Falar em políticas públicas é falar em respostas para problemas sociais que surgem a partir de demandas da sociedade. As ações do Estado para assegurar direito de cidadania a determinado seguimento social, cultural, étnico ou econômico, em geral, perpassa pelo enfrentamento e rompimento de obstáculos. No caso da comunidade LGBTQIA+, especialistas apontam que as barreiras ainda são grandes e que os avanços são em curtos e a vagarosos passos. 

A criação das políticas públicas com foco na comunicdade LGBTQIA+ a cerca de seus direitos passa pela aceitação da sociedade sobre a existência de modelos de sexualidade que se diferem da pessoa cis e heterossexual. Alcançar o respeito as diferenças, passa antes pela mudança do pensamento conservador, que notadamente há no Brasil.

A reformulação do Conselho Nacional de Combate à Discriminação, feita em 2010, surge como um marco para as políticas públicas dedicadas ao LGBTQIA+ (o órgão foi criado em 2001, mas desde então aglomerava temas raciais e femininos). Essa ação permitiu que o debate se aprofundasse na participação social específica para área. Desde então, muitos avanços foram anotados, e segundo a Advogada especialista em Direitos LGBTQIA+ e autora do livro Fatos, afetos e preconceitos: Uma história de todos os dias, Chynthia Barcellos, todas as medidas visaram a proteção, inclusão e representatividade do público LGBTQAI+.

Chyntia Barcellos, advogada especialista em LGBTQIA+ | Foto: Arquivo pessoal

“Tivemos avanços, como o reconhecimento da união afetiva equiparada a união estável. Também conquistamos a possibilidade de pessoas transgêneras fazerem a mudança de nome e gênero no cartório, sem necessidade de ação na justiça, cirurgia ou procedimento para se identificar como trans. Ainda tivemos a criminalização da LGBTfobia”, enumera a advogada especialista em Direitos LGBTQIA+.

A professora, doutora Antropologia e secretária de inclusão da UFG, Luciana Oliveira, percebe que as políticas implementadas para a comunidade LGBTQIA+ nos últimos dez anos resultaram em avanços para sociedade na totalidade. “É perceptivo no âmbito das interações sociais que há uma abertura para essas políticas. Se parece um pouco com a sensibilização da sociedade em relação aos direitos das pessoas LBGTQIA+. As pessoas se mostram mais abertas as ações afirmativas e politicas que beneficiam as diferenças”, avalia. 

Mas segundo Luciana Oliveira, os avanços na interação social não se devem exclusivamente a uma legislação em vigor, mas a um conjunto de ações que visam a conscientização e educação da população, somada as políticas afirmativas que fazem o enfrentamento a discriminação. ‘Tudo isso acaba por reverberar na sociedade e no público LGBTQIA+”, argumenta.

Luciana Oliveira, antropóloga e professora da UFG | Foto: Arquivo pessoal

Falta de representatividade, preconceito e a desinformação  são os pontos que ainda dificultam os avanços da pauta LGBTQIA+ no Brasil. Esse cenário demanda por mais políticas públicas relevantes para fornecer suporte a essa população e evitar que a falta de conhecimento e o preconceito contribuam para a precarização e violação de seus direitos. Entre os desafios diários dessa parcela da sociedade estão direitos como saúde, educação e trabalho, entre outros. As pessoas LGBTQIA+ ainda têm um longo caminho a percorrer, no que diz respeito a uma vida mais justa, igualitária e sem preconceitos.

No pensamento da professora Luciana Oliveira, lutar contra a homofobia não se resume a tipificá-la como crime, mas deve se buscar por ações afirmativas em diferentes espaços com o objetivo de promover uma inclusão transversal dessas pessoas.

“No caso do público LGBTQIA+ a gente verifica a intolerância se transformando em desigualdade e discriminação. Há retrocessos neste sentido, pois a uma base discriminatória que sustenta as relações sociais na sociedade brasileira. Temos um  forte teor de aversão a sexualidade dissidentes. É comum se deparar com pessoas, ambientes e instituições que são fóbicas”, avalia a antropóloga. “ Estamos falando de uma sociedade que cristaliza a intolerância e Isso provoca barreiras muito altas para que se construa uma sociedade que luta pela superação das posturas. Precisamos de políticas que invistam  em processos educativos para o reconhecimento do valor das pessoas LGBTQIA+”, complementa. 

