Enquanto a rede de saúde dos primeiros Estados começa a colapsar, Goiás tenta
ampliar sua capacidade de atendimento

Funcionário do Hospital de Campanha (HCamp) em Goiânia mostra novos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs)| Foto: Reprodução /HCamp

Nas últimas semanas, o colapso do sistema de saúde chegou às primeiras unidades da federação em função do novo coronavírus. Isto é, todas as unidades de terapia intensiva (UTI) capazes atender infectados com a Covid-19 foram ocupadas. Por enquanto, Estados como Amazonas – o primeiro a ser sobrecarregado – podem receber ajuda federal e de outros entes, mas com o pico da pandemia sendo projetado para o fim de maio, e com a superlotação ocorrendo semanas antes do esperado, podemos estar diante de um cenário tenebroso.

Em números absolutos, o Amazonas é apenas o quinto ente federado mais afetado pela Covid-19; com 1.554 casos confirmados e 106 mortes, está atrás de Pernambuco, Ceará, Rio de Janeiro e muito atrás de São Paulo, com seus 778 óbitos e 11.043 casos confirmados. Entretanto, foi o primeiro Estado a entrar em colapso. Seu sistema de saúde durou apenas um mês desde a confirmação do primeiro caso. Além de filas para ocupar uma vaga na UTI, são reportados a falta de médicos nos hospitais e o descumprimento das orientações de distanciamento social e de fechamento do comércio.

A Covid-19 é uma infecção com alta virulência e leva em média 5% dos contaminados à UTI. Enquanto o Amazonas tem a maior taxa de incidência da doença no país, com 303 casos por milhão de habitantes, tem também uma das menores proporções de leitos de UTI por quantidade de habitantes. Como resultado, o estado tem a maior taxa de mortalidade, com 17 mortes por 1 milhão de habitantes.

A proporção de leitos de unidades de terapia intensiva pela quantidade de habitantes revela a capacidade da rede de saúde absorver estes doentes. São 1,2 leitos para cada 10 mil amazonenses e todos os leitos públicos estão na cidade de Manaus. Para que se tenha um parâmetro, em Goiás existem 2 leitos por 10 mil habitantes e em São Paulo são 2,5 a cada 10 mil. Agrava o problema o fato de que alguns pontos do maior Estado da federação estão a cinco dias de distância da capital, viajando de barco. 

Leitos para pacientes da Covid-19 não precisam estar isolados se todos os internos já estiverem infectados | Foto: Reprodução / HCamp

Segundo informações do Ministério da Saúde, na quarta-feira, 15, os primeiros profissionais voluntários da Força Nacional do Sistema Único de Saúde (SUS) foram enviados ao Amazonas. Os 17 médicos e enfermeiros que seguem para Manaus fazem parte dos mais de 8,2 mil profissionais de saúde do país, que se voluntariaram, até o dia 19 de março para integrar a Força Nacional de combate ao coronavírus. Antes de embarcar, os 17 profissionais receberam treinamento de 06 horas.

Esta alternativa é uma possibilidade dos primeiros Estados cuja saúde colapsa, mas todo o país vem dando mostras de sinais de fadiga do SUS. O Ceará declarou na quinta-feira, 16, que tem 100% de seus leitos de UTI para Covid-19 ocupados. O Rio de Janeiro tem atualmente 72% dos leitos ocupados e prevê colapso ainda em abril. Quase metade dos internados com Covid-19 no estado de São Paulo se encontra em UTIs. Pernambuco já tem mais de 90% de seus leitos para a doença ocupados. 

Quando chega o caos?

Frequentemente, ouvem-se questionamentos do gênero: “Os hospitais estão vazios; então não é verdade que a Covid-19 pode sobrecarregar os leitos de UTI”. Em parte, a afirmação é justificada. Atualmente, entre os representados da Associação dos Hospitais Privados de Alta Complexidade do Estado de Goiás (Ahpaceg), a taxa de ocupação dos leitos comuns varia entre 15% e 50%, ou seja, cerca de metade está ociosa. Nos leitos de UTI, a ocupação está entre 50% e 100% e, nos prontos-socorros, o movimento caiu cerca de 60% durante a pandemia. Resumindo: os hospitais privados estão com uma ocupação mais baixa que o comum.

Leitos UTI respirador
Haikal Helou afirma que Goiás só dará conta dos doentes caso a quarentena seja afrouxada de forma calculada | Foto: Reprodução / AHPACEG

Isso ocorre porque o governador Ronaldo Caiado (DEM), no dia 19 de março, suspendeu por decreto 50% das cirurgias, internações e exames eletivos, na intenção de desocupar parte da rede como preparação para a demanda da Covid-19. Além disso, hospitais inteiros, como o Hospital de Doenças Tropicais (HDT), tiveram suas unidades de terapia intensivas destinadas ao combate da Covid-19, já que não se pode misturar pacientes infectados com o novo coronavírus com pacientes comuns.

