala abandonada em zona boêmia.
Em 2011, o álcool cobrou a fatura. Hemorragias, internações e a necessidade de um transplante de fígado. Sócrates admitiria enfim seu alcoolismo, vício no qual entrou já aos 14 anos. Prometeu que não mais beberia. Era tarde. Ele morreu em 4 de dezembro, no dia em que o Corinthians ganhou seu quinto título brasileiro. Com o punho erguido e num semicírculo, os jogadores do time imitaram o gesto tradicional do ídolo da Fiel.
Um livro que mais parece um bate-papo e que aproxima o leitor da cena, envolvendo-o. Tom Cardoso é também autor das biografias de seu colega de profissão Tarso de Castro, referência do jornalismo no período da ditadura e fundador do “Pasquim”, e do empresário Paulo Machado de Carvalho, chefe da delegação brasileira na Copa de 58 e por isso considerado o “Marechal da Vitória”. Foi vencedor do Prêmio Jabuti 2012 com “O Cofre do Dr. Rui”, um livro-reportagem sobre o assalto ao cofre (com dinheiro desviado) do ex-prefeito e ex-governador de São Paulo Adhemar de Barros, em ação comandada pelo grupo guerrilheiro VAR-Palmares.