Chyntia Barcelos concorda que o conservadorismo é um entrave para os avanços das pautas LGBTQIA+, e que nos últimos anos essas barreiras cresceram, aumento, inclusive, a insegurança desse público. “Tivemos avanços e eles não deixaram de existir, mas hoje está em uma proporção menor do que há dez anos. O próprio Conselho Nacional de Combate à Discriminação foi extinto. (Decreto n. 9.759 de 11 de abril de 2019 determinou a extinção de uma série de conselhos de políticas públicas vinculados a diversas áreas no governo federal). Caminhamos a passos lentos nas políticas públicas e a violência tem aumentado”, argumenta. 

De acordo com uma pesquisa realizada pelo Center for Talent Innovation, 61% dos funcionários gays e lésbicas decidem por esconderem sua sexualidade
de gestores e colegas em virtude do medo de perderem o emprego.
A pesquisa ainda revelou  que 33% das empresas do Brasil não
contratariam para cargos de chefia pessoas LGBTQIA+ e
que 41% das pessoas LGBTQIA+ afirmam terem sofrido
algum tipo de discriminação em razão da sua
orientação sexual ou identidade de gênero
no ambiente de trabalho.

A falta de representatividade também amplia as barreiras para políticas públicas voltadas a comunidade LGBTQIA+, aponta o sociólogo e professor da UFG  Flávio Munhoz Sofiati. “Há o preconceito e consequentemente a isso, a baixa representatividade desse segmento social nos parlamentos. Isso impossibilita que se tenha agentes públicos que possam oferecer para os executivos propostas voltadas para o segmento LGBTQIA+”, pontua. 

Projetos de Lei LGBTQIA+

Há 60 Projetos de Lei na Câmara Federal que tem a comunidade LGBTQIA+ como público alvo. Deste total, 44 estão em tramitação. Os outros 16 foram arquivados, em sua maioria, porque caducaram (extrapolaram o prazo para tramitação) sem análise dos deputados. Entre as propostas, o tema da criminalização da LGBTfobia é o mais recorrente nas medidas legislativas federais. 

Uma das medidas mais antigas em tramitação no Congresso é o PL 580/2007, de autoria do já falecido deputado Clodovil Hernandes, que permite a união civil homoafetiva. Há outros com o mesmo teor apensados a ele e está parado na Comissão de Seguridade Social e Família, onde já teve um parecer rejeitado e aguarda novo parecer de relator que integra a bancada religiosa. 

O mais longe que a união igualitária chegou no parlamento brasileiro foi com o PLS 612/2011, que foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. Contudo, a matéria foi arquivada em 2018 por ter chegado ao fim da legislatura sem análise do plenário.

O casamento civil entre pessoas do mesmo sexo integra a lista de prioridades do movimento LGBTQIA+ há pelo menos duas décadas. Atualmente, os casais homoafetivos têm direito à união estável, conforme reconhecimento dado pelo STF, em 2011.

Algo parecido aconteceu com o tema da LGBTfobia. Diante da inação do Congresso, há três anos, o STF, provocado pelo PPS, criminalizou a homofobia e a transfobia ao enquadrar, por 8 votos a 3, as atitudes no crime de racismo.

Embate e a linguagem neutra

Muitos embates entre pautas da comunidade LGBTQIA+ e pautas conservadores acabam por desaguar na justiça ou se tornar uma queda de braço em projetos de lei. Um dos exemplos está na chamada linguagem neutra. 

A linguagem neutra é defendida pelo movimento LGBTQIA+ como uma forma de inclusão das pessoas não binárias, que são aquelas que não se identificam com o gênero masculino nem com o gênero feminino. Essa comunicação considera o uso da letra “e” em vez de “o” ou “a”, em substantivos, e a inclusão dos pronomes “elu”, “delu”, “ile” e “dile”, no idioma. Ela é reivindicada principalmente por grupos de pessoas agênero e não-binárias.

Em pelo menos 19 estados brasileiros e no Distrito Federal, o uso de gênero neutro na língua portuguesa é tema de projetos de lei, de acordo com um levantamento feito pela Agência Diadorim. Ao todo, 34 propostas tramitam em Assembleias Legislativas do país. Todas querem impedir a variação na norma gramatical para além do binário masculino e feminino. Os principais eixos temáticos das propostas visam à proibição da linguagem não-binária na educação, 28, e na administração pública, 16. Algumas incluem ambas as áreas.

Em Goiás, um projeto está em avaliação na Alego. De autoria do deputado estadual Delegado Humberto Teófilo (PL), veda a linguagem neutra nas comunicações oficiais do Estado. O projeto foi apresentado em agosto de 2021 e ainda segue em tramitação. 

Em âmbito nacional, todas 14 projetos em tramitação que tratam do tema, buscam vedar o uso da linguagem neutra.