Segundo Haikal Helou, presidente Ahpaceg, nem todas as unidades de tratamento intensivo são iguais: “Doenças infectocontagiosas não costumam levar ao tratamento intensivo. Este não é o perfil da maioria dos hospitais. Pacientes com o novo coronavírus só podem colocados em UTIs isoladas ou em espaços comunais onde todos os pacientes já estão infectados. Caso contrário, aquele será um ponto de contágio para os demais.”

Na tentativa de se preparar para o aumento da demanda, novos leitos foram providenciados. Segundo a Secretaria Estadual de Saúde de Goiás (SES-GO), o Hospital de Campanha (Hcamp), em Goiânia, possui capacidade para ativar até 70 leitos para pacientes críticos. A unidade é referência no Estado para atender pacientes da Covid-19 e não atenderá pacientes de outra natureza. Além destes, já estão sendo preparados leitos de diferentes complexidades (críticos e semicríticos) em diferentes regiões de Goiás para assistência dedicada à Covid-19.

Além deste, a SES-GO informa que oito hospitais serão equipados e receberão profissionais capacitados para lidar com a Covid-19. “Algumas unidades são transitórias, como o Hospital de Campanha Modular de Águas Lindas e o Centro de Convenções de Anápolis. Outras unidades serão estadualizadas, integrando a rede de saúde pública de Goiás para atender, de acordo com estudos da SES-GO, as necessidades de cada local, contribuindo para reforçar a regionalização da saúde no Estado, como em Formosa e Luziânia”, afirma a Secretaria.

A estrutura física dos hospitais é montada pelo Governo Federal enquanto as novas unidades, como o HCamp, devem ser geridas por Organizações Sociais (OS), cabendo a estas a contratação de profissionais. Os equipamentos e materiais adquiridos pela SES-GO configuram patrimônio público. Assim, mesmo após a pandemia, estarão entre os bens da Secretaria, sendo utilizados de acordo com as necessidades da pasta.​

No âmbito municipal, também foram providenciados novos leitos, com a conversão temporária da Maternidade Oeste para receber pacientes com coronavírus. Segundo o médico Sérgio Nakamura, integrante do departamento de políticas públicas da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), a unidade hospitalar tem atualmente 30 leitos, deve chegar a 60 quando em pleno funcionamento, mas que tem potencial para abrigar 160 leitos, segundo a necessidade. Também no âmbito municipal foram suspensos atendimentos eletivos. 

É o bastante durante a pandemia?

Haikal Helou afirma que o leito de UTI é apenas uma engrenagem de um todo mais complexo que é a atenção ao paciente em estado crítico. “É, sobretudo, gente”, diz o presidente da Ahpaceg. “É necessário um complexo de profissionais da saúde – médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, técnicos de operação e manutenção de aparelhos. Não se consegue montar isso de uma hora para outra. Na pandemia de Covid-19, o que mata é a dificuldade do paciente realizar trocas gasosas, então também estamos preocupados com o número de respiradores.”

Governador de Nova York exibe um dos sete mil respiradores manuais comprados emergencialmente | Foto: Reprodução

A necessidade de respiradores é tão urgente que, no dia 28 de março, o governador do estado de Nova York, Andrew Cuomo, adquiriu três mil respiradores manuais e encomendou outros quatro mil. Os respiradores manuais são uma invenção médica dos anos 1950 e requerem que quatro ou cinco profissionais se revezem na tarefa de bombear com as mãos o ar para dentro do pulmão do paciente. O político do partido democrata admitiu que fez a compra porque, com respiradores mecânicos esgotados no mercado, esta era sua única opção. Entretanto, por conta da quantidade de pessoas necessária para operar o mecanismo, Cuomo admitiu: “Se precisarmos recorrer a este dispositivo em larga escala, essa não é uma situação aceitável”.

De volta à Goiás: a SMS afirma que a rede SUS tem 638 respiradores disponíveis em Goiânia, isso inclui equipamentos em estabelecimentos de saúde do município, Estado, governo federal, filantrópicas e rede privada conveniada. Somando os respiradores mecânicos particulares, o número chega a 926. A SES-GO informa que, além destes, há três atas de registro de preços para aquisição de 1.000 respiradores, 1.000 monitores multiparamétricos e 1.000 camas especiais. Estes números reduzem bastante a quantidade de leitos de UTI que realmente serão úteis durante a pandemia. 

