Política na Olimpíada: ficar com a pureza das respostas das crianças
01 agosto 2021 às 00h02
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Lições que o esporte nos traz em meio ao ar tóxico do fla-flu nacional: é preciso viver e não ter vergonha de ser feliz. Ser mais leve não é se tornar alienado
Vai ser difícil que quaisquer ouros, pratas ou bronzes que venham a brilhar no peito de brasileiros até o fim desta Olimpíada superem a presença de espírito e de atleta que foi a pequena skatista Rayssa Leal, de 13 anos, em seu dia de conto de fadas.
A simbologia de sua vitória – porque um pódio olímpico tem sempre três vencedores – perpassa desde a idílica realização de um sonho de criança, ainda sendo uma, até a lembrança incômoda e contrastante de que seu esporte foi uma prática proibida na maior e mais cosmopolita cidade brasileira na década de 80, mais precisamente, por determinação do então prefeito Jânio Quadros, em 1988.
Mas o que fica do conto da Fadinha? Muitas lições, mas principalmente a de que esporte se faz com política (principalmente por meio de políticas públicas), mas que política não deve entrar em campo, em quadra, nem em pista ou piscina.
Em meio aos estoicos Jogos de 2020, realizados em 2021 despedaçados pela pandemia – sem público, com desconfiança da população local, sem cumprimentos entre adversários, de máscara para cá e com isolamento para acolá –, do outro lado do mundo o Brasil inteiro tenta juntar seus cacos de autoestima para festejar seus expoentes atléticos, em uma trégua não escrita na polarização política reinante, estabelecida principalmente a partir de um governo que põe em prática uma guerra cultural-ideológica permanente.
Em tempo, abrindo parêntese: Bolsonaro e seus apoiadores não fazem tal guerra por “cortina de fumaça”, como pensam alguns; ao contrário, essa disputa é a única razão de existência do atual governo. Quem achar ruim que tudo se restrinja a um eterno confronto com a esquerda, ao combate ao comunismo, ao gayzismo, ao vitimismo e ao politicamente correto que procure outro para fazer políticas públicas concretas. Fechando parêntese.
A maravilha de poder gerar competições esportivas como os Jogos Olímpicos é uma das poucas funções positivas de existirem divisas e fronteiras pelo mundo. Na verdade, o poder de gerar o fenômeno das torcidas em meio às competições – já que elas naturalmente existem, esportivas ou não, onde existem adversários, sejam eles compatriotas, conterrâneos, vizinhos ou até familiares.
Desde as jornadas de junho de 2013 no Brasil, com o estabelecimento não previsto desse estado deletério de coisas, a Primavera Brasileira que virou inverno democrático. E a competição política degringolou. Primeiro, havia uma rebeldia sem rumo. Depois vieram “coxinhas” versus “mortadelas”. Nos últimos tempos, ficou bem clara uma guerra ideológica entre direita e esquerda – e uma guerra cultural particular contra essa última –, que desaguou na briga, às vezes não apenas retórica, entre “petralhas” e “bolsominions”.
O jogo jogado é um fla-flu sem fair play e muita coisa errada foi feita nesses oito anos. Incluem-se aí a deposição controversa de uma presidente, muito mais por política do que por crime de responsabilidade, em meio a acusações de corrupção não contra ela, mas a seu partido; também a condenação e prisão de um ex-presidente a partir de uma sentença baseada em pouco mais do que imagens de PowerPoint; a exclusão do mesmo condenado do pleito eleitoral, por um juiz que depois virou ministro do presidente eleito; uma campanha eleitoral com overdose de ódio incitado por fake news; e os atentados à democracia praticados desde então por quem foi colocado no poder por esses fatos.
Caindo a Olimpíada no País em meio a esse cenário maniqueísta, muitos atletas acabam envolvidos na teia – ou tragados pela areia movediça – dessa máquina de moer gente que se tornaram as redes sociais, ao mostrarem algum tipo de posicionamento entendido como político. Aconteceu e acontece em várias modalidades, até porque atletas não são apenas atletas, mas pessoas também, e cidadãos.
Surfe e política
Na semana passada, logo após a disputa do surfe e em meio à polêmica da arbitragem ter ou não ajudado o adversário japonês de Gabriel Medina, surgiu uma foto do brasileiro ao lado do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). Com a perda da medalha, surgiram os memes com a foto e os dizeres “para você não ficar tão triste com a derrota do Medina”. O outro brasileiro da competição, Ítalo Ferreira, chegou ao ouro, levou a torcida ao delírio durante a madrugada, mas na manhã seguinte já estava correndo pelas redes uma frase de engajamento político do campeão: “Corrupção nos estados, mata mais que qualquer vírus. Triste realidade”, escreveu Ítalo, texto seguido de um emoji com a bandeira do Brasil.
Corrupção nos estados, mata mais que qualquer vírus. Triste realidade 🇧🇷
— Italo Ferreira (@italoferreira) January 17, 2021
Antes mesmo de acabarem as competições do surfe, a discussão já recaía sobre as posições de Gabriel Medina – mais conhecido e, também, “mais favorito” que Ítalo. Depois da medalha, quando o potiguar, obviamente, ficou famoso para todos os brasileiros, o post acima chegou a ser comentado. Mas, felizmente, o caso acabou, de certa forma, abafado.
Voltando para Rayssa: claro, ela não falaria de política. Nem precisaria. Ela conduziu sua prancha sobre rodas de forma tão significativa que distorceu a frase de Saint-Exupéry: o essencial é visível aos olhos, é palpável, é contagiante. A essência do esporte tem a saúde, do físico e do espírito, como sua constituinte. É preciso estar bem do corpo e da alma para ser um grande desportista. O mesmo vale para um país ser grande também: seu corpo (população) precisa cuidar da alma. O brasileiro se tornou, nesta última década e em especial nos últimos anos, um dos povos mais soturnos – segundo pesquisas que avaliam a felicidade entre os povos mundo afora.
Jogos Olímpicos, na Grécia Antiga, serviam como um período de trégua entre as cidades-Estado, para uma disputa única, que ocorria de quatro em quatro anos. Voltar os olhos para algo além da política tóxica que temos experimentado precisa servir para alguma coisa boa.
Até lá, vale o dito de Gonzaguinha: é preciso viver e não ter vergonha de ser feliz. É preciso voltar a gostar mais e pensar menos. Ser leve não é ser alienado e, no caso atual, é saber que é preciso respirar outros ares dentro da mesma atmosfera.