A questão também já foi judicializada. O Partido dos Trabalhadores (PT) pediu que o STF barre um decreto do governo de Santa Catarina que proíbe a linguagem neutra em instituições públicas e privadas de ensino e bancas examinadoras de concursos públicos do estado. Em vigor desde 15 de junho, o decreto catarinense veda o uso de “novas formas de flexão de gênero e de número das palavras da língua portuguesa, em contrariedade às regras gramaticais consolidadas e nacionalmente ensinadas”.

Embora o tema seja razão para um enfrentamento do campo político (confronto entre esquerda liberal e direita conservadora) e judicial, os pesquisadores relacionados ao tema apontam que a linguagem neutra tem cunho social e de inclusão.

Para a antropóloga Luciana Oliveira, os projetos e decretos que proíbem o uso da linguagem neutra representam um retrocesso. “A reivindicação da utilização da linguagem neutra esbarra em questões estruturais relacionais a língua portuguesa. Mas ela precisa ser reconhecida na sua capacidade de transformação e adaptação a novos tempos. Temos novas demandas e os sujeitos que demandam novas posturas e relações mais respeitosas aos direitos humanos”, diz.

Segundo a professora, a linguagem neutra tem a função de inserção e representação para comunidade LGBTQIA+. “Se há uma demanda e se há um reclame, isso precisa ser  escutado. Se a população apela para o uso de uma linguagem neutra e se sente mais incluída nos ambientes com esse uso, essa linguagem deve ser respeitada”, opina. “A linguagem é também descriminatória. Há de se pensar se a linguagem que utilizamos contempla a todos os seguimentos da sociedade e suas diferenças”, pontua a antropóloga. 

A função da inserção apresentada na linguagem neutra também é defendida por Flávio Sofiati. “As pessoas não estão mais categorizados em homem e mulher. Os professores que pesquisam o tema, já classificaram mais de 90 identidades. As pessoas começaram a se identificar de outras maneiras e outras possibilidades para além do sujeito cis. A linguagem possibilita que essas múltiplas possibilidades sejam expressas de forma escrita e na fala. A linguagem neutra possibilita a integração desse individuo”, defende. “Esses projetos que visam vetar a linguagem são excludentes”, completa. 

Flávio Sofiati, sociólogo | Foto: Arquivo pessoal

Os projeto de lei que buscam vetar a linguagem neutra é vista por Chyntia Barcelos como mais um ato de machismo estrutural. “Essa nova linguagem esbarra no português que é muito formal e extremamente masculina. A abrangência da língua é masculina e traz traços estruturais do machismo. Precisamos de muita informação e tempo para essa tomada de consciência seja realizada. E preciso entender que a inclusão de todas as pessoas é uma tendência natural”, salienta. 

Linguagem neutra ganha mobilização na política 

Diante da necessidade de propor políticas para essa população como um todo e também de defenderam suas posições politicas em todo das pautas LGBTQIA+, a linguagem neutra, assim como outros temas, ganham mobilização politica –  a favor e contra. 

A vereadora de Goiânia Gabriela Rodart (PTB) concorre este ano a uma vaga de deputada federal. Ela representa o conservadorismo e a extrema-direita se coloca frontalmente contra a linguagem neutra. Para ela, essa forma de comunicação deve ser vetada. 

Gabriela Rodart (PTB) | Foto: Arquivo pessoal

“A linguagem dita neutra, na verdade, não tem nada de neutra, pois é uma linguagem impositiva, subversiva em seu princípio, reflexo de uma ideologia utópica que nega a realidade estabelecida a milênios para alimentar uma revolução, não evolução”, disse ao Jornal Opção

Gabriela vê as propostas relacionadas a linguagem neutra mais relacionada com à esquerda do que com a comunidade LGBTQIA+. “A esquerda não está acostumada a propor, ela tem preferência por impor. Retirar o gênero masculino e feminino da linguagem corrente é destruir o princípio humanitário que trouxe a comunicação eficaz, inteligente e ordenada para uma comunicação dúbia, dilacerada, inconveniente e sectária, que não se sustenta por si só. Em resumo, o resultado de uma linguagem não binária, parafraseando Olavo de Carvalho, é a paralisação da inteligência humana”, expõe. 

Fabrício Rosa (PT) | Foto: Arquivo pessoal

Na outra ponta, o candidato a deputado estadual pelo PT Fabrício Rosa, reconhecido representante das pautas LGBTQIA+, é defensor da língua como inclusão. “A língua é viva e é ativa. Quando não existiam mulheres capitãs, não existia a palavra. Quando não existia mulher presidente não existia palavra presidenta”, exemplifica. “É importante que se utilize uma linguagem neutra, mas mais importante é que se use uma linguagem respeitosa”, diz. 