Por isso, a SES-GO afirma estar correndo contra o tempo para aumentar este número: “Há em andamento um projeto para manutenção de equipamentos obsoletos de ventilação pulmonar e monitores multiparamétricos para aferição de sinais vitais que estavam no almoxarifado da SES-GO e em hospitais da rede estadual. A parceria conta com a participação da Escola de Engenharia Elétrica, Mecânica e de Computação (EMC) da Universidade Federal de Goiás (UFG), com o Instituto Federal de Goiás (IFG) e com o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senais). Os equipamentos que estão em desuso, por não terem mais peças de reposição no mercado, serão disponibilizados para tentativa de recuperação”.

Leitos UTI respirador
A rede SUS dispõe de 638 respiradores mecânicos em Goiânia | Foto: Reprodução Reuters/Stephane Mahe

Quando perguntado se podemos atravessar a pandemia com o que temos, Haikal Helou é realista: “Teoricamente, sim, seria suficiente. Mas, para isso, teríamos de refrear a ida da população ao sistema de saúde. Mas se sairmos do isolamento para a rua, como está acontecendo hoje, não dá. Se todo mundo pegar a doença junto, acabaram os respiradores e os leitos. O nosso foco deve ser o isolamento social e a testagem e o tratamento de quem está doente. Querer acabar com a quarentena sem fazer testes nem ter UTIs e nem respiradores é irresponsabilidade.”

Como providenciar mais agora?

Segundo a SES-GO, os equipamentos e materiais já adquiridos configuram patrimônio público e, mesmo após a pandemia, estarão entre os bens da Secretaria, sendo utilizados de acordo com as necessidades da pasta.​ Entretanto, a compra em massa de equipamentos para lidar com a epidemia por todos os países afetados causou uma escassez geral de respiradores, equipamentos de proteção individual, testes e insumos médicos. Portanto, para muitos itens, a importação deixou de ser uma solução. Uma alternativa pode vir da colaboração entre as redes de saúde pública e privada. 

A falta de sincronia entre os setores é expressa por Haikal Helou: “Me impressiona o Estado criar um Comitê de Gestão de Crise e não convocar a rede privada para participar. Nós temos mais de metade dos leitos, estamos ligados a assistência diretamente. Em Goiás, existem mais pacientes de Covid-19 na rede privada do que na pública. Representantes de diversas federações e associações comerciais estão lá, mas a rede assistencial privada não participa. Aguardamos reunião com o governador há quatro dias, mas até agora viemos nos comunicando apenas por meio da imprensa.”

Leitos UTI respirador
Especialistas afirmam que a colaboração entre redes pública e privada de saúde aliviaria a demanda por leitos e aparelhos | Foto: Reprodução / HCamp

O presidente da Ahpaceg cita o caso do Instituto de Assistência dos Servidores Públicos do Estado de Goiás (Ipasgo) como ação bem sucedida que pode ser ampliada. “O Ipasgo arrendou três instituições e transformou em hospitais de referência, apenas para tratamento da Covid-19. Mas o resto da rede não seguiu o exemplo. Nós, enquanto hospitais de alta complexidade, temos a técnica e a vontade para colaborar com o combato ao coronavírus.”

É o bastante durante a normalidade?

Segundo Haikal Helou, é impossível determinar precisamente quantos leitos de UTI seriam necessários em tempos normais. “A população envelhece, então temos mais casos de câncer que demandam tratamento intensivo. Se você providencia dez novos leitos, a notícia se espalha e chegam pacientes de Estados vizinhos. Você aumenta a quantidade de unidades novamente, mas como não adotamos critérios claros de admissão, todos pacientes em processo de óbito vão para a UTI desnecessariamente. Desta forma, nunca haverá leitos suficientes”.

Haikal Helou afirma que só devem ir para a UTI os pacientes com perspectiva de recuperação ou que possam se beneficiar de redução significativa do sofrimento. Diferentemente da forma como são às vezes percebidas por nossa cultura, as unidades de tratamento intensivo não são locais de passagem obrigatória antes da morte. “É uma rede em constante expansão”, afirma Haikal Helou. “Na saúde pública, vemos o clamor popular por mais leitos e as filas que se formam para ocupá-los. Na saúde privada, a quantidade aumenta em função da demanda; nunca há falta de leitos, a não ser em situações em que há aumento súbito da procura, como em casos de pandemia”. 

Segundo o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), Goiás possui 80 instituições com unidades de tratamento intensivo. No total, são 530 leitos para adultos em Goiânia e 390 no interior do estado; mais 110 unidades pediátricas na capital e 42 no interior. A maior parte destes estabelecimentos é da rede privada – 56 dentro do total de 80 instituições. Apesar de haver apenas 13 estabelecimentos de saúde na rede pública com UTIs, cinco destes possuem mais de 40 leitos. Já na rede privada, 33% dos estabelecimentos têm apenas de 1 a 9 leitos. Goiás tem também nove instituições de caráter filantrópico que contam com UTIs.