Sem repasse da Prefeitura, abrigos para idosos podem fechar
27 janeiro 2018 às 10h51

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A dívida com o abrigo Solar Apóstolo Tomé chega a R$528 mil; titular da Semas informa que esta semana deve começar a cumprir cronograma de pagamento
Nos corredores e nos quartos do Abrigo Solar Apóstolo Tomé, no Setor Finsocial, em Goiânia, o Parkinson, a demência, as consequências do acidente vascular cerebral, a osteoporose, a hipertensão arterial, o diabetes, a osteoartrose e a catarata são menos expressivas do que o silêncio e a solidão dos 31 idosos que vivem ali — 6 deles sem qualquer vínculo familiar. Uma das 42 conveniadas com a Prefeitura de Goiânia, que atendem uma média de 1.800 idosos, o abrigo corre o risco de não continuar funcionando. Mesmo quando ouvem que o abrigo pode ser fechado por falta de recursos repassados pela municipalidade, idosos ouvidos pelo repórter parecem não se importar.
O não importar é uma característica de homens e mulheres confinados pela sentença que chegou após as décadas passarem rapidamente demais. É um ato de sobrevicência alcançar a velhice num país em que o tema é debatido mais na perspectiva de diminuir a idade para a aposentadoria e menos para que haja qualidade de vida, mesmo que estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) deem conta de que o Brasil terá no mínimo 19 milhões de pessoas acima de 80 anos em 2060.
Tutelados — os que não têm famílias e permanecem até o último suspiro sob a proteção das instituições — ou não, dependem cotidianamente da boa vontade do poder público, dos gestores das unidades e seus funcionários, da família — quando não institucionaliza a velhice do ente querido — e de doadores que reconhecem o suplício pela falta de dinheiro para garantir a compra de medicamentos, alimentação e roupas.
José Pedro Barbosa, 83 anos, acorda antes de o sol ultrapassar as cortinas e iluminar o quarto que divide com um companheiro. Veste-se com uma camisa com cheiro de suor, deixa aberto os três primeiros botões, encaixa os pés desbotados em um par de botinas velhas, enfia o saquinho com fumo no bolso da calça e se dirige para o canto mais isolado da instituição.
Senta-se em um banco, escuta o ronco das mulheres dos quartos ao lado, acende o cigarro e afunda-se no único pensamento que o deixa abatido desde que foi levado para o abrigo, dez anos atrás: “Que eu vim fazer na velhice?” Ele conversa sozinho, como se fosse o investigado de ter cometido o crime de ter se tornado octogenário.
Sempre que se lembra da vida na roça, capinando o pasto, vendo o milharal crescer e da colheita das espigas para a pamonha, acende um cigarro e pita, enojado da vida que passou rápida demais. José não quer conversa, mas o repórter diz que ele poderia falar qualquer coisa. Fica em silêncio por alguns minutos, encara a câmera do fotógrafo e dispara algumas frases ininteligíveis. Enquanto aperta entre os dedos amarelados e cicatrizados uma folha de limão que arrancou de um limoeiro ainda pequeno, deixando emanar seu cheiro forte, confessa: “Pior que velho é só morte matada”.
Ele mais se afunda com os olhos nas folhas amassadas do que fala. José é o retrato de quem não tem mais ninguém senão o abrigo, no sentido literal. “Pelo visto foi o único canto do mundo que ainda me quer. Mas sei o motivo. É dinheiro”, diz, olhando para a mão.
Quando soube que a instituição pode ser fechada, joga a folha em um canto, olha para o repórter e indaga: “E eu com isso? Daqui vou mesmo é pra cova, sem velório, sem choro. Sou é ‘estrovo’ de gente, nem governo, nem político, nem esse povo daqui me olha nos olhos. E esse povo só sabe me roubar”. José tem motivos para a revolta. O salário todo vai para a instituição. “Nem de meu dinheirinho tenho mais posse. Isso aqui é o fim”, finaliza, cabisbaixo.
A conquista da longevidade necessita ser acompanhada com a valorização dos idosos e a garantia de atitudes políticas para que esta faixa etária seja alcançada com qualidade, com políticas públicas que garantam o mínimo de bem-estar. Esta é uma máxima pregada pelo Estatuto do Idoso e em conferências sobre o tema divulgadas na internet.
