Plano Diretor de Goiânia: falta transparência e sobra desconfiança

19 dezembro 2021 às 00h02

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A quem interessa votar a proposta nos últimos dias do ano, sem que haja nenhum prejuízo para que tudo seja analisado com mais calma nos próximos meses?

Tudo na política é questão de vontade. De fazer ou de não fazer. Maior exemplo do que pode alcançar a disposição, pelo menos para os goianos, talvez tenha sido iniciativa de construir mil casas em um dia na área que viria a ser a Vila Mutirão, consolidando o aglomerado populacional da região noroeste de Goiânia. Naquele 16 de outubro de 1983, em mais uma de suas marcas como tocador de obras, o então governador Iris Rezende imprimia seu nome no Guinness Book, o conhecido livro dos recordes.
Por outro lado, em exemplo oposto, se tem algo que nem de longe mereceria menção de destaque em qualquer compilado é o processo de revisão do Plano Diretor de Goiânia. Previsto para ter ocorrido dez anos após sua entrada em vigor, em 2007, lá se vão decorridos quase cinco anos além do período determinado por lei. Nem o prefeito nem a maioria dos vereadores são os mesmos. Agora, neste mês, ele voltou à Câmara para votação final, de uma forma inexplicavelmente apressada – principalmente levando em conta toda a demora.
Tudo começa em 2017 quando deveria ter ocorrido, se fosse obedecido o prazo, a revisão do Plano Diretor. É salutar que se faça, periodicamente, uma revisão de um documento-diretriz, mas, como o próprio nome diz, não se poderia – ou ao menos não se deveria – mudar bruscamente o rumo. Mas aí entra uma questão importante: que rumos Goiânia tem tomado, ou melhor, estão sendo dados a Goiânia? Correspondem ao que prevê seu plano?
Por exemplo: o Plano Diretor sancionado em 2007 já previa o não espraiamento da cidade, pelo contrário, se guiava pelo adensamento em eixos. Mas, em 2009, é lançado o Residencial Jardins do Cerrado, na divisa do município com Trindade. Em que se ampara, dentro do Plano Diretor, um bairro como aquele, com todas as suas etapas, com mais de 5 quilômetros quadrados de extensão, mas sem ligação alguma com a mancha urbana?
O caso se tornou tão escandaloso que virou mote para pesquisas acadêmicas sobre segregação social. E, nesse ponto, nunca é demais lembrar que, não muito tempo atrás, a capital goiana foi tida como uma das cidades de maior desigualdade social não só do Brasil, mas do planeta – algo que irritou bastante o então prefeito Iris Rezende, que não via sentido na classificação, já que Goiânia não tinha favelas. Sim, talvez não haja moradias favelizadas, como no Rio ou São Paulo, mas a miséria grita no entorno da cidade – e até no meio dela – basta um olhar mais cuidadoso.
Portanto, motivos não faltariam para que Goiânia mudasse seu rumo, mas não porque o Plano Diretor seja ruim: é que ele não é aplicado. As cidades são frequentemente associadas a “organismos vivos”, em artigos de gente especializada – arquitetos, urbanistas e sociólogos – mas, obviamente, elas “per se” não podem mudar seu destino. Nesse sentido, uma revisão de como a atual deveria reforçar os pontos positivos do atual Plano e não criar gambiarras criminosas, como tem tudo para ser uma tal “outorga onerosa de alteração de uso”, pela qual o proprietário de uma área no que é zona rural pode requerer a mudança para zona urbana com pagamento de uma taxa e uma aludida “análise técnica”. Ou seja, em vez de ter perímetro urbano, a cidade passa a ter “ilhas urbanas” em seus arredores. Em tese, no limite norte, com Nerópolis, alguém pode querer lotear um novo bairro e basta ter dinheiro. Não há planejamento urbano algum, instaura-se um vale-tudo por investimento particular.
Ademais, a forma de levar (ou deixar de levar) esse debate – por mais esdrúxulo que seja – foi, como dito, nada aberta. Discussões correram de forma esparsa. Em setembro de 2020, já em meio à pandemia, o mesmo Iris Rezende, no último ano do derradeiro de seus quatro mandatos como prefeito de Goiânia, recolheu a proposta de Plano Diretor, que estava na Câmara, de volta ao Paço. O projeto que foi elaborado pelo Instituto de Desenvolvimento Tecnológico do Centro-Oeste (ITCO), empresa de consultoria que havia sido contratada para esse fim, também não andou. Por fim, depois de um ano inteiro, chegou ao Legislativo o resultado de discussões de um grupo de trabalho da Prefeitura, hoje comandada por Rogério Cruz (Republicanos), o herdeiro do mandato obtido nas urnas por Maguito Vilela (MDB), o prefeito eleito que morreu vítima da Covid-19 em janeiro.
Foi um grupo de trabalho, no mínimo, estranho. Pouco se soube dele. Envolveu técnicos da Prefeitura, vereadores e representantes do setor imobiliário, porém ninguém mais da sociedade organizada: associações de moradores, universidades, conselhos de profissionais, entidades que lidam com planejamento urbano e meio ambiente, nenhum deles tomou parte no “clube” autor da proposta que voltou para a Câmara de Goiânia em novembro.
Se o instrumento mais importante para direcionar as políticas públicas e o planejamento urbano da cidade pode ser, durante tanto tempo, “escondido” da população e, em determinado e oportuno (para certos grupos) momento, ser votado a toque de caixa, podemos dizer: aprovar uma proposta de tal importância nessas condições é colocar a cereja do bolo da indiferença em relação aos interesses maiores da cidade e de sua população como um todo.
O resumo da novela que já dura cinco anos tem nome: falta de transparência. Depois de tanto tempo, audiências públicas físicas e virtuais, palestras, pareceres técnicos e tanta discussão, não se sabe o que será votado, porque vereadores podem propor emendas de última hora que levariam todo o “espírito” do plano à derrocada. Pior: o nível de desinformação é tal que não dá para saber nem mesmo qual seria o tal “espírito”.
A pergunta que não quer calar: a quem interessa votar um Plano Diretor nos últimos dias úteis do ano, sem que haja nenhum impedimento legal ou prejuízo se tudo for feito com mais calma e debates nos próximos meses? A resposta está com a Prefeitura e com os vereadores de Goiânia.