Fabrício acredita que as propostas de lei que vetam o uso da linguagem neutra não conseguiram impedir o uso. “Projeto que proíbe é ineficaz. A língua é dinâmica e se modifica conforme os tempos e novas realidades. A comunidade LGBTQIA+, que é mais de 10% da população, não vai voltar pro armário e ficar calada. Além disso, esses projetos de vetar o uso da língua neutra, não deveria existir por ser pura manifestação do preconceito”, enfatiza.

Movimento ou evolução da língua

Um dos desafios para a disseminação de uma linguagem neutra é ‘superar’ a lógica da língua portuguesa, apontada como ‘sexista’ por alguns. Por exemplo: você pode ter 10 mulheres e um homem numa sala, mas para fazer menção ao conjunto de pessoas, vai optar por um pronome masculino – ‘eles’. Na linguagem neutra, usada para se referir a pessoas sem delimitar o gênero, ‘amigues’ substitui ‘amigos’, por exemplo. ‘Brasileires’ é usado no lugar de ‘brasileiros’ ou ‘brasileiras’. 

Isso mostra que, para além do debate político e de inclusão da linguagem neutra, há também a questão linguística. Na prática, o que se quer é simples: em lugar de usar a palavra masculina para se referir a um conjunto de pessoas de gêneros diversos – “Boa noite a todos” – busca-se por uma forma que não privilegie um dos lados – nem masculina, nem feminina. E é também o que tentam fazer todos aqueles que dizem “Boa noite a todos e todas”, ou ainda “Boa noite a todes” (forma escolhida para se referir às pessoas que não se identificam no binarismo homem/mulher), opções que têm se tornado cada vez mais comuns no Brasil.

Mas essa é também questão complexa da filosofia da linguagem: até que ponto a língua que falamos condiciona nossa visão de mundo. “Se a pergunta é: a língua precisa ser mudada?  Partindo do princípio da chamada sociolinguística, a resposta é sim. Por uma questão lógica que é: se a língua não consegue materializar um pensamento, teoricamente não em função. Mas existe outro padrão, a chamada gramática normativa que é mais conservadora que tende a entender que a resposta é não. Não é por meio de uma flexão de gênero que se atende a uma perceptiva de natureza social”, avalia o professor de  língua portuguesa e de redação Carlos André.

Professor Carlos André | Foto: Arquivo pessoal

O professor exemplifica do ponto de vista gramatical a linguagem já atente a sociedade. “A palavra todos já é considerada uma palavra neutra, porém há uma percepção de que ela não é neutra, e sim masculina. O ‘todes’ é uma espécie de marcado de gênero, para quem tem esse marcador da palavra é importante, mas para a gramática não, ou seja, para a gramática normativa o ‘todos’ já tem essa percepção”, explica.

Embora para a gramática normativa não prevê uma forma neutra de gênero, no dia a dia se veem por aí variadas formas neutras circulando, principalmente nas redes sociais. É possível, por exemplo, encontrar publicações usando “amigxs”, “amig@s” ou “amigues”. Não são as únicas, no entanto: tem sido usado também o pronome “elu” – e também “ilu” ou “el” – para se referir a pessoas que não se identificam com o padrão binário de gênero representado pela oposição masculino versus feminino.

O que se percebe, historicamente, é que falantes de uma língua refletem sobre ela, ou seja, essa representação de uma língua vai sendo construída a partir de vários fatores, como os conhecimentos adquiridos no processo de escolarização, os conhecimentos que partilhamos com nossa comunidade, as hierarquias sociais nas quais a nossa produção linguística está inserida, as interações em que estamos imersos cotidianamente. Uma mudança como o gênero neutro representaria o fim dessa tal “estabilidade” projetada, idealizada. Assim, os debates que se acirram dentro e fora das redes nos mostram que a língua, em constante transformação, é um espaço de disputa de poder e de reafirmação e reconfiguração de dinâmicas sociais.

“Na posição de linguista eu sempre tendo a fazer reflexões. O que tem que ser perguntado é: qual sua  visão de mundo? Se for mais progressista, a resposta é que sim, tem que haver a utilização da linguagem de gênero. Por outro lado, se a visão de mundo é mais conservadora, aí se indica que para que haja alteração não na língua, e sim nas relações sociais, aí a postura é negativa, já que existem palavras neutras, como o caso de ‘todos’.