Durante a tarde em que permaneceu no Solar, o repórter ouviu, ouvido quase colado às bocas que mais emitem suspiros que palavras, alguns dos idosos que decidiram falar um pouco da rotina no “fim”, como definiu José. Alguns relembram o passado, outros inventam um “futuro congelado”.
Todos no mesmo dilema: o da permanência no único lugar que os acolheram. É com cansaço que o professor aposentado da Universidade Federal de Goiás (UFG), Romão da Cunha Neves, 72 anos, diretor do Solar, conta em detalhes os problemas por que passa para garantir alguma qualidade de vida aos moradores do local. Segurando uma pasta preta com documentos, Romão revela os valores que a Prefeitura deve à instituição:
A Solar tem problemas com pagamentos desde a gestão de Paulo Garcia (PT), com o convênio de 2014. Foram dívidas de R$ 264 mil, R$ 66 mil, R$ 132 mil e R$ 198 mil, de 2014, 2015, 2016 e 2017, respectivamente. Ao total, somam-se 36 meses de atraso, num valor total de R$ 528 mil. “Iris Rezende falou que não pagaria nada do que ficou nos devendo o Paulo Garcia, apenas a da gestão dele.” No final do ano passado, Romão se reuniu com a Secretaria Municipal de Assistência Social, responsável pelo repasse de verbas municipais e federais. “Nós decidimos dar um desconto de 30% sobre o valor de 2017. De 198 mil ficaram 138 mil reais. Eles teriam de depositar em duas parcelas, em novembro e em janeiro, mas ainda não foram pagas”, disse.
Sem o pagamento, Romão não sabe o que fazer diante dos constantes atrasos aos funcionários. “Não pagamos há quase cinco meses. Os nossos colaboradores precisam pedir ajuda para não passarem fome, para não serem despejados.” Para conseguir dar conta da alimentação, fraldas, medicamentos e roupas, o abrigo recebe constantemente doações vindas de empresas, instituições religiosas e universidades.
À espera
Há 17 anos Isoleta Dilza Quintino tem uma missão: angariar recursos para o Abrigo São Vicente de Paulo. Com o corpo visivelmente cansado, ela sai da sala em que passa o dia ligando para empresas em busca de qualquer quantia que supra as necessidades do local. Caminha ao quarto da centenária Ana Maria de Souza. Aos 109 anos, o Mal de Parkinson tirou Maria da cozinha (de onde ninguém se atrevia a proibi-la de cozinhar), mas não roubou sua voz. Mesmo na cama, com algum fôlego, canta “Chico Mineiro” inteirinha, bem ao estilo de Tonico e Tinoco, acompanhada de Isoleta: “Fizemos a última viagem/ Foi lá pro sertão de Goiás/ Fui eu e Chico Mineiro/ Também foi o capataz”.
“A gente precisa muito da ajuda de todos. Enquanto não conseguirmos fechar o novo contrato com a Semas, a contribuição de empresas, de instituições religiosas, de voluntários, é muito importante para garantir a nossa prestação de serviços”, pede Isoleta, que se despede de Ana Maria com um beijo na testa.
O diretor do São Vicente de Paulo, Florentino Luiz Ferreira, informa que a unidade tem 74 unidades. “Mas o convênio ajudou com 40 idosos”, diz, ressaltando que o edital para o convênio de 2018 diminuiu o número para a Longa Permanência.
O edital de chamamento público prevê a seleção de organizações da sociedade civil para parceira por meio termo de colaboração de assistência social de acordo com a Lei Federal n° 13.019/2014 e a Lei Municipal n° 8.248, de 19 de janeiro de 2004. “Até agora tínhamos 40 vagas aqui, mas no edital informa que reduziu-se para 120 atendimentos para a pessoa idosa”, diz, com desconfiança, Florentino. “São 120 para Goiânia inteira.”
“Vamos fiscalizar e dar transparência, auditar”

Como a Semas responde à falta de repasse dos recursos?
Para contextualizar, a Semas não consegue atender a todos os serviços, por isso convida empresas e instituições filantrópicas para nos ajudar.
De onde vem os recursos?
Eles são municipais e federais. Isso é previsto nos contratos.
E aqueles que não receberam?
Desde quando assumi no final de setembro do ano passado estou empenhado para resolver a situação dos atrasos de 2017. Sempre junto com o prefeito, com o secretário de Finanças. Então foi autorizado que criássemos um cronograma de pagamento. Em dezembro foi encaminhado os documentos para os ritos burocráticos para fazermos a quitação dessas dívidas. Em janeiro fizemos os empenhos, ou seja, toda a parte burocrática foi feita. O pagamento deve ser feito agora, na próxima semana. Conversamos com os diretores, negociamos e vamos cumprir.
Quantas estavam conveniadas em 2017?
São 17, mas não tenho certeza. Sei que os recursos do governo federal foram pagos. Vamos pagar agora com recursos municipais.
A Prefeitura assinou com quantas conveniadas?
Encerramos os contratos ano passado e vamos fazer um recadastramento para 2018. Para melhorar a atuação da Semas, certamente este número vai diminuir.
Vão diminuir as vagas?
Não, não. Vamos é melhorar o atendimento, tudo dentro da legalidade.
Quais são os critérios para que uma entidade seja uma conveniada?
Em linhas gerais, elas precisam atender de maneira séria.
Que vai mudar este ano?
Vamos aumentar a fiscalização para que o recurso público seja devidamente aplicado. Vamos fiscalizar, dar transparência, fazer auditoria.
Ano passado, quanto a Prefeitura recebeu de recursos federais?
Rapaz, eu não sei precisar. Não estou com os dados aqui. A destinação depende muito do projeto apresentando pela Prefeitura.
Condenados à velhice
Ninguém sabe de onde elas vieram, mas sabem para onde vão. “Para o quarto, querem mostrar o cantinho delas”, diz a funcionária que espia a animação de Ana de Deus e Maria de Deus, da janela da cozinha do Abrigo Solar Apóstolo Tomé. Sem idade, sem nome, mas carregadas de segredos em rugas. Uns apostam que já são nonagenárias. Uma tarde com elas, o repórter conclui: são bebês ainda.
Maria, a mais sorridente, pede para beijar. Ao invés de lábios, a língua molhada. E ela ri. Acha graça. Acha graça mesmo quando Luzival Lúcio Caldas, 59, o homem que abriu as portas do abrigo para as duas, em 1995, disse que o local pode fechar. “Não recebemos salário há cinco meses. Aqui é velho demais, que dá muito trabalho. Se não fosse por amor ninguém estaria aqui cuidando. Principalmente dessa velha ruim”, aponta para Maria de Deus, a desconfiada Maria, abraçada com ele com seus cabelos muito brancos.
“Nunca passamos por uma situação tão difícil, triste, de abandono mesmo pela Prefeitura. É que acumulou todos estes anos”, reclama Luzival enquanto olha para as duas velhinhas de olhos azuis que chegaram há 23 anos no abrigo em uma ambulância, sem identidade ou qualquer coisa que revelasse como teria sido a infância, a adolescência e a vida adulta das duas.
Desde que chegaram ali, apresentavam Afasia de Broca, um transtorno neurológico que se revela quando elas tentam se expressar verbalmente. “O problema é que elas acham que sabem conversar e, às vezes, chamam a gente para baixo e sussurram segredos. O jeito é fingir que a gente entende. Ou finge ou elas ficam bravas”, conta Luzival.
Ele ainda conta que no quarto de Ana e Maria nenhum outro idoso entra. “Se entrar, cai no pau. Maria bate mesmo, com força, inclusive na coitada da Ana que é muito pequenininha.” Ela entende um pouco a história e confirma, em grunhidos e sinais com as mãos de uma criança de 4 anos.
Quando o repórter se preparava para sair, João Bernardo Borges, de 67 anos, quis contar sua história. “Psiu, deixa eu te mostrar minha banda”, convida, se levantando. Arrastando-se com uma bengala e nas paredes, alcança o quarto. Num canto, encontra o pandeiro, mas antes de tocar com a mão que lhe sobrou depois de um acidente vascular cerebral, diz “anota aí, quando eu cantava nos palcos, atraía um mundo ‘véio’ de gente. Era muita gritaria, aplausos. Quando eu canto aqui, os velhos mais murmuram do que acompanham minha animação. Dá vontade é de chorar.”
Depois de cantar “O que eu sou sem você”, dando ênfase em “nada, nada”, conta a história da dupla Jeová (ele) e Jovani (um amigo). “A gente cantava pelo Brasil, fazia os outros sorrirem. E eu trouxe essa felicidade para cá, onde os velhos querem é que o ponteiro do relógio passe rápido e o dia da morte chega logo. Se eu quero morrer? Só se a outra mão entortar também e eu não poder tocar nem o pandeiro mais”, diz, levantando e colocando o instrumento na outra cama. Quem dorme aqui? “Os últimos quatro morreram. Fiquei sozinho. Mas morreram me escutando cantar, sorrir, viver”.
“Falta formação gerontológica aos gestores e cuidadores”

Em entrevista ao Jornal Opção, Elisa Franco, uma das mais importantes pesquisadoras da geriatria no Brasil, esclarece como as políticas públicas poderiam contribuir para garantir o bem-estar no acolhimento. Ela é médica geriatra, especialista em Clínica Médica e em Geriatria e mestrado em Medicina Tropical pela Universidade Federal de Goiás, professora do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás.
Como dar qualidade de vida aos idosos em um abrigo?
Os abrigos, asilos, casa de idosos hoje não chamados de instituições de longa permanência para idosos (ILPIs) e para garantir qualidade de vida aos seus residentes devem otimizar as oportunidades de participação, socialização, saúde e segurança. Portanto, essas instituições devem ser geridas por profissionais com conhecimento na área de gerontologia; seguir as normas das agências de regulação; oferecer ambientes confortáveis e adaptados às limitações dos idosos, garantindo a sua segurança e reduzindo riscos de acidentes e quedas; oferecer oportunidades e locais para socialização e participação; e oferecer suporte de assistência a saúde e reabilitação como fisioterapia, atividade física, terapia ocupacional. Outra coisa muito pouco observada é a questão nutricional. Muitos idosos ao se mudarem para uma ILPI se desnutrem porque seus hábitos alimentares são alterados.
Hoje o que é estabelecido na legislação que garante uma velhice mais digna?
O Brasil tem um dos melhores conjuntos de leis e normas para garantia do envelhecimento ativo, que engloba a lei da Política Nacional do Idoso, o Estatuto do Idoso, artigos da Constituição Federal que tratam do dever de cuidar dos idosos e da gratuidade de transportes, Política Nacional de Atenção à Saúde da Pessoa Idosa, normas da Anvisa para o funcionamento das Instituições para Idosos, a lei de 2017 que garante prioridade aos idosos maiores de 80 anos e muitas outras. Entretanto, a implementação das políticas e dos direitos garantidos em lei ainda é precária. O Brasil precisa avançar e os gestores públicos precisam prestar mais atenção no cumprimento dessas normas. Muitos países com conjuntos de leis não tão bons conseguem oferecer serviços melhores e colocar o envelhecimento como prioridade nas políticas públicas. Precisamos avançar para garantir melhores condições de vida aos que envelhecem, pois envelhecimento da nossa população será um dos mais rápidos do mundo. O Brasil dobra a porcentagem de idosos de 7 para 14% da população em menos de 30 anos. França e muitos países europeus gastaram mais de cem anos para fazer o mesmo.
Que o Estado (em todas as esferas) precisa fazer para garantir os direitos dos idosos?
Garantir o cumprimento das leis e implementação das políticas públicas já existentes “no papel”. Existem políticas que prevêem a criação de serviços especiais de assistência como Centros-dia, ILPIs, etc.
Qual o papel da família para a terceira idade?
O mais importante. O suporte familiar e social é um dos pilares para o envelhecimento ativo.
Discute-se uma reforma da Previdência sob o argumento de que teremos mais idosos daqui a algumas décadas. Os governos têm se preparado para o cuidado para além do aspecto previdenciário e trabalhista?
Como já disse, não. Falta empenho para implementação das políticas previstas. Falta noção da dimensão dos desafios do envelhecimento populacional. O previdenciário é um deles, mas a adequação do sistema de saúde talvez seja um dos maiores. A carga para o sistema de saúde depende muito mais do número absoluto de idosos e não tanto da porcentagem como o sistema previdenciário. E hoje o Brasil tem, em número absolutos, muito mais idosos do que em países com percentagens maiores, por ser um país mais populoso.
Quais os maiores problemas que podem ser encontrados em abrigos? Como coibi-los?
O principal é a falta de formação gerontológica dos gestores, funcionários, cuidadores. Essa falta de formação leva a precariedade dos serviços, à inadequação às normas, aos ambientes inseguros, a maior risco de maus-tratos. A formação de recursos humanos, a melhoria da fiscalização por parte de órgãos públicos, a atenção de familiares ao escolher uma instituição para o seu parente idoso, a participação dos familiares